A guerra é a economia por outros meios

A guerra é a economia por outros meios

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A entrada formal da NATO nesta guerra entre a Rússia e a Ucrânia, agravada com a invasão do território ucraniano pelo exército russo em 24 de fevereiro, implicaria o começo de uma terceira guerra mundial, em que não só não seriam salvos os Ucranianos, como morreriam milhões de pessoas: uma catástrofe. Quem olha com desdém ou com ingenuidade os internacionalistas que, como eu, se opõem a Putin, à UE e à NATO, defendendo a solidariedade entre os povos, quem acha que a NATO é uma solução, está, de facto, queira ou não queira, a defender uma chacina mundial. Por isso devemos exigir que os nossos Estados não enviem tropas nem armamento nem decretem sanções – são atos de guerra que só levianamente e com total desconhecimento da história da Europa se podem apoiar.

O significado das sanções: empobrecimento geral dos trabalhadores no mundo

As sanções económicas são uma arma de guerra que empobrece os povos. Abatem-se sobre todo o povo russo, ucraniano e europeu, penalizam as oposições na Rússia, castigam o povo ucraniano que aí vive – 2 milhões; punem aqueles que na Europa lutam pela paz. Ajudarão, quiçá, a reforçar o nacionalismo grão-russo e a liderança de Putin. O papel das sanções, bem como a anunciada venda de armas da UE à Ucrânia têm um significado político central que pouco tem a ver com a ajuda humanitária ou a preocupação por parte da UE com regimes autoritários, os apregoados “valores europeus” (que na Palestina, na Arábia Saudita, na Líbia, na Síria, na Polónia e na Hungria são metidos na gaveta e desaparecem amiúde dos media). As sanções são um sinal claro de que a UE, dirigida pela Alemanha e sob a égide da NATO, entrou indiretamente nesta guerra, e nós não fomos consultados.

A Rússia não é o Irão. Estima-se que as sanções impliquem uma contração de 11% do PIB na Rússia e de quase 1% no mundo, sendo que a massa de capitais ardidos acaba por ser maior a nível mundial – uma contração de 11% na Rússia é uma quebra de 150 mil milhões de dólares; de 1% no mundo são 750 mil milhões. O capital arde na fogueira da geoeconomia… Destroem empresas pequenas, aumenta a venda de armas; não há pão, sobram canhões. Uns choram, outros vendem lenços.

Esta contração implicou já que o preço do trigo subiu 50% e o barril de petróleo supera os 130 dólares. Num quadro de ausência de lutas do mundo do trabalho isto significa fome, devastadora nos países periféricos. E queda geral dos salários na Europa Ocidental.

As sanções não são boicotes organizados pelos trabalhadores da produção ou da cultura, e com alvos específicos. Como o seriam uma greve nas fábricas de armamento, ou se os estivadores ou os camionistas se recusassem a carregar armamento para a guerra, ou um grupo recusar-se a cantar na Rússia. Vieram atreladas ainda à censura, de jornalistas, de filmes e até de livros.

Guerra e economia ou economia de guerra

O capitalismo implica uma luta entre patrões e trabalhadores. Mesmo quando não se expressa em greves ou revoluções, exprime-se no dia a dia na luta pelos contratos, ou contra a exaustão laboral. Mas também implica uma luta entre empresas, corporações. E entre Estados que defendem as suas empresas. Ao contrário do que afirmavam os teóricos da globalização, os Estados não perderam força face a um panfletário “capital sem rosto”. Nesta competição doentia que arrasta toda a sociedade, impedindo a cooperação, os Estados são o instrumento fundamental quando a guerra passa a ser a economia por outros meios.

