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“[O] escândalo do homem”, escreve Peter Sloterdijk, “consiste em que ele se pode achar sem se ter procurado. Tem-se vinte e três anos ou trinta e um, ou ainda mais, e descobre-se, ao atravessar uma rua ou quando cai o chaveiro, que, realmente, se existe. Contra isto, não há nenhuma proteção segura. Nem a teoria nem o álcool podem garantir uma prevenção impenetrável contra o Ser-aí. Safer thinking, safer drinking – não serve em todos os casos. Nem mesmo aqueles que, regularmente, vão fazer jogging para o bosque e que, a partir dos trinta anos, fazem check ups preventivos podem excluir completamente a hipótese de sofrer um ataque de existência durante a noite.”
O tipo de aturdimento existencial a que o filósofo alemão Peter Sloterdijk alude em O Estranhamento do Mundo (trad. Ana Nolasco, ed. Relógio D’Água, 2008) está longe das escavações new-aged às profundidades do ser, atulhadas de adereços foleiros e demais bugigangas do comércio da alma (velas perfumadas e selfie-stick incluídos), com vista a mobilar ocidentalmente o Nirvana que cada um traz no umbigo. O assombro de que aqui se trata, o rapto voraz que lhe é constitutivo, não se deixa fintar nem demarcar por contingências tão baratas e consumíveis, nem por ímpetos de vaidade e festins virais, ao bom sabor das modas fátuas como as que desfilam no tempo que nos coube viver, post a post. “Sofrer um ataque de existência”, tomar a pura consciência de que se existe, na radicalidade extrema e absoluta desse impacto onde a palavra necessariamente se emudece e se dessubjetiviza (a hipótese fulgurante de se pensar numa linguagem não dizível, inumana, para lá do sujeito cognoscente, para lá do que é humanamente pensável, aquém da psicologia, das nossas taras e neuroses) – eis um tipo de acontecimento que é comum a todos, mas não necessariamente transmutável por todos em palavras, numa interrogação minimamente formulável, com direito a uma pausa, a uma demora contemplativa, a qualquer coisa próxima de um momento de choro consciente da realidade fenomenal das lágrimas e da falta que nos faz um pouco de solidão, um pouco dessa gratuitidade, não comensurável e, por isso, não subornável pela tirania do lucro e pelo “bem comum, a cidadania do terror”, para citar um verso do poeta Manuel de Freitas.
Este primeiro artigo na VILA NOVA é difícil pelo facto de não saber exatamente ao certo por onde começar. (Haverá, na verdade, verdadeiros começos? Não estaremos já todos a meio de alguma coisa, perplexos, como descreve Sloterdijk, com o facto de darmos conta, sem querer, de que andamos já por aqui?) Começar – e pode ser começar este texto, começar qualquer outra coisa, ou começar intransitivamente, sem objeto – é sempre um desafio exposto a inumeráveis resistências.
Experimente-se pensar nisto numa ótica semelhante à que José Gil apresenta (socorrendo-se de outro filósofo, Gilles Deleuze) para consignar o momento em que o pintor enfrenta o vazio da tela em branco: como começa aquilo que depois virá a ser a futura obra de arte? Se nos desenvencilharmos da hipótese das musas, ou de qualquer misticismo demiúrgico arreigado à inspiração (e é fácil escorregarmos para a caricatura: aí está o artista, de olhos fechados, em estado de transe, com a mão possuída por espíritos travessos que, em jorros de alma e de tinta, começam a visibilizar profundidades inefáveis ao comum dos mortais), repito, se excluirmos algum tipo de condão especial no espaço que une o artista à sua obra, como expressar algum juízo a respeito do que efetivamente acontece na superfície em branco da tela? E, em simultâneo, como constatar esse acontecimento sem lhe retirar a gravitas da epifania, a luminescência da aura?
