Louise Glück e a vida das plantas

Louise Glück e a vida das plantas

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«At the end of my suffering / there was a door.» Os primeiros versos de A Íris Selvagem começaram por ser um rumor persistente na cabeça de Louise Glück (n. 1943). À data, sabia pelo menos duas coisas. A primeira: que o seu casamento estava por um fio. A segunda: que para surgir um novo livro teria sempre que rejeitar o último, detestá-lo até, para que nenhuma fórmula se repetisse. Além da vontade explícita de contrariar os quadrantes pessoais do momento – o matrimónio arruinado, o desgosto amoroso – para proteger a escrita das derrapagens confessionais. Mas entre o Don Giovani de Mozart escutado vezes sem fim, o tempo passado a jardinar ou a ver catálogos de plantas na sua casa em Vermont, EUA, vivia a poeta norte-americana um conturbado período de silêncio: o da angústia de não conseguir escrever. E o silêncio, longe de ser essa hipótese mística que desenevoa a luz da verdade, é o mais da vezes a matéria espessa que atrai os corpos à terra, à sua implacável condição mortal, a noite funda a que se assiste de olhos abertos – enquanto a voz, sentindo-se urgente, debelando-se na língua, se detém muda, e assim emudecendo o sentido de tudo quanto se gostaria de dizer.

A busca desse sentido destrói qualquer pacto de paz – ou revela, com uma dureza tirânica, que todos os pactos são falsos, pequenas quimeras de bolso com que se reencanta o pequeno tempo que nos é dado quando vimos ao mundo, o breve instante à escala do cosmos de que esse silêncio se faz a máscara dócil para o instinto ferino de gritar. E quando nem esse grito se faz audível, ou quando nem a escrita faz a mão mover-se para captar essa crepitação, ou quando nem o corpo se impressiona mais com as possibilidades do desejo – como não sofrer, como não a angústia? Como não o pânico de Louise Glück para quem, sendo poeta e professora, vivendo por isso de palavras, emudece diante da página? Se é na página que, melhor ou pior, mas afirmativamente mortal, alguém como ela se vinga de todas as impermanências, da paz podre em que a verdade oscila, da ausência de luz ao fundo do túnel, por só haver luz enquanto houver a consciência humanamente irredutível que se deixe por ela encandear. Como escreveu Camus, mesmo os que não têm deus não deixam de ter o seu próprio Monte das Oliveiras. O vazio de todas as crenças, a consciência nua do caos infinito e da poeira estelar a que estamos reduzidos, terá na agenda mais do que um encontro marcado com esta profunda angústia de se existir para nada – e com o desespero de nem pela virtude da escrita se conseguir salvar o dia que acaba.

Só quando Glück passara para o papel o rumor daquelas palavras é que constatou tratar-se do começo de um livro: «At the end of my suffering / there was a door.» No fim do sofrimento, havia uma porta. Parece ser esse o método que Glück aplica em todos os livros: dar às emoções o contorno de um enredo, uma espécie de moldura. O mero esboçar de tal imagem é suficientemente arquetípico para deixar a imaginação efervescer: mesmo que fechada, mesmo que irremediavelmente perdida a única chave que lhe fizesse mover os gonzos, a visão de uma porta fulge como hipótese de caminho, signo de passagem, o sentido de chegar ao coração do próprio enigma que é o de interrogar menos a viagem, e o desconhecido a que ela nos leva, do que o lugar que prometia ser morada certa para um corpo precário, «aquilo que se teme, ser / alma e incapaz / de falar […], a terra hirta / curvando-se um pouco», na tradução de Ana Luísa Amaral (p. 11). E no poema «Trillium» desdobra-se um pouco mais o entusiasmo balbuciante de quem é apanhado de surpresa pela força desavinda das palavras, o momento em que estas começam a falar através de nós numa lenta reaprendizagem do mundo, fazendo emergir uma nova clarividência onde antes havia só escuridão e agonia: «Vede o que entendo já. / Acordei ignorante, numa floresta: / há instantes não sabia sequer a minha voz. / Se alguma voz me fosse dada, / ela seria feita de dor, frases / como gritos amarrados entre si. / Não sabia sequer o que era a tristeza / até a palavra surgir, até sentir / a chuva brotando de mim.» (p. 17).