As sanções deixaram de fora 70% das exportações russas – petróleo, gás e combustíveis – de que depende a indústria alemã; são uma forma de expropriação dos bilionários russos (ontem eram “empresários” bons para investir, agora são “oligarcas” a expropriar). A suspensão do código SWIFT tem um efeito na Rússia – empurrá-la para fora da Europa (a Rússia é parte da Europa!) para uma aliança com a China –, o que encaixa com a visão expansionista da NATO, que desenvolve no mar da China, com a Austrália, um cerco militar à China, semelhante ao que desenvolve na Europa de Leste com a expansão da NATO. Os EUA acabaram de aprovar o maior orçamento militar da sua história (US $778 mil milhões), e só a duplicação do orçamento militar alemão anunciado (mais 50 mil milhões) coloca a Alemanha com mais investimento militar do que o orçamento militar russo total (60 mil milhões).

Ironia previsível da história: sob o Governo mais “verde” da Alemanha anuncia-se na UE a energia nuclear como verde (ficou claro agora que enquanto houver guerras a energia nuclear é uma ameaça à humanidade) e a remilitarização do país condutor da UE. A restruturação produtiva (“transição verde”) “para fazer face à crise de 2008, a ser levada até ao fim, implicaria a implosão dos direitos conseguidos pelos trabalhadores, do Estado social, a pretexto dos subsídios públicos às “energias limpas”, que – mesmo com externalização da parte suja para outros países – seriam insustentáveis. É neste quadro que, segundo vários pensadores alemães, surge a remilitarização da Alemanha – restruturação verde se possível, militar se necessário.

Uma Ucrânia entre os EUA/UE e a Rússia

A história é a chave da compreensão do mundo. Mas o segredo desta chave, desde a revolução industrial, é a teoria do valor-trabalho. A Ucrânia tem um governo neoliberal, com uma das populações mais pobres da Europa, onde se aplicaram as receitas do FMI (onde estão à mesma mesa EUA e Rússia). A Ucrânia perdeu 8 milhões de pessoas em dez anos para o exílio económico (emigrantes). Tem um PIB anémico, porque é um país com 14% da população na agricultura, pequenos camponeses, e com a região industrial da bacia do Donbass em guerra civil, da qual fugiam investidores. A Ucrânia tem das terras mais produtivas do mundo (1/4 das terras negras do mundo), e, até 2020, era proibida a venda dessa propriedade, o que mudou então com Zelensky. Está em marcha um megaprocesso de venda e concentração de propriedade dessas terras superprodutivas.

A Ucrânia, que passou legislação a impor o ucraniano como língua, num país bilingue, também tem os seus “oligarcas” e o Governo é cúmplice da extrema-direita – a Ucrânia é a base de treino militar europeu da extrema-direita. Ao lado está a Polónia, cujo governo, apoiado pela extrema-direita, recebe agora o apoio militar da UE e da NATO, e que anunciou há 2 meses a construção de um muro contra os refugiados. Pouco antes tinha-se aí realizado a conferência europeia da extrema-direita.

Nada disto autoriza a conclusão de que a Rússia está em mera autodefesa ou a “desnazificar” a Ucrânia. A proteção dos russos de Donetsk e Lugantsk foi apenas uma desculpa perfeita e ansiada pelo Estado russo. Este vê-se a braços com a ameaça da sua própria desintegração e diminuição da sua área de influência. Acabou de esmagar, com a felicitação pública dos EUA, a revolta popular do Cazaquistão – no Ocidente chamaram-lhe “pacificação”. O Estado russo convive bem com a sua própria extrema-direita, que em Moscovo não é perseguida, ao contrário dos ativistas antiguerra.

Não existe paz na guerra

Os impérios são antigos, mas o imperialismo é novo. Nasceu na época contemporânea em que o capitalismo passou de concorrencial a monopolista, no fim do século XIX, quando todos os espaços da Terra tinham sido conquistados e divididos – a partir da divisão colonial no congresso de Berlim de 1885 –, e tudo culminou na I Guerra Mundial, que “ia acabar no Natal” e durou 4 anos. Até a Revolução Russa lhe ter posto termo. Imperialismo quer dizer que um capitalismo não pode sobreviver sem avançar sobre o outro.

Os que apoiam Putin, de um lado, ou a NATO, de outro, vivem segundo o modelo da guerra fria, acreditam que revoluções são uma miragem ou contraproducentes, e que por isso a ameaça permanente da guerra seria condição para a paz. Ignoram que enquanto existirem impérios, dois, três, ou um, a guerra e o terror serão a realidade porque o imperialismo implica sempre, no quadro da concorrência, o expansionismo.