Segundo Deleuze, para dar conta deste fenómeno – o acontecer da pintura – precisamos de recorrer a outra ordem de pensamento sobre a realidade artística: uma ordem menos devedora da primazia da subjetividade autoral (o eu, o sujeito, o artista, mais a mistificação daquilo que pretensamente ele esconde “por detrás” do que pinta, o “querer-dizer” das artes visuais, etc.), e mais propícia a reclamar para o universo do que é visível a necessária (e justa, porque imanente) complexidade desse visível. Neste caso, o próprio vazio constitutivo da tela por preencher: diante a tela, assistimos a um vazio, mas um vazio grávido de mutações, de intensidades, de atmosferas; um vazio cujas futuras formas, volumes, cores, já pré-existem ao sujeito, aos movimentos da sua mão e à ação sobre os mais diversos materiais (pincéis, aguarelas, pigmentos). Um vazio povoado de virtualidades, ritmos, devires e fluxos potenciais que o artista, com o seu próprio estilo, tornará visíveis. Não se trata, portanto, de iluminar sentimentos pessoais (o que faria equivaler a arte à terapia, em busca de catarse), mas de libertar forças impessoais, afetos puros, “a potência de uma vida não-orgânica” (Deleuze), que atravessam todos os corpos e seres, animados ou não. Compete, assim, ao pintor tornar visível a imagem que no branco já estava anunciada, a fervilhar, em estado latente. É isso a pintura: a ciência obscura do visível, a captura de um invisível que só pela arte se dá a ver.
Por outras palavras: o vazio constitutivo da tela (homologável ao vazio branco da folha que, de momento, tento preencher) é parte integrante e indeclinável do fazer artístico, assim como da linguagem em que esse fazer se traduz para poder ser partilhado, alargado à esfera pública (e não apenas a uma clique de académicos e intelectuais). Refiro-me, portanto, às minudências do suporte, à ganga que passa despercebida, a estas inaparentes marginalidades: o branco, o vazio. Estes nadas, pequenos tudos, ou vice-versa. Pensar esse vazio, a radicalidade inultrapassável que o institui, é apenas uma das inúmeras formas de metabolizar estas e outras angústias inerentes à linguagem artística, permitindo repossibilitar a existência com sentidos inesperados: da poesia ao cinema, da arte do retrato a uma canção pop, de Peter Sloterdijk a Merleau-Ponty, das paredes de Lascaux à arte urbana, das políticas culturais à fenomenologia do corpo, e assim sucessivamente. E uso a palavra “angústias” num sentido despojado de dramaticidade narcísica: pensar a angústia de existir (e de ver, de questionar, de pensar, de coexistir com os outros, de não compreender) é reivindicar para o animal humano uma condição existencial ainda longe de o caducar e extinguir de forma irreversível (note-se: já há muito que se fala de sermos “pós-humanos”, mas as questões que nos tiram o sono de há milénios para cá – quem somos?, o que somos?, de onde vimos?, etc. – continuam sem resposta, ou com respostas a mais – ou, então, com perguntas a menos; e não há tique sobranceiro de eruditismo engatilhado num prefixo que arrume de vez estes abalos para alívio geral da nossa espécie).
No fundo, começar, aqui, é já estar algures num ponto intermédio; e, por isso, pensar este vazio significa reconhecê-lo como estando já a meio de um percurso para o qual não importa mais o começo nem a chegada. Entre muitas coisas (que serão desenvolvidas em futuros textos), pensar este vazio é reconhecer a potência da imprevisibilidade, do erro e da errância como matéria viva sem a qual a lógica da racionalidade, em vez de nos ajudar a progredir, apenas nos embrutece, cingindo-nos a um tempo de crises inócuas, pautadas pela esquizofrenia da contabilidade (o “bater punho” empreendedor e quejandos), um tempo “sem aroma”, no dizer de Byung-Chul Han, um tempo-espaço onde nada se inscreve plenamente, levando-nos a crer que vivemos numa era de vertigens e de velocidade indomável, quando o mais certo, segundo o filósofo, é apenas não estarmos animicamente dispostos a gozar da sofreguidão do tempo, inclusive das suas arestas, a compreender a malignidade da nossa natureza contra o polimento facebookianesco a que nos sujeitamos para nos servirmos uns aos outros como dóceis, lisos, higienizados e, aqui sim, vaziamente pós-humanos.