A imagem destes últimos versos é particularmente feliz: «[…] until I felt / rain streaming from me», no original. Pela reversibilidade dos elementos, interior e exterior, o eu e a chuva, a terra e a água, a imagem do poema intensifica-se enquanto acto de criação, enquanto força que amplia o potencial de vida emergente. O devir das coisas, a consciência da sua multiplicidade, se não é o infalível antídoto contra o envenenamento niilista que a descrença na unidade de deus segrega (e quem diz deus, dirá essa outra coisa qualquer, inominável, metafísica), afirma-se ao menos, no plano afectivo de uma proximidade tangível, como o calor de um corpo na presença de um outro corpo, unindo-se «à árvore viva, apaixonadamente, o meu corpo / enrolado no seu tronco, à chuva da tarde, quase em paz, / quase capaz de sentir / a seiva borbulhante, subindo por mim» («Matinas», p. 13). Basta isto, segundo José Gil, crer neste corpo mortal, crer neste estar com os outros, para libertar no não-crente a crença no laço que o une aos outros e no laço que os liga a todos à matéria envolvente, sonegando o medo da morte. É isso que abre o humano à «consciência de que [se] é composto de elementos cósmicos, de átomos e de luz, de espaço e de tempo, de partículas, de gritos e de impulsos do animal múltiplo que ele é, de vibrações, de cores, de plantas e de flores. Com estes elementos, o homem, que é feito da terra e do cosmos, de corpos orgânicos e inorgânicos, cria as mais fabulosas composições» (in Trajectos Filosóficos, pp. 30-31).

No caso de Glück, àquele vazio de inspiração que a devorava, eis que surge a visão da porta, o laço com as plantas, a sensação da água viva. Acolhe o devir concreto da vida, embrenhando-se no coração da matéria, na substância do mundo: «the one continuous line / that binds us to each other» («a única linha constante / que nos liga para sempre») («Final de Inverno», p. 29). Que o faça por intermédio das flores será menos por capricho estético, como quem faz arranjos florais a partir de versos e metáforas, mas antes porque é às flores de um modo peculiar que devemos o facto existencial da vida e de termos um mundo do qual somos imanência em devir: a par das sementes, as flores são o sexo do mundo por excelência, «o órgão dos órgãos», segundo Emanuele Coccia no luminoso A Vida das Plantas (2019, p. 147). A flor constitui um «atractor cósmico»: presa à terra, incapaz de se mover, não tem outro remédio senão atrair o mundo a si. É através da meiose que, no seio da flor, os organismos decompõem e recompõem as suas totalidades, impulsionando a regeneração do mundo e a transformação da sua consistência. É pela fotossíntese que a luz do Sol entra em todos os corpos, tornando-se «a pele da Terra» (p. 123). Onde quer que uma planta germine, haverá sempre um punhado de terra, um raio de luz e um fluxo de ar que acabam transformados em vida. A esse processo Coccia dá o nome de «metafísica da mistura».

Assim, as mesmas mãos que, na véspera, andavam sujas de terra acabariam depois sujas de tinta. Surgia A Íris Selvagem (1992), um livro que toma o mundo natural como cenário. Com ele, Glück venceria o Pulitzer no ano seguinte. Nestes poemas, a prosopopeia dá voz às flores, uma seiva consciente às margaridas e à erva, além de violetas, lírios ou papoilas desfolhando impressões sobre o tumulto da vida e a ignorância da morte. Noutros momentos, o arremesso de um jardineiro, a presença de um homem e uma mulher (com referências directas à conjugalidade, a um marido chamado «John»), ou a voz de um deus impaciente com as suas falíveis criações, contribuem para reinventar o éden com diferentes tonalidades. A criação humana de plantas surge lado a lado com a criação divina, quando não se diluem uma na outra – e, juntas, recolocam a criação poética no centro tensional de quem, escrevendo, se põe à escuta do que ainda está por revelar, procurando dar voz ao que murmura do lado de lá desta cortina de silêncio, «como alguém que bate num copo com uma colher de metal» («Lamium», p. 19).

