A ‘desmaquinização’ do humano

A ‘desmaquinização’ do humano

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A notícia passou sem grande destaque nem impacto, não apenas por culpa da pandemia centrar ainda as atenções, mas sobretudo por não ser nada de especialmente surpreendente ou inesperado: há uns dias atrás o Continente inaugurou em Lisboa a sua primeira loja sem caixas. O elevado custo do investimento numa loja tão pequena (mais de um milhão de euros para 150 metros quadrados), associados aos custos da manutenção da tecnologia (150 câmaras e 400 sensores nas prateleiras), mostra de forma clara que não se tratou de poupar nos custos. Para já, bem entendido. Como é próprio do negócio, ninguém dá aqui ponto sem nó, e esta experiência visa desenvolvimentos que substituirão pessoas (pagas pelo custo mínimo da sua reprodução enquanto pessoas) por máquinas (cujos custos de reprodução enquanto «espécie» são ainda mais baixos).

Deixo de lado a questão da privacidade, ou, se se preferir, do incómodo de ter, literalmente, cada metro de solo que pisamos vigiado por uma câmara, e de usarmos formas de pagamento que permitem que quem gere o sistema saiba, com detalhe, tudo o que comprámos, desde um bálsamo para as hemorroidas (suponho que haja), à comparação entre o álcool destilado que bebemos e aquele outro, gel, com que nos livramos dos vírus reais e, sobretudo, dos imaginários. Em nome da eficácia, ou do prazer de nos sentirmos geek, cedemos a nossa privacidade e consentimos na devassa, mas este é um assunto melindroso que deixo em suspenso, para me centrar no que estas mudanças significam para a nossa relação com o trabalho.

Nada mudou nem parece estar em vias de mudar no mundo do trabalho

Pôr máquinas a fazer o trabalho por nós devia ser uma bênção, mas há muito que deixou de o ser. Desde o início do processo de industrialização que se observa um estranho fenómeno: em vez de darmos valor à possibilidade de nos libertarmos do trabalho, aprendemos com as máquinas a trabalhar como elas. Frederick Taylor deu nome a toda uma filosofia de trabalho que fez do trabalhador uma mera peça, facilmente substituível, da engrenagem produtiva que o capitalismo gerou.

Antes dele, Andrew Ure, professor em Glasgow e entusiasta da nova forma de produzir, percebera a essência da relação entre o trabalho e o avanço tecnológico: «Quando o capital põe a ciência ao seu serviço, a mão-de-obra recalcitrante recebe uma lição de docilidade»! Exatamente o que vem sucedendo às classes operárias desde há mais de dois séculos: lições de docilidade. Na verdade, uma só lição bastou sempre: «Ou te submetes e te tornas numa máquina produtiva, ou não tens lugar no magnífico mundo que o capital produz». Dos operários têxteis, ou das minas, aos caixas de supermercado, ou, futuramente, aos camionistas de longo curso, desde o final do século XVIII ao início do século XXI, nada mudou nem parece estar em vias de mudar.

«Ou aceitas ganhar (ainda) menos ou és substituído por uma câmara e três sensores»!

Deixar que a máquina nos substitua ao trabalho é uma ótima ideia. Mais ainda quando a tecnologia permite já, e vai permitir cada vez mais, conceber máquinas tão sofisticadas que conseguem responder a quase todas as atividade humanas. Importa perceber, no entanto, que esta «humanização da máquina» só faz sentido se for acompanhada de um movimento simétrico, o da «desmaquinização do humano». Trata-se, de algum forma, de voltar a uma condição que nos foi roubada quando nos ensinaram que nada éramos fora do trabalho, que nada era alcançado sem esforço, que toda a alegria advém do esforço e do suor pingando na malga do caldo. Porém, se não formos capazes de arrepiar caminho Andrew Ure voltará a ter razão e os caixas de supermercado recalcitrantes, e outros a seguir a eles, receberão a sua lição de docilidade: «Ou aceitas ganhar (ainda) menos ou és substituído por uma câmara e três sensores»!

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Vestir de Preto

Imagem: Sonae (Labs.C)

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