‘Posta mirandesa’, uma lição da Terra Quente a todo o país

‘Posta mirandesa’, uma lição da Terra Quente a todo o país

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Deliciei-me com algumas maravilhas gastronómicas, a cirandar pelo país, nestas férias. Não é que sejam sabores novos, mas, porque ando mais atenta, sujeitei-os a questões que nunca me tinham ocorrido. Sim, porque é importante percebermos o que comemos em determinada localidade. Os ditos sabores identitários não surgiram ao acaso. Muitas vezes são fruto dos caminhos difíceis de sobrevivência por parte de populações que viviam em constante sintonia com a natureza.

Posso dizer, então, que se não me surpreenderam as línguas de bacalhau, degustadas em pleno litoral, o mesmo já não posso dizer da posta mirandesa, típica do planalto mirandês. A englobar vários concelhos, esta região é também apelidada de terra fria, agreste, pouco abundante de pastos e mais propícia a animais de montanha, como a ovelha da raça churra galega, do que a gado vacum que necessita de bons e verdejantes pastos para se alimentar. Gado que, no entanto, era necessário para os trabalhos da terra.

A importância do pasto

Enquanto me deliciava com aquela carne tenra e saborosa (que hoje já duvido que seja das vitelas mirandesas), questionei-me sobre esta realidade: porque é que aqui, nesta terra pobre e agreste, os aldeões matavam as vitelas para as comer? Porque não as deixavam crescer até uma idade mais adulta, permitindo, assim, um maior rendimento familiar em carne e em leite? Ao invés, olhei a paisagem minhota, terra verde e de pastos abundantes, onde a vitela raramente entrava na mesa. No caso dos mosteiros beneditinos, por exemplo, onde a carne de vaca era quotidiana nos dias permitidos, comia-se uma carne dura, com o mínimo de dois anos. Carne que, por essa razão, era necessário picar, comendo-se em picado ou em almôndegas. As vitelas apenas entravam na mesa monástica em tempos de festa capitular, ou seja, quando todos se juntavam, de três em três anos, para uma reunião geral. Matar uma vitela era um luxo a que até os mais ricos raramente se aventuravam.

A resposta encontrei-a no blogue conversas à mesa de Fátima Moura. Diz-nos a autora:

“No planalto mirandês criava-se muito gado, o tal da raça mirandesa. Eram bichos possantes destinados ao trabalho, e ninguém se lembraria de matar vacas de trabalho. O que se matava eram as tais vitelinhas pequenas, antes que começassem a dar despesa ou a tirar forças à mãe através da aleitação, ou a disputar-lhe o feno e o pasto”.

Cá estão os condicionalismos naturais e determinar o que se punha na mesa. Se no Minho, uma região mais fértil e rica, onde o pasto abundava, a vitela deixava-se crescer para dar mais rendimento, no planalto transmontano, sem grandes recursos herbáceos, apenas se deixavam chegar à idade adulta as vacas necessárias aos trabalhos agrícolas. Todas as outras, logo pelos 4 meses de idade e os 80 kg de peso, acabavam em cima de uma fatia de pão, depois de temperadas com sal e bem grelhadas na lareira lá de casa, nas tabernas ou nas feiras da região. Sem uma rede de frio adequada e sem grandes técnicas de conservação, a vitela, depois de morta, tinha que se ir vender à feira para rapidamente se consumir. Diz-nos a mesma autora que ia em carroças, onde estava também um pipo de vinho e, por vezes, barriga de porco. Ao lado fazia-se a fogueira e grelhava-se a carne ao gosto do freguês.

Posta mirandesa: uma lição de sustentabilidade

E assim nasceu a Posta mirandesa. Mais tarde, uma cozinheira de Sendim, de nome Gabriela, deu-lhe fama num restaurante da sua terra adicionando-lhe um molho especial. Hoje está por todo lado. Postas de carne tenra e saborosa, que se transformaram em iguaria gourmet e que outros, em outras regiões, vão imitando.

Um tradição alimentar que não deixa de ser uma lição de sustentabilidade agrícola porque, de facto, não podemos produzir alimentos de regadio em terras de sequeiro e vice-versa. Nos últimos cinquenta anos, com a construção de barragens, baralhámos o jogo. Agora, as alterações climáticas estão aí para nos fazerem repensar tudo isto e, como diz o povo, nos trazer ao rego!


Imagem: Theatro


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Acerca do Autor

Anabela Ramos

Historiadora.

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