Contudo, sob o arco das quatro estações, a opulência de um jardim das delícias não constitui, na sua imediaticidade orgânica e sensorial, um manifesto júbilo vitalista. Em vez do êxtase, de que o clima primaveril e o colorido das flores seriam o sintoma alegórico, estes poemas transcendem a experiência naturalista do quotidiano e abrem na sua tensão uma espécie de remanso intemporal. Há como que um permanente sobreaviso, um pequeno golpe de racionalidade estóica que mantém a visão do poema a uma certa distância do deslumbramento. Esse sulco de distância marca, aliás, a escrita de Glück: é o que lhe permite nomear a dor, a consciência do fim, o prazer amoroso, o desconserto da vida, com a delicadeza cortante dos que possuem «um coração de gelo» (p. 19). Nem demasiado longe do que nomeia, o que arriscaria diluir o poder de observação em lirismos abstractizantes; nem demasiado perto, a ponto de ceder ao subjectivismo empolado e derivativo. Como as personagens de Ésquilo, as vozes que falam nestes poemas carregam um boi sobre a língua. A alegria é malévola, o amor é sombrio. O mesmo deus que nos ama é aquele que se compraz em ver-nos confusos e irados, filhos que um pai trata como órfãos: «ides e vindes; e eu acabo por / esquecer os vossos nomes. / […] como se fôsseis um esboço a descartar» («Crepúsculo de Setembro», p. 123).

É na aparência de um arranjo narrativo e de imagens comuns (mesmo quando evoca referências de fortíssima carga simbólica: Moisés, a escada de Jacob, o Génesis) que a poesia de Glück armadilha o leitor. Recorre a palavras simples, não tanto para redignificar o real mundano, ou resgatar a prosa dos dias do entorpecimento geral, mas sobretudo porque revitaliza a força do contexto em que essas palavras ocorrem. Razão pela qual o vernáculo mais anódino conduz os seus poemas a inesperados desvios, ou a feição mais prosaica dos versos, de uma austera simplicidade, frustra o excesso de confiança interpretante, como uma humilhação narcísica. O efeito coloquial noutros poetas embate, remodelando-se, na precisão vocabular de Louise Gluck. E o mesmo se poderia dizer do rigor de A Íris Selvagem no que à sua organização estrutural diz respeito: quase um calendário dos ciclos sazonais («Neve de Primavera», «Pleno Verão», «Crepúsculo de Setembro»), com títulos claros na sua propensão taxonómica («Violetas», «Flores Silvestres», «Trevo»), este olhar lírico sobre um ano de vida, ao ritmo das colheitas, é menos o da aceitação voluntária da ordem natural das coisas, e mais o da consciência hamletiana de que os tempos – o humano, o vegetal, o cósmico, o interior – estão out of joint, e isto é sem cura.

