Luz negra – notas sobre Rui Nunes

Luz negra – notas sobre Rui Nunes

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Se a memória não me falha, na Biblioteca Municipal Camilo Castelo Branco há pelo menos três livros de Rui Nunes disponíveis para consulta e requisição: são eles Enredos, Os Deuses da Antevéspera e Cães. Já no espólio de Eduardo Prado Coelho, no rés-do-chão do edifício, a lista abrange títulos como Sauromaquia, O Canto do Ocaso, Álbum de Retratos, O Choro É Um Lugar Incerto e A Boca na Cinza (alguns deles com dedicatória do autor). Passando à frente aquela que seria a razão mais imediata para convocar Rui Nunes (relacionada com o meu trabalho de pós-doutoramento), a verdade mais íntima acerca do que me traz a este escritor pouco conhecido do “grande público” (seja lá o que isto for: o grande público que consome José Rodrigues dos Santos ou José Luís Peixoto, o grande público que prefere a confiança enquistada nos clássicos da praxe, como um Eça ou um Saramago, ou o grande público que não lê a ponta dum corno), essa verdade mais íntima, insisto, tem que ver, muito pessoalmente, com a verdade íntima da leitura: um encontro com um livro que nasce por acaso, uma paixão que é imediata (mais pela luta que nos dá do que pelo prazer de ler) e uma vontade de partilhar aquilo de que se gosta (mesmo que este gosto seja, como veremos, intrinsecamente masoquista e socialmente pouco recomendável).

Preliminares: chega-se a Rui Nunes, como ele o diz numa entrevista que li algures na net, pelos seus livros, não pela figura do autor alapado à mesa e a dar autógrafos ou a prometer #hashtags nas fotos da sessão. Cada livro tem os leitores que merece (a frase é de Hélia Correia) – os leitores que os procuram por eles mesmos, e não pela roleta do algoritmo ou pelo autocolante do PNL. E, neste sentido, encontrar um livro de Rui Nunes constitui-se, desde logo, um exercício de contacto, no que este tem de mais prosaico (e até obsoleto, para os nativos digitais). Refiro-me ao contacto epidérmico com o próprio livro, o seu peso, volume, o atrito consubstancial do livro enquanto matéria física no mundo. Isto parecerá, assim de rompante, mera palha para encher aqui algumas linhas, mas acontece que a escrita deste autor, pelas suas características formais, nos leva a andar às recuas de um tempo, que é o nosso, no qual impera a progressiva desmaterialização das coisas, o polimento progressivo (e agressivo, carregando na insídia de ser mais agressivo quando mais subtil se torna) de todas as arestas, de todas as superfícies rugosas, de toda a dificuldade imanente a um mundo real, composto por diferenças e irregularidades (a análise destes fenómenos está mais que feita, entre outros, por filósofos como Gilles Lipovetsky, Jean Baudrillard e Byung-Chul Han). O mundo de hoje quer-se leve, digital, vertiginosamente veloz e sem espinhas.

Acontece, porém, que a escrita de Rui Nunes é o contrário de qualquer passatempo festivaleiro ao qual, inscientes ou lassos, nos vamos dobrando. É uma escrita dura. Tem a carne rasgada toda à mostra, os punhos cerrados prontos para nos esmurrarem a cara de cada vez que julgamos ter o texto sob o nosso controlo, de punhal na mão prestes a cravar-se nas nossas costas mal achemos ter chegado a uma qualquer “unidade de sentido”, a um “propósito” subliminar de um tal “sujeito poético” ou “narrador” (os suspeitos do costume que vão oleando as respostas dos alunos, para que escorreguem melhor nos caixilhos curriculares). E toda esta porrada exige tempo, e esse tempo é inteiramente leitura, ou um dos seus modos de acontecer (talvez, arrisco eu, o único modo possível de a leitura ser aconselhável num mundo onde o mérito, para melhor se fingir, requer fotogenia, colando-se melhor ao lado dos impostores, com paninhos quentes por todo o lado e uma onda de aplausos a servir de orquestra, mais o hino nacional, o cortar as fitas, um galardão aqui, uma medalha acolá, like, #ésomaior; e se este parêntesis parece enluvar as medidas de um wannabe deputado, convém lembrar que a figura de muitos escritores vai igualmente a rasto – o que não é de agora: “MORRA O DANTAS, MORRA! PIM!”, lembram-se?). Assim, esta leitura consigna-se como um modo de deflagrar sobre nós a única violência legítima, para que, enfim, um pouco mais despertos (na melhor das hipóteses), passemos a sentir a carne de que somos feitos (mesmo que podre), o chão sob os pés (mesmo que cheio de destroços, ou “um chão como um poço”, segundo Rui Nunes), sem que o acolchoemos à pressa, com recalcamentos e eufemismos, com medo de riscar o verniz ou fazer sangrar os pés. (Quanto a recalcamentos, eufemismos ou vernizes impecáveis: deixemos essas tarefas civilizacionais para a diplomacia geopolítica, a galhofa entre amigos ou as filas de espera na Segurança Social; civilizar na ou pela literatura, com o catecismo das boas intenções, descamba num lodaçal de açúcar, em mero pasto para autodeslumbrados à cata de citações que lhes permitam dizer, por palavras alheias, o que de outro modo seria um assumidíssimo momento de vaidade).

