Morreu Otelo, um dos rostos maiores do 25 de Abril

Morreu Otelo, um dos rostos maiores do 25 de Abril

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Morreu Otelo.

Otelo Saraiva de Carvalho, um dos ícones maiores associados ao 25 de Abril, morreu hoje, 25 de julho, aos 84 anos de idade. Otelo foi o responsável que gizou a arquitetura da estratégia militar do golpe de Estado, ocorrido em 1974, que pôs fim à guerra colonial portuguesa e à ditadura do Estado Novo em Portugal, bem como por dirigir as operações do Movimento das Forças Armadas (MFA) a partir de um posto de comando clandestino instalado no Quartel da Pontinha, em Lisboa.

O então major designaria a operação militar do 25 de Abril “Viragem Histórica”, desde logo antecipando um desfecho positivo para o golpe. Nesse quadro, haveria de combinar com jornalistas dos Emissores Associados de Lisboa e da Rádio Renascença as canções-senha para a ação – primeiro de E Depois do Adeus, de Paulo de Carvalho, e depois Grândola Vila Morena, de José Afonso – que dariam o sinal para o arranque das operações. Mas, curiosamente, Otelo comprara, para a noite de 24 de abril, bilhetes para assistir à Traviata, no Coliseu dos Recreios, cantada pela soprano australiana Joan Sutherland.

Com a morte de Otelo, desaparece mais um dos principais rostos do Movimento dos Capitães. A sua casa foi um dos centros a partir dos quais se preparou o derrube de Marcelo Caetano, ali se tendo realizado diversos encontros e reuniões.

Otelo e a Revolução dos Cravos

Otelo fez parte do Conselho da Revolução, tendo sido comandante do Comando Operacional do Continente (COPCON) até ao 25 de novembro de 1975. Acabou preso por três meses pelos seus atos considerados mais violentos, mas saiu da prisão, e foi então que se candidatou à presidência.

O derrube do poder político então instituído acabaria conhecido em todo o mundo como a Revolução dos Cravos, por ser uma das mais belas e pacíficas revoluções da História. Marcou, então, o fim de uma era.

Homem-chave do Dia da Liberdade, mas também do Processo Revolucionário em Curso (PREC) ao longo dada Revolução dos Cravos, Otelo nunca foi uma figura consensual. Major à época da revolução, foi nomeado brigadeiro do COPCON para ajudar a implementar a democracia em Portugal. À medida que as divisões internas do MFA se foram acentuando, Otelo tornou-se um dos militares mais radicais do movimento.

Candidaturas à Presidência da República

Dado o apoio popular que detinha, Otelo candidatar-se-ia a duas eleições presidenciais, logo em 1976 e, mais tarde, em 1980, tendo-as perdido para Ramalho Eanes. Na primeira eleição para a presidência no pós-25 de abril, em 1976, Otelo foi o segundo mais votado, com cerca de 16,5% dos votos. Na segunda candidatura alcançou apenas cerca de 1,5% dos votos.

A associação às FP25

Mais tarde o seu nome ficaria indelevelmente associado às FP25, organização terrorista de esquerda radical fundada no período pós-revolucionário e que atuou durante as décadas de 1970 e 1980 e que foi responsável pelo assassinato de 17 pessoas a tiro e à bomba em vários atentados e assaltos. A 25 de novembro de 1983 recebeu a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade, perante um coro de protestos, por já estar acusado de ter liderado a organização terrorista FP-25. Acabando por ser preso, em 1984, e condenado, a associação de Otelo Saraiva de Carvalho à organização terrorista deixou boa parte do país incrédulo e desacreditou a sua imagem até ao fim da vida, perante o público em geral.

Libertado cinco anos depois, após recurso da sentença condenatória, ficou a aguardar julgamento em liberdade provisória. Em 1996, a Assembleia da República aprovaria uma amnistia para os presos do Caso FP-25, ficando em liberdade definitiva desde então.