Que não se alimente, portanto, falsas esperanças: aqui, perde-se de novo o paraíso. Mas o que é o paraíso senão o lugar que estamos destinados a perder, onde nos perdemos de nós próprios, entre dúvidas inconsolavelmente ansiosas? Queremos ficar a salvo do medo da morte, achar «a luz branca» que redime tudo, «já não disfarçada de matéria» («Fim de Verão», p. 87). Mas talvez seja antes o medo e a morte que precisem de ser salvos das sombras negras com que os toldamos: pois «quantas vezes devo eu destruir a minha própria criação / para vos ensinar / que é este o vosso castigo: // um só gesto meu instalou-vos / no tempo e no paraíso» («Colheita», p. 97). O nosso equívoco é verticalizar a transcendência, pô-la num além íngreme, cujo bilhete de acesso é pago contra a vida. É colorir a alma com outros tons que não os do próprio corpo, pensando-os como entidades dissociáveis. E ignorar que mesmo «o silêncio da manhã, / os grilos cujas asas ainda não se roçam, os gatos / que no pátio não combatem» («Matinas», p. 31), pela ausência aparente de vida e movimento, pela imagem de abandono que possam sugerir, são já, aqui na terra, o espelho do céu. E quem diz céu, diz desmesura, à luz do grão de areia que contém em si o infinito. Portanto: antes este inferno do que nada, o nada de onde vimos, o não estar cá para assistir ao milagre «[do] açafrão lilás a rebentar em tufos por entre a erva fina» («O Jardim», p. 39), o milagre de chegar ao fim do dia de «mãos vazias» e ponderar se não será isso – «continuar sem receber nenhum sinal?» («Matinas», p. 55) – a face sensível de deus a olhar o mundo pelos nossos olhos.

Deus, o louvor da terra, as vozes misteriosas. A julgar por este léxico, A Íris Selvagem nem parece um livro deste tempo. Seria, aliás, de uma ingenuidade pícara que, nos anos 90, o acto da criação pudesse achar-se tão fervorosamente unido a forças inefáveis, como era a inspiração para os Românticos. No limite de toda a literalidade, afundar as mãos na terra, na humidade do jardim, seria já, e sem qualquer hiato, uma assinatura do poema, uma escrita sem a corrupção do alfabeto, comungando com o daímôn, a força diabólica do Génio. Mas Glück está a par destas manhas, sabe um pouco mais cruamente o que é ser vítima destes desalinhos anacrónicos: «que me façam / o pior, que me / enterrem com os românticos, / que as suas folhas amarelas e afiadas / tombem sobre mim e me cubram» (de «Matinas», p. 33). E mais adiante, noutro poema: «Vá, diz o que pensas. O jardim / não é o mundo real. O mundo real / são as máquinas. Diz abertamente o que qualquer tonto / pode ler no teu rosto: que faz sentido / evitar-nos, resistir / à nostalgia. Não é / muito moderno o som que o vento faz / ao agitar um campo de margaridas: a mente / não consegue brilhar ao segui-lo. E a mente / deseja brilhar, simplesmente, / como brilham as máquinas, / não crescer até ao fundo como, por exemplo, as raízes. […] / Ninguém quer ouvir / as impressões do mundo natural: vão voltar a rir-se de ti; vão troçar, escarnecer-te. / E quanto ao que ouves realmente / esta manhã: é melhor pensares duas vezes / antes de dizeres a alguém o que foi dito neste campo / e por quem» («Margaridas», p. 83).

Pensar duas vezes antes de confessar o inconfessável: que o poema é feito de palavras, mas o ser feito de palavras não dissipa a margem de mistério que todo o poema é, e isto num tempo histórico em que se julga tudo conhecer, no torpor da transparência. Pensar duas vezes antes de dizer que ainda é possível aceder ao halo da natureza, que ainda se pode brincar ao jogo dessa inocência, como se a máquina fotográfica e todos os excessos técnicos não tivessem há muito deposto no sótão, onde se acumula o pó na tralha inútil, o mundo natural como «autoridade ontológica», «como primeira edição do visível» ou «emissora de mensagens imperativas» (Sloterdijk, Tens de Mudar de Vida, p. 36). Não há, nem nunca houve, natureza. Restam-nos imagens e reproduções dela, a eterna nostalgia pelo que nunca tivemos. O mundo é isto que nos chega sempre em segunda mão, eclipsado pela verdade do simulacro, o vórtice onde o real – das flores às imagens das flores, e nós pelo meio – se desrealiza. Mais de dois milénios volvidos, Platão continua à entrada da caverna a dar-nos as boas-vindas.