À crise de 2008, às medidas de gestão da pandemia e à ascensão da China junta-se uma crónica crise de sobreprodução (na Idade Média as crises eram de escassez, no capitalismo são de sobreprodução) que dura desde a década de 1970 e que foi sendo matizada com o brutal crescimento das dívidas públicas (o fim de Bretton Woods), os investimentos estatais nas empresas e a abertura do mercado chinês, que duplicou a força de trabalho à escala mundial. O neoliberalismo é isto, Estado económico máximo, garantido pelas dívidas “públicas”, Estado social mínimo para as pagar. E agora Estado militar. Os liberais e a direita, que nunca saíram à rua por um direito laboral ou social, foram os primeiros a fazer rufar os tambores da guerra, pedindo a intervenção da NATO.

Quando entre 2008 e 2012 estive, com vários colegas do mundo inteiro, em conferências de análise da crise (algumas na Alemanha), e dizíamos que a única forma de transformar o dinheiro impresso em 2008 em capital era com uma produção militar à escala de uma guerra mundial, éramos olhados como extraterrestres. A guerra e as revoluções aceleram a história – hoje estamos à beira de uma guerra mundial, e todos acham normal pronunciar-se a mais sórdida de todas as expressões: guerra mundial.

Erradicar a fome com uma economia planificada e dirigida às necessidades custaria ao mundo 45 mil milhões de dólares/ano, metade do que a Alemanha vai investir agora em armamento. Não foi Roosevelt que terminou com a crise de 1929. As taxas de desemprego de 1929 só foram revertidas na totalidade quando os EUA entraram na II Guerra Mundial, em 1941. Foi a economia de guerra, ou seja, transformar desempregados em soldados, forças produtivas em fábricas de máquinas de destruição, que reverteu a crise de acumulação. Em 1937 o New Deal passou a War Deal, cortaram-se 800 milhões de dólares ao seguro social e aos trabalhos públicos, e aumentaram-se os gastos militares,  que cresceram 400 milhões de dólares em 1939.

No meio desta imensa complexidade o essencial é isto. Nenhuma liberdade chegará à boleia de um tanque, russo, alemão ou americano. Foi assim em 1956 na Hungria, em 1968 em Praga, foi assim no Afeganistão e na Líbia, é assim na Palestina. É assim hoje na Ucrânia. Enquanto aceitarmos que os Estados são os únicos atores da história e não entrarem em cena as resistências populares e de trabalhadores, o que teremos é mais guerras. Os Estados são os responsáveis, não as populações.


Obs: artigo originalmente publicado em Jornal i e republicado no blogue da autora Raquel Varela | Historiadora, tendo sofrido ligeiras adequações editoriais na presente edição.

Imagem: Hero / Pixabay


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Acerca do Autor

Raquel Varela

Raquel Varela é Historiadora, Investigadora e professora universitária da FCSH da Universidade Nova de Lisboa / IHC / Socialdata Nova4Globe, Fellow do International Institute for Social History (Amsterdam) e membro do Observatório para as Condições de Vida e Trabalho. Foi Professora-visitante internacional da Universidade Federal Fluminense. É coordenadora do projeto internacional de história global do trabalho In The Same Boat? Shipbuilding industry, a global labour history no ISSH Amsterdam / Holanda. Autora e coordenadora de mais de 2 dezenas de livros sobre história do trabalho, do movimento operário, história global. Publicou como autora mais de 5 dezenas de artigos em revistas com arbitragem científica, na área da sociologia, história, serviço social e ciência política. Foi responsável científica das comemorações oficiais dos 40 anos do 25 de Abril (2014). Em 2013 recebeu o Santander Prize for Internationalization of Scientific Production. É editora convidada da Editora de História do Movimento Operário Pluto Press/London e comentadora residente do programa semanal de debate público O Último Apaga a Luz na RTP. Entre outros, autora do livro Breve História da Europa (Bertrand, 2018).

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