A última entrevista

Na sua última entrevista, concedida ao Jornal Nascer do Sol, Otelo Saraiva de Carvalho lamenta não ter conseguido a transformação da sociedade por si almejada com a Revolução. “Havia um grande entusiasmo e um grande dinamismo da população. Havia a possibilidade de se criar uma democracia direta em que o povo participasse ativamente na vida política do país e apresentasse os seus representantes, sem ser a nível partidário, que pudessem tomar conta de tudo o que fosse atividade política das comunidades. Gostava que essa participação fosse efetiva e viva. Podíamos ter criado um exemplo novo de regime que não passasse por aquilo que já era para mim a caducidade da democracia burguesa representativa, de uma classe com interesses e que é dominante. Podíamos ter feito uma coisa diferente, mais viva e que tivesse ido mais profundamente ao encontro dos interesses da população. Não foi possível”.

Recorda também o “enorme entusiasmo” com que viveu o período revolucionário. “Vivi e vi esses dias com um grande entusiasmo. E foi isso que me levou a considerar, depois de discussões com o Vasco Lourenço e o Melo Antunes, a possibilidade de que podia surgir um novo regime político que pusesse a grande massa trabalhadora do país num caminho em que seria possível abrir espaço para fazerem parte do poder. Não foi possível. Na altura, os meus camaradas ligados ao 25 de Novembro avançaram e eu parei imediatamente a minha atividade considerando que nunca entraria em guerra aberta ou em luta contra aqueles que tinham feito comigo o 25 de Abril”.

“Ainda há inimigos do 25 de Abril?”, perguntaram-lhe também nessa ocasião. “Então não há, pá. A petição que foi posta a correr [contra as cerimónias do 25 de Abril de 2020] estalou logo de 300 para quase 40 mil pessoas que se assumiram contra a sessão solene na Assembleia da República. Há pessoas com saudades do conservadorismo de Salazar. Há pessoas com saudades de ter alguém que mande, em vez de ter alguém que comande”, respondeu.

‘Memórias’ de Otelo

O controverso coronel foi autor de vários livros nos quais descreve os seus pontos de vista sobre a Revolução e o PREC, mas também sobre o julgamento em que foi associado às FP25. São eles: Alvorada em Abril, O Dia Inicial, Cinco Meses que Mudaram Portugal, A Força da Unidade Popular, O Povo É Quem Mais Ordena e Acusação e Defesa em Monsanto.

Sobre o livro Alvorada em Abril, em edição da Livraria Bertrand, com prefácio “Um Homem do nosso Destino” de Eduardo Lourenço, em que entre outras coisas se pode ler que “estas páginas desenham em filigrana o retrato de um Otelo antes de outro Otelo e completam assim uma imagem que um excesso de franqueza e mesmo de ingenuidade política que lhe são inerentes reduziu a um estereótipo insignificante, por simplista e malevolente”.

Num outro prefácio a um livro de Otelo, O dia inicial, publicado em 2011, Eduardo Lourenço virá a proclamar este livro “incontornável mas, como acontece quase sempre entre nós, distraidamente lido”.

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Otelo sofria de doença cardíaca

Depois do falecimento, Vasco Lourenço explicou que Otelo Saraiva de Carvalho se encontrava doente e internado no Hospital das Forças Armadas onde morreu durante a noite. Em março de 2020, Otelo já tinha estado internado praticamente duas semanas com uma insuficiência cardíaca.

Depoimentos (coletados pelo ECO – Economia Online):

“Quem com ele privou destaca-lhe as características de liderança, mas também o otimismo. “Um homem de coração enorme”, disse Vasco Lourenço, em declarações à RTP1, sublinhando que Portugal tem de lhe “estar grato”. “Um homem cheio de espírito de intervenção que ia atrás das suas ideias repentinas”, recordou, por seu turno, o capitão de Abril, Garcia dos Santos. “Nunca teve inimigos”, garante Paulo Moura, autor da biografia de Otelo, ouvido pela SIC Notícias, dando como exemplo o general Ramalho Eanes que o mandou deter, na sequência dos acontecimentos do 25 de Novembro. Foi libertado três meses mais tarde. Otelo voltou a ser detido em 1985 pela liderança das FP-25 de Abril, uma organização terrorista de extrema-esquerda, que operou em Portugal entre 1980 e 1987, e à qual foi imputada a autoria de 13 mortes e de dezenas de atentados. Por isso, para muitos, “Otelo é considerado uma figura controversa”, tal como sublinhou Nuno Gonçalo Poças, que escreveu um livro sobre a amnistia do Processo FP-25 de Abril, na SIC Notícias.