«Ainda assim», insiste Glück, «é muito comovente ver como te aproximas com cuidado / da orla do prado, de manhãzinha, / quando ninguém te vê.» Talvez tudo se ilumine aí, nessa aproximação, uma vez despojados dos momentos fundadores e das altas epifanias. Repetir «ainda assim», perseverar na concessiva. O gesto é anacrónico, mas escrever também o é, sempre o foi, se acaso é pela escrita que se ousa saber um pouco mais do que o pouco que nos é dado. Manter viva a força do passado, captar os movimentos profundos entre as coisas, «aprender a amar o silêncio e o escuro» («Canção de Embalar», p. 119). Neste sentido, continuar uma tradição poética é saber descontinuá-la, ver melhor as fissuras onde rebate o clarão intempestivo. É ser exigente com aquilo que não é nosso por ser de todos, de todos os tempos e lugares – as palavras, a linguagem de que o poema se faz experiência –, para ampliar o mundo, abri-lo à sua desmesura, o amor fati de Nietzsche: «Tudo o que sabíamos é que não está na natureza humana / amar somente aquilo que nos devolve amor» («Matinas», p. 15). Como no famoso título de Dagerman, a nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer.

Em última instância, é dizer eu sabendo que aí, na promessa incumprida de uma autotransparência, ressoa um nós, o devir múltiplo de tudo em relação a tudo: «Não eu, tonto, não um eu, mas nós, nós – ondas / de céu azul como / uma crítica aos céus: porque / amas tanto a tua voz / quando ser algo / é ser quase nada?» («Scilla», p. 35). Como disse a poeta numa entrevista: «I am endlessly irritated by the reading of my poems as autobiography. I draw on the materials my life has given me, but what interests me isn’t that they happen to me, what interests me is that they seem, as I look around, paradigmatic. We’re all born mortal. We have to contend with the idea of mortality. We all, at some point, love, with the risks involved, the vulnerabilities involved, the disappointments and great thrills of passion. This is common human experience, so what you use is the self as a laboratory, in which to practice, master, what seem to you central human dilemmas» (entrevistada por Grace Cavalieri, 2000).

A agonia do self – que é tanto mais agonizante quanto o ímpeto em circunscrever-lhe uma autonomia, uma unidade coesa na primeira pessoa – é talvez o que mais veementemente se dissipa nas experimentações poéticas e artísticas em geral: o facto de um poema, neste caso, elevar as palavras com que é feito à condição de portas, lugares de passagem e fluxos de metamorfose, e menos à função anquilosante de espelhos, pelos quais se encoraja o Narciso que há em nós a umbigar tudo o que vê. Só assim desposamos a imagem da vida humana à luz do poema «Vento em fuga»: uma vida que não é circular como a vida das flores, mas antes «o voo de um pássaro / que começa e acaba na quietude – / que começa e acaba, ecoando na forma / este arco que vai da bétula branca / à macieira» (p. 37).

Só assim captamos a voz que ressoa por detrás de cada elemento natural, flor, seixo, nuvem, semente, o que quer que brilhe na sua evidência secreta. Como expõe o filósofo Emanuele Coccia, há um «nós» imanente a cada coisa, que ilumina como nada no mundo está ontologicamente separado e, por essa razão, todas as formas de vida, das pedras às nuvens, «formam um halo, um eco da relação que os liga» (A Vida das Plantas, p. 68). Nesta revisão ecológica, todas as vidas contam e se respiram umas às outras, circulando de corpo para corpo, de lugar para lugar, imersos numa atmosfera comum. É porque o mundo devém um estado de imersão que pensar as coisas, ou simplesmente respirar, imaginar, fruir, deixam de funcionar segundo as disjunções ontológicas entre sujeito e objecto, ou entre acção e contemplação. Antes fazem parte de «um universo sem coisas, um enorme campo de acontecimentos de intensidade variável» (p. 52).