Este modo de pensar a leitura como uma descarga impiedosa e autoinfligida de violência (estilo Fight Club, segundo o par Palahniuk/Fincher) servirá, em última instância, para decalcar a malignidade que há em nós (e o facto de a escondermos), a sordidez de certos desejos mais obscuros, de certos ódios, certos queixumes, essa pulsão homicida e despótica que se ofusca por detrás de tanto brilho fotogénico. Uma forma, portanto, de atacarmos de frente o lado lunar da condição humana, que a escrita de Rui Nunes dispõe vezes sem conta em justaposições grotescas: “o silêncio é uma sufocação, ou uma bexiga de porco prestes a estoirar” (Ouve-se sempre a Distância numa Voz, p. 32). Isto, e o sermos vítimas e carrascos, com os campos de Auschwitz a fazer-nos ainda sombra e o Mediterrâneo atolado de corpos sírios, mais o preceito de T.W. Adorno, segundo o qual, após o extermínio nazi, não se poderia continuar a escrever poesia, a ser decisivo para que nos envergonhemos a sério de qualquer poema ou texto que ouse sublimar as vítimas ou promover lições de boa consciência humanista. Isto, e ainda a consciência aguda de sermos mesmo mortais, crónicas ambulantes de mortes mais que anunciadas (“bicho da terra tão pequeno”, segundo Camões; “cadáver adiado que procria”, segundo Pessoa; “A tua vida: do princípio ao fim: essa morte”, segundo Rui Nunes. Na verdade, o autor só vem depurar de todos os faustos o osso nu daqueles dois versos que, de tão entranhados na nossa consciência, parecem já não causar qualquer aturdimento existencial). Dois exemplos:

“A história acabou ali. O resto é só um caminho para o princípio: a tua morte. Ou mais longe ainda: uma cidade que irias percorrer, que o teu olhar esvaziava de outro olhar. E por todo o lado quem sempre te vira, via-te. Atrás das janelas, por entre as cortinas, ou sentados nas tabernas, ou: não o conheço, ou: boa noite Tonito, ou mudavam de passeio, ou o riso dos pescadores que consertavam as redes: olha o gajo à procura de homem, aquela vergonha, antes ladrão que paneleiro. Há tantos anos. Ou desde sempre. Um lugar cercado: seria o teu. Um lugar aguarda o homem que lhe dará o cerco. A mágoa, a mácula. A mancha. Não a mancha: o borrão.” (do livro (ou, transigindo, de que lado passarás a morrer, a clarear)?, ed. Língua Morta, 2014, p. 27)

“não acolhemos os pretos, não gostamos de pretos : dizem e

afastam-se,

os pretos vivem na outra barraca,

vêem a lixeira do outro lado,

encontram a casa em qualquer lugar,

são eles a casa,

os risos e danças são uma casa,

também a fogueira que lhes arde ao lado,

mas nós sentamo-nos encostados à parede e olhamos o vazio à nossa frente que nos expulsa uns dos outros

um chão como um poço,

quando nos sentamos abre-se o silêncio com a nossa paragem,

vozes que nos chamam devem ser insultos,

somos todos pretos : dizem-nos os pretos : somos todos pretos

nas nossas viagens”

(do livro Ouve-se sempre a Distância numa Voz, ed. Relógio D’Água, 2006, p. 38)