“É ainda cedo para a História o apreciar com a devida distância”diz Marcelo Rebelo de Sousa, numa nota na página oficial da presidência da República. “No entanto, parece inquestionável a importância capital que teve no 25 de abril, o símbolo que constituiu de uma linha político-militar durante a revolução, que fica na memória de muitos portugueses associado a lances controversos no início da nossa Democracia, e que suscitou paixões, tal como rejeições”, acrescenta o Chefe de Estado, sublinhando que está “consciente das profundas clivagens que a sua personalidade suscitou e suscita na sociedade portuguesa”.

“A capacidade estratégica e operacional de Otelo Saraiva de Carvalho e a sua dedicação e generosidade foram decisivas para o sucesso, sem derramamento de sangue, da Revolução dos Cravos”, sublinha o Executivo num comunicado enviado às redações. “Tornou-se, por isso, e a justo título, um dos seus símbolos. Neste dia de tristeza honramos a memória de Otelo, como um daqueles a que todos devemos a libertação consumada no 25 de Abril e, portanto, o que hoje somos”, acrescenta a mesma nota.

O presidente da Assembleia da República homenageou “o maior símbolo individual do Movimento das Forças Armadas”, que concretizou o sonho de todos os que “ansiavam por viver em liberdade”. “Apesar dos excessos que se possam apontar, nomeadamente no período pós 25 de Abril, Otelo Saraiva de Carvalho foi, e será sempre considerado, o maior símbolo individual do Movimento das Forças Armadas”, pode ler-se numa mensagem de pesar de Eduardo Ferro Rodrigues, a que a Lusa teve acesso. “No momento do seu desaparecimento, e pelo seu decisivo contributo, é justo render-lhe a mais sentida homenagem”, enalteceu.

“Sobre o falecimento de Otelo Saraiva de Carvalho deve registar-se, no essencial, o seu papel no levantamento militar do 25 de Abril. O momento do seu falecimento não é a ocasião para registar atitudes e posicionamentos que marcam o seu percurso político”, refere uma nota do gabinete de imprensa do PCP.

Rui Rio reconheceu “o papel corajoso e decisivo” de Otelo no 25 de Abril, considerando que será a história, com isenção, que avaliará o que “fez de bom e de mau”. “O dia da morte de Otelo Saraiva de Carvalho é momento para reconhecer o seu papel corajoso e decisivo no 25 de Abril e na conquista da liberdade”, disse Rui Rio, no Twitter.

“Uma dívida de gratidão” porque é a ele que Portugal “deve a democracia e a liberdade”, sublinha a líder do Bloco de Esquerda, Catarina Martins em declarações à Sic Notícias. “Uma figura maior do que a história”, disse ainda nas redes sociais.

“O CDS regista com tristeza” a morte de Otelo Saraiva de Carvalho, disse o vice-presidente do partido Miguel Barbosa assegurando à Lusa que o partido “não se deixa embriagar pela história”, naquele que considera ser “um dia agridoce para os portugueses”.

“Era um prático sem formação ideológica”, salientou Ana Gomes, explicando assim o seu papel nas FP-25 de Abril. “Inebriado pela dinâmica revolucionária, deixou-se instrumentalizar por outras pessoas com ideologia totalitária e anti-democrática“, disse em declarações na SIC Notícias, sublinhando que, “em política, a ideologia conta”, “as referências de ideias e objetivos, valores e princípios que orientam a ação prática”, porque “quem é um tático tanto pode trabalhar para um lado como para o outro” e “terá sido isso que explica a história de Otelo Saraiva de Carvalho”.

Para a antiga dirigente do extinto do Partido Revolucionário do Proletariado (PRP), movimento que exerceu atividade clandestina através das suas Brigadas Revolucionárias (no PRP-BR), Isabel do Carmo, com o desaparecimento do militar e estratego do 25 de Abril de 1974, “acaba também uma época e uma utopia”.

O desaparecimento de Otelo ganha um certo simbolismo dada a proximidade dos 50 anos do 24 de Abril, defendeu a historiadora Irene Flunser Pimentel, ouvida pela RTP3″.

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Imagens: 0) GDUP/EPhemera, 1) GDUP/Henrique Matos

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