Coccia é habilmente sedutor pelo simples facto de recorrer ao próprio charme do mundo para expor a sua tese. Há um entusiasmo inexcedível em descrever como se forma uma nuvem, o fenómeno heliocêntrico, a vida das células, os saltos quânticos – um entusiasmo ao abrigo de qualquer suspeita, de qualquer crise, porque se alimenta reciprocamente dos fenómenos que estuda. Por outras palavras: é inesgotável porque a vida é inesgotável. Toca na alegria imanente à incandescência das coisas vivas, nas quais viveremos mesmo após a nossa morte pessoal. Como a luz irradiada por um prisma, a nossa identidade atravessa e será atravessada pela substância do mundo, que faz mundo com aquilo que somos – e por isso: «Nós somos o futuro, o futuro inconcebível ou o sonho, a antecipação pré-histórica de milhares de formas de vida. […] Fomos mundo antes de nos termos tornado o que somos e voltaremos a sê-lo. Éramos, com os nossos átomos, um fio de erva, um cavalo ou uma casa. Os átomos do nosso corpo permitem-nos que venhamos a ser a água bebida por outros seres vivos, as páginas de um livro lido pelos outros, o ar que outros seres inspiram. […] Tal como, em cada momento, a vida dos outros se torna a nossa: comer, respirar, pensar não têm mais significado que isso, esse transformar da vida que outros viveram na nossa vida própria.» (pp. 188-9).

Por isso, que Louise Glück tenha escolhido as flores para abrir cada eu à sua desmesura imanente – «não um eu, mas nós» («Scilla», p. 35) – constitui, na verdade, menos uma solução poética do que a «metafísica da mistura» captada no seu esplendor actuante. Talvez assim se leia a outra luz, uma luz natural como a memória filogenética, o poema «A Papoila Vermelha», cuja voz se dirige a nós como seus legítimos irmãos e irmãs: «Oh my brothers and sisters, / were you like me once, long ago, before you were human?» (p. 62). O futuro, não a deus, mas ao devir pertence. Até lá, até que evoluamos para uma forma superior e transpessoal de consciência, qualquer que seja a voz que fale será uma voz ferida, o drama de existir sabendo-se mais do que aquilo que se é, humano ou vegetal: «I speak / because I am shattered.»

 

Referências

«Louise Glück. The Academy of Achievement Interview», 27 de Outubro de 2012, entrevista disponível em https://www.youtube.com/watch?v=P1rpGy8XRzU (última visualização: 14/4/2021).

«In the Magnificent Region of Courage: An Interview with Louise Glück», entrevista com Grace Cavalieri, Beltway Poetry Quarterly, 2000, disponível em https://www.beltwaypoetry.com/interview-gluck/ (última visualização: 14/4/2021).

Louise Glück, A Íris Selvagem, tradução de Ana Luísa Amaral, Lisboa, Relógio D’Água, 2020.

Emanuele Coccia, A Vida das Plantas. Uma Metafísica da Mistura, seguido de «Ser o mundo», tradução de Jorge Leandro Rosa, iconografia de Carla Filipe, Lisboa, Fundação Carmona e Costa/Documenta, 2019.

José Gil, Trajectos Filosóficos, Lisboa, Relógio D’Água, 2019.

Peter Sloterdijk, Tens de Mudar de Vida. Sobre Antropotécnica, tradução de Carlos Leite, Lisboa, Relógio D’Água, 2018.

Fotografias de Louise Glück: Katherine Wolkoff

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Categorias: Cultura, Ensaio, Literatura

Acerca do Autor

Diogo Martins

Diogo Martins nasceu em 1986 e é natural de Nine, do concelho de Vila Nova de Famalicão. Doutorado em Teoria da Literatura pela Universidade do Minho, iniciou em 2017 um projeto de pós-doutoramento intitulado "Ousar corromper: (o)caso retratístico em Rui Nunes". Interessa-se por poesia, literatura, cinema e fotografia, e mais ainda pelas relações entre estas e outras artes.

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