A questão, contudo, é que essa violência só se repercute sobre nós (os efeitos do seu flagelo) se começar por ser, a priori, uma violência exercida sobre a linguagem, aquilo que, para Céline, implicava tonificá-la afincadamente, atravessando-a, para construir a partir dela um dado estilo: “atravessar a linguagem que temos, a escrita académica, para fazer dela uma coisa viva. […] [É] necessário fazer a linguagem escrita passar através da linguagem falada” (em O Cão de Deus, 1995, p. 118). Em modo programático, realiza-se assim, citando para este efeito uma passagem de Ouve-se sempre a Distância numa Voz: “[…] a história das palavras não está tanto no que dizem mas no som que dizem, há palavras que são sempre murmúrios como outras que são sempre imprecações, o que eu quero é murmurar a palavra que ofenda e gritar a palavra que apazigue, o que eu quero é perder as palavras, desorientá-las, destruí-las, desentendê-las, para recomeçar com uma palavra que inicie a sua história nos meus lábios, o que eu quero é que este homem que grita frente a mim não aumente a história destas palavras, o que eu quero é matar estas palavras cheias de perseguições, de campos de concentração, de câmaras de gás, de choros, de uivos, de cóleras, o que eu quero é acabar com as palavras de todo o poder, porque o poder fala sempre da mesma maneira, nele as palavras têm sempre o mesmo som […]” (p. 103).

Desorientar as palavras, deixá-las à deriva – eis uma intenção muito premente na escrita de Rui Nunes, que passa por entravar uma desconfiança renhida em relação às palavras. Estas tendem, pois, a mortificar as coisas, a desmaterializá-las, esvaziando-as da sua espessura (“dá-se a morte a um nome, dizendo-o? / sim. Um nome é o nosso segredo”, idem, p. 122). As palavras aprisionam as coisas num determinado sentido, acorrentam-nas a uma significância, a uma ideologia. Em suma, o poder da linguagem desvirtua-se e passa a ser um instrumento: a linguagem de poder e do poder. Fazer desentender as palavras implica, então, destruir esse eixo convencional que une o significante ao significado, ou um significado a um determinado contexto. Implica destruir qualquer expectativa que se deposite na linguagem e no pensamento por imagens (eu, identidade, política, sexualidade, raça, credos, instituições, pátrias – o desfile de fixações, com todos os pré-conceitos e preconceitos, nunca mais acaba. Só a título muito breve de clarificação a partir de recursos do dia a dia, pense-se na imagem que se faz dentro de nós acerca do que é um cigano, do que é um homossexual, do que é um arrumador de carros, do que é um sem-abrigo ou do que é um refugiado sírio; a violência em Rui Nunes procura atacar a ganga ressequida desse é, os modos de ver o mundo a partir de enquistamentos essencialistas. Na linguagem de Deleuze, isto é o que nos define enquanto europeus: o sermos um sistema social produtor de rostos, tomando o rosto de Cristo como fundacional – o homem branco, europeu, heterossexual, etc.).

Esta ação destruidora da linguagem (e sobre ela) acontece, de facto, no próprio corpo textual dos livros de Rui Nunes. Antes de lermos o texto, de o pensarmos, assistimos à agressão sintática de que a linguagem é alvo; vemos o branco da página macerado por bocados de letras, por rasuras, síncopes, pequenos entulhos onde as palavras devêm destroços, filamentos a negrito ou aterros em itálico, onde até a pontuação fica totalmente desnorteada e desapegada das suas leis gramaticais (num radicalismo que, por comparação (e a comparação é assumidamente injusta), torna Saramago um menino bonito e zeloso nas letras portuguesas). Eis um exemplo disso, a partir de (ou, transigindo, de que lado passarás a morrer, a clarear)?, editado em 2014 pela Língua Morta: “Portugueses, riso, portuguesas, riso, a conclusão do programa de ajustamento, riso, foi feita, riso, com sucesso, riso, o objectivo fulcral, riso, do ano, riso, o orçamento de estado é, riso, um instrumento, riso, um instrumento de merda, riso, o meu instrumento, riso, o de todos nós, riso, o acesso aos mercados, riso, abre e fecha a boca, riso, a bandeira atrás, riso, a primeira dama, riso, com hífen ou sem hífen, riso, a boca que se abre e fecha, riso, abre-se e fecha-se um grande silêncio, riso, escurece o ecrã, riso, desaparece o homem, riso, reaparece o homem, riso, a mulher atrás, riso, e ele à frente, riso, atravessam uma sala, riso, a, riso, traves, riso, sam, riso, u, riso, m, riso, a, riso, s, riso, a, riso, l, riso, a, riso, cá vivo e sam sou, este bolo está bom,

– choco. És um choco podre.” (pp. 26-27)

