A falsa questão da demografia e o roubo das pensões

A falsa questão da demografia e o roubo das pensões

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Não há nenhum problema demográfico na segurança social. Pediram-me para explicar porque tal, de facto, não acontece. É fácil. Deixem-me contar-vos com a história da minha família, que é igual à de milhões de portugueses, e que deve ter muitos erros porque é feita de memórias e testemunhos – pouco rigorosa, portanto – e de interpretações minhas feitas com menos dados do que gostaria. Escolhi a linha materna.

O meu bisavô materno foi para África, algures no início do século XX, e veio de lá com bastante dinheiro. Como? “É melhor não sabermos”, disse uma vez a minha mãe, mulher de esquerda, que lutou contra o colonialismo e sabe que ninguém fica rico a trabalhar. Bom, ele regressou e comprou muitas terras e pinhais. Na zona de Alcobaça. Tinha a fonte (ainda se chama na aldeia a Fonte do Africano, alcunha que ele ganhou quando regressou) e o Moinho (a minha avó, sua filha, foi moleira), portanto tinha os meios de trabalho autónomos. Era um camponês, médio proprietário, de um campesinato muito pobre. Dos 16 filhos, 11 morreram. Cresceram 5, um dos quais foi para o Brasil. Duas, mulheres, foram retiradas da escola aos 9 anos de idade, para irem trabalhar a terra de sol a sol – a minha avó e a minha tia Adília.

A minha amada avó Olívia era doce. Só chorava, contida e forte, por uma razão – quando contava o momento em que o pai a tirou da escola. Estudar para ela era a coisa mais bonita do mundo. Vivi com ela durante quase 1 ano, e foi também com ela com quem passei muito tempo da minha infância. Com ela vos contarei porque nos estão a roubar as reformas (sim, as reformas são salário nosso, só que entregue mais tarde) e porque não há problema algum de natureza demográfica.

Veio a crise de 1929 e o meu avô Africano perdeu muito. Ficaram com terras para trabalhar, pomares, alguns pinhais, e o suficiente para vender algumas terras para mandar um dos filhos para o exército, onde se tornou um aluno brilhante, um militar, que chegou a Brigadeiro e escolheu como destino fazer a guerra colonial contra os movimentos de libertação. Nada que nos deva orgulhar – todos os sobrinhos foram contra o fascismo e a guerra, ao menos isso. Era o tempo em que mobilidade social – passar de classe – se dava ou pela Igreja ou pelo Exército ou casando, havendo também casos mais raros de mulheres educadas nas freiras que faziam um “bom casamento” (conta-o, aliás, a Maria Filomena Mónica nas suas memórias, foi assim que ela assumidamente passou de classe social).

Entretanto esta forma de mobilidade social começava a gripar ao mesmo tempo que capitais estrangeiros que procuravam lucros aquando da reconstrução do pós-guerra, que permitiram desenvolver o país a nível industrial e que precisava de quadros e abriu à Universidade, ainda na ditadura, à média e até pequena burguesia rural.  Assim, enquanto na aldeia da minha avó uma grande parte, porventura a maioria, ia para França, viver em barracas, ser operário na Renault, a minha avó, que teve 5 filhos, através dela e do meu tio, que sustentou de facto os estudos, conseguiram mandar todos os filhos estudar. Uma proeza. A maioria do país proletarizava-se, estes educavam-se e saíam do destino – medieval – da vida no campo (hoje idealizada). A minha mãe, que foi directamente educada pelo meu tio Brigadeiro, que não tinha filhos biológicos, tornou-se Investigadora de genética florestal. Basicamente saíram da Idade Média.

A minha avó, com quem vivi 1 ano porque não havia vaga na creche e porque na altura a família alargada era uma realidade, avó que nunca foi pobre ou perto disso, trabalhava a terra com enxada, tinha um burro (Baltasar, se bem me lembro), levava às costas um instrumento de sulfatar os pomares, pesadíssimo; apanhava caruma na carroça e espalhava-a com a força do seu corpo e a minha pequena ajuda. O meu avô tinha morrido de forma trágica cedo – ele tinha sido resineiro – o Zeca Afonso fez uma música aos resineiros daquela aldeia – lenhador, pedreiro, e agricultor. Ainda estamos na Idade Média.

Naquela altura “segurança social” era condenar uma das mulheres a cuidar dos idosos – era isso a segurança social pré capitalista. Portanto, se não fosse tudo isto, uma das minhas tias, ou mãe, teria como destino cuidar da minha avó e dos meus tios quando fossem idosos. Mas o capital entrou por todos os poros, tirando as mulheres de casa e do campo, e a revolução conquistou a segurança social para todos.

A minha avó vendia batatas, maçãs, pêssegos, cebolas, que alimentavam as cidades onde os operários da Lisnave e da CUF trabalhavam nos anos 60. Como os preços foram mantidos muito baixos pela ditadura para fixar mais baixo o preço do salário, a minha avó trabalhava de sol a sol e não tinha reforma, segurança social. Quando veio a revolução decidiu-se, com lutas, que os camponeses que não contribuíram para a segurança social contribuíram brutalmente com trabalho que alimentou a indústria. Pelo que se criou o “regime não contributivo” para tentar fazer alguma justiça a estas pessoas. Mas com um valor baixíssimo. 150, 200, 300 euros, mais de 1 milhão de pensões ainda têm estes valores, grande parte veio do regime não contributivo. Grande parte são mulheres domésticas, que cuidavam de crianças, idosos e maridos, garantindo tudo em casa, que foi o caso da minha outra avó querida, Celeste.