Pensar é mergulhar a fundo no caos e no desastre a que continuamente votamos a nossa existência (desastre, à letra, é o astro que sai da previsibilidade fechada da sua órbita); o caos rizomático do pensamento implica como condição indispensável compreender que somos feitos de complexidade, de linhas de fuga, e não de pontos ou centros estáveis e estanques. É exercer um tipo especial de violência sobre as coisas e os sujeitos (uma agressão semelhante àquela a que aspira toda a verdadeira obra de arte: não para comunicar ou nos fazer comunicar, não para explicar ou tagarelar, imiscuindo-se no ruído do mundo, mas para nos fulminar, nos fazer suster a respiração com o fulgor do inexplicável, do indizível. Um tipo de violência que, para acontecer, requer uma fruição do tempo, uma outra forma de viver e compreender o tédio e o desconforto. Em suma, uma outra forma de pensar a importância de haver tempo para pensar). A verdade é que não há nada de novo nisto – e, ainda assim, enquanto tento rematar este parágrafo, deparo-me no feed de notícias com um artigo em inglês que tem como título “Imagination is a powerful tool: why is philosophy afraid of it?”. O fulgor imaginativo é tão caro à filosofia como ao pensamento estético e ao pensamento científico (e hei de regressar a isto num futuro texto); e, porém, que hoje, no nosso tempo, em pleno século XXI, se sinta ainda necessidade de teorizar e trazer para o debate este género de questões, é inequivocamente sintomático da condição frágil que nos caracteriza enquanto sociedade, assim como do estado de perplexidade que nos imobiliza e nos faz encolher os ombros diante a torrente de informações contraditórias, paradoxos, ardis da “pós-verdade” e dos trumpianos factos alternativos.
Não há nada de novo nisto, de facto, mas qualquer novidade carece sempre de quem a questione, e não de quem se emudeça impavidamente perante ela. Para que, na esteira de Giorgio Agamben, possamos ser verdadeiramente contemporâneos das coisas e dos fenómenos, isto é, não aqueles que aderem efusivamente ao seu tempo (anulando a hipótese de qualquer distanciamento crítico), mas os que, cercados pelo excesso de luz, procuram o seu nicho de escuridão. “E por isso ser contemporâneo é, antes de tudo, uma questão de coragem”, esclarece Agamben: “porque significa ser capaz não apenas de manter fixo o olhar no escuro da época, mas também de perceber nesse escuro uma luz que, dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós”.
Também é para este exercício que concorre um título como o do livro de Peter Sloterdijk pelo qual iniciei este artigo: O Estranhamento do Mundo. Pensar é estranhar, captar a insularidade e irredutibilidade do diferente (mesmo o que há de diferente no que se apercebe como sendo sempre o mesmo); é ex-tranhar, ficcionar a possibilidade de um lado de fora mesmo quando o panorama se nos afigura demasiado familiar pelo lado de dentro. E a ideia de poder realizar livremente estes exercícios numa revista com outros famalicenses e de prestar alguma visibilidade a nomes, conceitos, autores, livros…, sem outra intenção que não a da pura valência da partilha (no fundo, num compromisso que em nada se distingue daquilo que subjaz à maneira como penso as minhas aulas de língua e literatura portuguesa), tem o seu quê de inquietante – talvez, em boa parte (e à semelhança de uma aula), porque nunca se sabe totalmente a que riscos nos entregamos, que conversas se iniciam, que encontros fortuitos estão prestes a rebentar pelo simples facto de se partilhar na net um arrazoado de ideias.
Da parte que me toca, aceitei este convite para partilhar com regularidade estas e outras angústias (de novo, nada há de incapacitante no uso que faço deste termo; reclamo para ele um vitalismo fundamental para que qualquer futuro artigo da minha autoria ganhe forma – e, de preferência, com mais clareza e objetividade, sem tropeçar de forma abusiva no hermetismo da exposição, mas também sem subestimar as faculdades estimativas e a curiosidade de quem possa cruzar-se com estes textos). Porque pensar sobre estas questões é, de igual forma, resistir-lhes – porque não queremos chegar a conclusões preguiçosamente claras e distintas, nem limitarmo-nos à segurança das definições, de um mundo a preto e branco. Pelo contrário: interessa-me permanecer na vertigem do acontecimento (aquilo que nele subsiste como não totalizável, mas sempre em aberto), no expoente da tensão, esse estado que impede o pensamento de hibernar ou vegetar, atirando-o ao invés para um regime de experimentação contínua. E do fundo dessa resistência, a partir desse atrito, interessa fazer emergir novas possibilidades de sentido, novas aproximações entre as coisas e as ideias, sobretudo aquelas que me são mais caras (literatura, poesia, música, cinema, fotografia). Coisas que potenciam, em todos nós (quer disso estejamos conscientes quer não), imensos ataques de existência durante noites e noites a fio.
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Imagem: DM
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