Vamos aos factos: um pequeno livro editado em 2014, em Portugal, ainda durante o período da troika e da governação PSD-CDS. Reconhecemos no excerto supracitado algum léxico desse período, vocábulos que nos ajudam a mapear o conteúdo do texto e a inscrevê-lo na realidade do nosso tempo, da nossa memória e experiências coletivas. Mas o conteúdo “temático” do excerto, por assim dizer, não exerce sobre a narrativa uma função determinante, no sentido de localizar a ação das personagens no espaço e no tempo. Situa-se para além disso: para lá da narrativa, aquém de uma ação, de um espaço, um tempo, de personagens. Rui Nunes escreve contra todas essas prerrogativas e vénias a um “escrever bem”, uma história com princípio, meio e fim (“história de nada, história de merda”). O que fica são apenas ecos, sons desprendidos de vozes, vozes sem corpo, rarefações de vozes, escombros, lixo residual, cintilações (memórias que, de tanto serem evocadas, perderam o seu grão irredutível e não significam mais nada). “Pedaço a pedaço, o abrigo provisório” (idem, p. 33) – pedaço a pedaço, fragmento a fragmento, ruína a ruína, a linguagem é o nosso modo de fazer ruído, de nunca compreender em vida, na sua totalidade, a verdade ínfima e frágil das coisas e das relações entre elas e entre nós.

“a palavra vai de uma boca a outra boca, como um beijo, e é preciso não interromper esse beijo, apanhar a palavra ainda a formar-se, coisa tão frágil, que só os lábios, outra coisa frágil, conservam, é a voz de Deus que assim vamos transmitindo, ininterrupta, desde que Deus disse : faça-se a luz, por isso, eu sinto a morte quando me calo, ou quando não escrevo, e escrevo sempre a soletrar o que escrevo, e leio sempre a soletrar o que leio, às vezes vêem-me e dizem : parece que não sabes ler, lês como se as palavras te fossem difíceis ou estranhas, toda a minha vida tem sido a aprendizagem desta estranheza, cada vez me é mais difícil ler e falar, significa isto que estou cada vez mais perto da morte, mas persisto, contra esse cancro, essas valas, esses lenhos, esses cortes, contra o medo que são as palavras na minha boca, como pedras, quanto mais as penso, mais elas endurecem, grandes rochedos que me tapam o mundo, estas palavras não são minhas : apetece-me gritar, e descubro que nenhuma palavra é nossa, todas nos são emprestadas […]” (in Ouve-se sempre a Distância numa Voz, p. 139).

Palavras endurecidas, palavras como pedras, como coisas radicalmente e absolutamente estranhas, ex-tranhas. Matéria inumana que ressuma nas nossas bocas, no interior do sangue. Como é que se lê isto? Que interpretação é passível de se disciplinar a partir daqui, e com que objetivo(s), senão ler à revelia de toda a Literatura, assim, em maiúscula, para sinalizar visivelmente aquilo que interessa a Rui Nunes evitar? Ler o atrito, com atrito. Ler como quem leva uma tareia – e, admito, as primeiras tentativas de leitura foram fisicamente exigentes; dificilmente se avança uma página de Rui Nunes a salivar de antecipação pela página que se segue (passa-se “[d]a madeira acabada de pintar, que é o cheiro da desolação” para “estavam todos fechados numa sala, tão uns contra os outros que só o que caía eram as fezes e o mijo”). Ler, ainda, tocado por essa delicada ternura que há em saber-se sempre parco para dizer a fragilidade do outro, para acolher num instante uma eternidade que sabemos impossível, seja isso a eternidade do amor (“o teu coração é uma rola trémula”, p. 72) ou esses flashes que tanto iluminam como escurecem a infância (“o que lembro : manchas de luz, só manchas, na infância, amarelo de areia e azul transparente, água através da qual outra luz surgia, nos meus olhos abertos uma pedra coberta de limo”, p. 10). Ler, por último, por último, aquilo que não é imediatamente da ordem do legível: o branco e o vazio, inseridos no corpo da página, o espaçamento que fica entre duas margens de texto. E empreender leituras assim é sempre um risco e é sempre difícil.

De facto, a nossa dificuldade em lidar com o vazio, com o que é deixado em branco, acaba por ser o reflexo imediato de um acumular de experiências e de sensologias urdidas no seio da massificação e do consumo, da tal sociedade do espetáculo, cunhada por Guy Debord, e que hoje se consumou na sociedade da transparência, segundo Byung-Chul Han. O vazio e o branco contradizem a plenitude sociológica que dita os nossos modos ocidentais de existir: seja a aversão ao silêncio (a necessidade de tagarelar ininterruptamente), seja a aversão ao vazio (que José Gil, por exemplo, assinalava em Portugal, Hoje: O Medo de Existir, a propósito dos vãos de escada atolados de vasos e quinquilharia, sendo isto a representação sintomática dessa aversão), seja a demência febril das imagens, da comunicação televisiva, do excesso nos reality-shows, dos discursos vazios de sentido que saem da boca de políticos, comentadores, celebridades, membros de júris em concursos de talentos (as frases feitas sobre “os portugueses como um povo muito solidário”, sobre “a importância de lutar pelos nossos sonhos”, todo um despejar de nulidades sem qualquer correspondência efetiva com a vida real e que fica a zoar só porque sim).