Quando a minha mãe foi trabalhar tinha um curso superior de 5 anos, bom cientificamente, um mestrado na Dinamarca. E depois um doutoramento. Tinha carro para ir às suas experiências, espalhadas pelo país, não ia de carroça; tinha telefone no gabinete (na aldeia só havia um telefone); tinha mais tarde computadores; laboratórios; e trabalhava em equipas. Isso significa que a minha mãe produz 5 vezes mais em média (na verdade é uma média, será ainda mais) do que a minha avó, que nunca estudou nem nunca deixou o campo medieval. A produtividade, isto em contas de há 7 anos, tinha aumentado em média 5 vezes, ou seja, mesmo que a maioria das pessoas fosse velha e não trabalhasse é preciso muito menos gente para sustentar a segurança social.

Agora, como eu tenho que ir trabalhar, e cuidar da minha produtividade vou concluir rapidamente – o dinheiro destas pessoas que durante 40 anos pagaram a sua reforma, é seu, não é do Estado, foi usado para pagar dívida pública (que é privada), perdas das empresas, ditas “ajudas”, até salários das empresas, layofs, ou seja, lucros. Até um altar do Papa por ter lá ido parar porque há muito que o Estado gere a segurança social misturando-a com outros impostos. Como se fosse um bolo único. Por isso se fala em roubo das pensões. Porque o dinheiro é das pessoas, não é das empresas nem do Estado.

A isto acresce o busílis da questão: que a minha mãe reformou-se com uma reforma de topo de carreira e os que hoje fazem o trabalho dela ganham como bolseiros 1100 euros. Ou seja, menos de metade. Ora a segurança social vive dos descontos de hoje. E hoje quem desconta ganha metade de quem já descontou.

O que a Fundação Francisco Manuel dos Santos, e o seu Pordata tem defendido isso sistematicamente, e todos os governos, e os media na sua maioria, sem crítica, recusam admitir é que quando o Pingo Doce, dono do Pordata e da Fundação FMS, emprega pessoas nas caixas de supermercado por 700 euros, e gestores de loja por 900 euros, e o governo professores por 1000 euros e médicos por 1500 euros, estão a destruir a segurança social. Não porque as pessoas estão mais velhas, mas porque os mais novos ganham miseravelmente e não descontam para os mais velhos.

Finalmente as empresas como a EDP criaram milhares de empresas, pequenas, que vivem dependentes da EDP, na EDP estão os lucros, nas pequenas os prejuízos e o pagamento dos trabalhadores. Porque pagam por cabeça e não segundo os lucros.

Espero ter sido didáctica. Agora vou trabalhar com milhares de livros, meios, dezenas de colegas, e um saber acumulado em gerações, que posso estudar e conhecer e que só é possível porque tantas avós deste mundo, as minhas – Olívia e Celeste – e as vossas, tantos professores, tantos médicos, tantos dos nossos me e nos deixaram. Ao submeter o país à União Europeia e ao Mercado e à dívida pública e aos baixos salários, os governos destruíram a vida, o país e até o respeito que devemos a todos os que nos trouxeram até aqui.

Reconquistar – o país, a vida e a memória dos nossos – é nossa obrigação moral. Por isso apoio os professores, os médicos, os enfermeiros, os motoristas das matérias perigosas, os estivadores, os operários da Auto Europa, os seus fundos de greve e as suas greves que incomodam, apoio todos os que não se vergam a esta situação insustentável e da qual não saíremos rezando, num altar farrusco ou luxuoso. Ajoelhando-nos não vamos a lado nenhum.

“Quem ensina a dar asas não pode rastejar”

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Imagem: SP / Unsplash(ed VN)

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Acerca do Autor

Raquel Varela

Raquel Varela é Historiadora, Investigadora e professora universitária da FCSH da Universidade Nova de Lisboa / IHC / Socialdata Nova4Globe, Fellow do International Institute for Social History (Amsterdam) e membro do Observatório para as Condições de Vida e Trabalho. Foi Professora-visitante internacional da Universidade Federal Fluminense. É coordenadora do projeto internacional de história global do trabalho In The Same Boat? Shipbuilding industry, a global labour history no ISSH Amsterdam / Holanda. Autora e coordenadora de mais de 2 dezenas de livros sobre história do trabalho, do movimento operário, história global. Publicou como autora mais de 5 dezenas de artigos em revistas com arbitragem científica, na área da sociologia, história, serviço social e ciência política. Foi responsável científica das comemorações oficiais dos 40 anos do 25 de Abril (2014). Em 2013 recebeu o Santander Prize for Internationalization of Scientific Production. É editora convidada da Editora de História do Movimento Operário Pluto Press/London e comentadora residente do programa semanal de debate público O Último Apaga a Luz na RTP. Entre outros, autora do livro Breve História da Europa (Bertrand, 2018).

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