Democracia | As maiorias intolerantes

Democracia | As maiorias intolerantes

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O que é que está errado no mundo? A fome, a guerra e as epidemias? Poderá ainda assustar, mas já não tira o sono como no passado. Em rigor, a sobrealimentação mata mais do que a fome; os ódios tribais e os intolerantes fundamentalistas matam mais que as guerras tradicionais; e os produtos processados, espalhados na cadeia alimentar, têm provocado mais baixas do que muitas das epidemias do passado. São, portanto, estas as guerras surdas que vivemos, são estes os problemas irresolúveis com que nos debatemos. E continuamos a não saber viver com isto. A poderosa máquina da alta finança e da indústria tem obtido avultosos ganhos na promoção deste modo de vida consumista. Por arrastamento, educa-se no sentido individual, competitivo, impiedoso e egoísta. Acredita-se que a felicidade é diretamente proporcional à riqueza acumulada. Apesar dos avisos da natureza, continuamos a viver na ilusão materialista e na alienação consumista. Este adormecimento coletivo divide, diferencia, hostiliza, rejeita e persegue quem é diferente da maioria.

A ditadura das maiorias é absolutamente intolerante, acéfala, ignorante, de mau gosto, estúpida e mal-educada. A má literatura vende como pãozinho quente; as caminhadas e corridas por razões irrelevantes entopem as artérias das cidades; os mega-concertos proliferam por todo o lado; as discotecas são cada vez maiores e cada vez mais iguais; e as televisões e a internet das coisas alienam como nunca. Milhares de pernas a correr, milhares de corpos a dançar, milhares de comunicações a acontecer, milhares de olhos a ver. Haverá nestes milhares o prazer individual, a pura contemplação e fruição do momento, a verdadeira palavra no olhar, o gozo inebriante de se sentir amado, a sólida presença do eu no espaço e no tempo?! Tenho dúvidas. Afinal, já não se ouve música como nos anos 80 do século passado.

Mas não é o papel deitado ao chão, o carro em cima da passadeira, o vernáculo na linguagem, o atropelo da ética no trabalho, a violência no desporto, o que mais assusta no comportamento coletivo. É a intolerância assente em reações emotivas muito superficiais. A maioria não suporta o diferente, o escuro, o muçulmano e o estranho porque têm outra cor da pele, rezam a outro deus, falam outra língua, comem cães e gatos, cheiram mal, roubam os nossos empregos, usam tatuagens e outros adereços e cantam e dançam de forma estranha. E a intolerância selvagem baseia-se neste curto-circuito irracional: se alguns dos romenos que entraram em Portugal cheiram mal e vivem do roubo, logo todos os romenos são sujos e ladrões; se algumas das brasileiras que entraram em Portugal se tornaram dondocas ou prostitutas, logos todas as brasileiras são…

Estas falsas generalizações arrastam racismo e xenofobias. Nada disto é novo na Europa. Sempre se viveu de forma sensata o fenómeno da emigração, pois era controlado politicamente, limitado, encorajado e programado ou aceite pelo país de acolhimento. Mas o que hoje se vive, as migrações, é um fenómeno de outra grandeza. «Sejam violentas ou pacíficas, são como os fenómenos naturais: acontecem e ninguém consegue controlá-las.» Estes fenómenos incertos, de grande mobilidade, por razões de miséria, fome, guerra ou violência são algo de novo e desafiador para a Europa. E os partidos de extrema direita, ou outros na proximidade ideológica, aproveitam este medo coletivo e dizem o que as massas querem ouvir: chega de invasão, não temos obrigação moral de ajudar os refugiados, não fomos nós que lhes fizemos mal; eles são muitos, vão pôr em causa os nossos empregos; a Europa é dos brancos, se não travarmos isto um dia eles serão a maioria e não tarda estamos a eleger um presidente muçulmano ou do Magrebe, imponhamos as fronteiras e cerremos fileiras contra esta invasão. «Há sem dúvida um fluxo imparável de sul para norte (…) O Terceiro Mundo está a bater às portas da Europa, e entra mesmo quando a Europa não está de acordo. O problema já não é decidir (como os políticos fingem em acreditar) se se admitem em Paris raparigas estudantes com chador ou quantas mesquitas devem erigir-se em Roma.

No próximo milénio (…) a Europa será um continente multirracial, ou se preferirem, “colorido”. Se vos agradar, será assim, e se não vos agradar, será assim na mesma.» Portanto, quer queiramos ou não, assistir-se-á na Europa a uma grande «mestiçagem de culturas». Pode a Hungria levantar arame farpado, a Itália recusar acolhê-los, Malta seguir igual caminho, a Áustria virar à direita, a Holanda evitar o contágio, mas o fenómeno já começou e é imparável. Nada de novo a oeste. A América do senhor Trump já há muito passou por este processo. Em Nova York coexistem diversas culturas que têm somente em comum a lei e a língua. Chineses, paquistaneses, coreanos, porto-riquenhos são grupos separados que mal falam ou dominam a língua da América. A maioria branca da big city ou é judia (45%) ou uma mistura entre italianos e irlandeses, judeus e polacos. Logo, apesar das maiorias acríticas e intolerantes, o futuro da Europa é a América de hoje e o futuro desta será outra coisa qualquer que nos escapa. Nunca se sabe o que vai na cabeça do homem laranja.

Imagem: Racism (Paula Costa; colagem).

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Categorias: Crónica, Sociedade

Acerca do Autor

Domingos Manso

Domingos Manso de Araújo, nasceu há 54 anos, em Braga. É professor do quadro da Escola Secundária D. Sancho I, V. N. Famalicão desde 1989. Licenciou-se na Faculdade de Filosofia de Braga e fez mestrado em Filosofia da Educação na Universidade do Minho. Escreve na Revista Sancho Notícias e é colaborador permanente no jornal Ecos da Gravia, Valadares, São Pedro do Sul.

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