O vazio e o branco constituem-se, assim, o avesso paroxístico daquilo que se consolidou como a nossa sociabilidade e os seus códigos: o estar sempre on-line, o estar sempre disponível, o insistir-se em falar sobre tudo, em ir a todos os sítios, em tudo consumir (informações, novidades, headlines), em fazer com que tudo-comunique-com-tudo, com que tudo fique “claro” ou “transparente”, pornograficamente transparente, isto é, sem atrito, sem a mínima possibilidade de nos travar o avanço (seja este físico, seja ele meramente mental: o avanço da nossa compreensão, por exemplo, para que possamos dominar determinado assunto e, por fim, exclamarmos triunfantes: “ok, já percebi”).

E é por isso, então, que o vazio e o branco são a matéria iminente (e imanente) da escrita de Rui Nunes: são as margens que se estendem infinitamente e que continuamente nos dizem que, muito antes de chegarmos à costa do sentido ou da significância iluminada (o tal “ok, já percebi”), morreremos afogados na obscuridade, na luz negra que ameaça, pelo lado de dentro, toda a matriz fundacional do sentido, em particular, e da nossa contemporaneidade, em geral. O branco, na página, age às avessas da leitura: faz-nos ver algo que se consuma numa reverberação, numa ausência (de texto, de ilustração) que se impõe sempre impreenchível. Morreremos afogados na ilusão de haver relações de sentido entre A e B, na ilusão de uma plenitude ou de uma unidade (a Verdade, Deus, a Pátria, entre outras maiúsculas) que julgamos serem recuperáveis ou ainda possíveis. Acontece, porém, que a escrita de Rui Nunes liquida qualquer possibilidade de esperança. Citando o autor em duas breves passagens, no pequeno livro editado pela Língua Morta: “Eis o desamparo. / Enquanto Deus semeia maiúsculas” (p. 17); “A ruína constrói sem início” (p. 33). Fica o aviso: só matando a esperança é que estaremos aptos a recomeçar. O quê? Não sei. Isto, nada, ou algo que, no nosso íntimo, achemos valer mesmo a pena.

E, por fim (um fim inconclusivo – este há de ser um dos meus tiques reflexivos: o de achar tudo ostensivamente inclusivo), aí está: nada disto é novo. Tudo o que aqui registo é apenas uma forma (tardia, como sempre) de passar o dedo sobre uma mossa na superfície; um gesto lento que só vem confirmar que o sulco já cá está há muito, uma dor que, de tão banal, já não sentimos doer, e de cuja origem fomos perdendo o rastro. Termino com estes excertos: “[…] o sr. Ângelo não contava histórias, contava coisas, isto é, descrevia os sons, a consistência da madeira, os seus nós e veios, a dureza quebradiça das folhas, o número de ossos que há num pardal, e ensinou-me que nunca esgotamos uma coisa, que podemos passar a vida inteira a dizê-la, que uma coisa é um mundo tão grande como o maior dos mundos, quer dizer, […] as histórias acabam quase sempre da mesma maneira, há três ou quatro modos de acabá-las, e depois, tudo se repete, pelo contrário, as coisas são sempre diferentes umas das outras, e acrescentava : o céu hoje é diferente” (in Ouve-se sempre a Distância numa Voz, p. 125).

“Resiste. Não transfigures, não emendes com frases as palavras que doem, elas reconhecerão sempre o alvo” (in (ou, transigindo, de que lado passarás a morrer, a clarear)?, p. 26).

Livros consultados:

Rui Nunes, Ouve-se sempre a Distância numa Voz, Lisboa, Relógio D’Água, 2006.

Rui Nunes, (ou, transigindo, de que lado passarás a morrer, a clarear)?, Língua Morta, 2014.

Louis-Ferdinand Céline, O Cão de Deus, trad. e org. Alberto Nunes Sampaio, Lisboa, Hiena, 1995.

Imagens: Diogo Martins (fotografias, s/d).

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Categorias: Autor, Cultura, Ensaio

Acerca do Autor

Diogo Martins

Diogo Martins nasceu em 1986 e é natural de Nine, do concelho de Vila Nova de Famalicão. Doutorado em Teoria da Literatura pela Universidade do Minho, iniciou em 2017 um projeto de pós-doutoramento intitulado "Ousar corromper: (o)caso retratístico em Rui Nunes". Interessa-se por poesia, literatura, cinema e fotografia, e mais ainda pelas relações entre estas e outras artes.

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