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Um dos muitos livros que pensei que ainda não tinha lido, mas a verdade é que o folheio e descubro anotações, marcas de leitura antiga. A memória apagou-se; não tenho memória de elefante… mas reparo que, quer as anotações, quer os sublinhados não passaram um quarto do livro, pelo que não o devo ter concluído na altura . Na badana desta edição do Círculo de Leitores – a obra foi lançada a público pela Editorial Vega, em 1979 -, leio que este foi o primeiro romance de António Lobo Antunes.
António Lobo Antunes narra a história de um psiquiatra, mas também uma história de Lisboa
O narrador de Memória de Elefante é um psiquiatra “vazio de tudo” (pág. 76) a viver um período negro na sua vida. A juntar ao total desprazer pelo sítio onde trabalha ”a inumana máquina concentracionária do hospital” (pág. 49), pelas pessoas com quem trabalha, é crítico do sistema que gera a doença mental e também crítico da própria psiquiatria ”aqui estou eu a colaborar não colaborando com a continuação disto, com a pavorosa máquina doente da Saúde Mental trituradora no ovo dos germenzinhos de liberdade que em nós nascem sob a forma canhestra de um protesto inquieto, pactuando mediante o meu silêncio, o ordenado que recebo, a carreira que me oferece; como resistir por dentro, quase sem ajuda, à inércia eficaz e mole da psiquiatria institucional, inventora da grande linha branca de separar a «normalidade» da «loucura»? (pág. 46). O narrador não consegue suportar a solidão pelo fim recente do casamento que o afastou das filhas e da mulher, que no entanto continua a amar, “Desde que se separara da mulher perdera lastro e sentido” (pág. 92). As lembranças persistentes da guerra de África onde combateu perseguem-no como uma sombra: “Como sempre que se recordava de Angola, um roldão de lembranças em desordem subiu-lhe das tripas à cabeça na veemência das lágrimas contidas” (pág. 40) ou “Porque será que continuamente me recordo do inferno, interrogou-se ele: por de lá não ter escapado ainda ou por o haver substituído por outra qualidade de tortura”? (pág. 128)
Era através da ironia que procurava esconder a ternura de que se envergonha e o afecto que o apavora. Só mesmo a mulher o conseguia compreender. “Fizera da vida uma camisola-de-forças em que se lhe tornava impossível mover-se, atado pelas correias do desgosto de si próprio e do isolamento que o impregnava de uma amarga tristeza sem manhãs.” (pág. 106).
Este é também um romance de Lisboa, das ruas por onde o psiquiatra conduz na sua deslocação ao dentista e à sessão de análise de grupo ao fim do dia de trabalho, dos restaurantes “manjedouras” onde ainda se fumava, antes de se dirigir pela marginal a caminho do seu apartamento no Monte Estoril “uma ilha estrangeira a que se achava incapaz de se adaptar, longe dos ruídos e dos cheiros da sua floresta natal.” (pág. 162)
Romance denso e carregado de angústia e solidão
Agora que termino a leitura desta edição do primeiro livro de António Lobo Antunes no Círculo de Leitores, penso que percebo por que não o li até ao fim, numa altura em que teria pouco mais de trinta anos. É deveras um livro pesado, carregado de angústia e solidão, profundamente pessimista, com uma escrita densa e carregada de metáforas nem sempre fáceis ou acessíveis e com uma estrutura de períodos longos, que obrigam a que frequentemente se volte atrás para se apanhar o fio à meada da ideia principal. A capa desta edição de Dezembro de 1984 (a décima) representa um fragmento de uma pintura surrealista de Rudolf Hauner A Arca de Ulisses e está em perfeita sintonia com o tema do livro.
Memória de Elefante é surpreendente
Recordo aqui uma longa entrevista feita por Cristina Margato a António Lobo Antunes, publicada em finais de 2016 no «Expresso» em que, tal com acontece com o narrador protagonista de Memória de Elefante, António Lobo Antunes diz sobre si mesmo que “Não me é fácil viver comigo. Parece que estou sempre em guerra civil.” e refere que “Todos os livros são autobiográficos. Acabamos por só falar daquilo que, no fundo, conhecemos.” Nessa entrevista, e sobre Memória de Elefante, o autor refere: “O primeiro livro ninguém o queria publicar.” Apesar disso, acrescenta, “Memória de Elefante, com todas as ingenuidades que tem, já teve trinta e tal edições. Uma vez chegou-me uma edição e eu ia almoçar… Pus-me a folheá-la e espantei-me. O livro não tem nada que ver com o que faço agora. O que me surpreendeu foi a força do livro. Quer dizer… se eu fosse editor pensava: “Este miúdo vai escrever coisas do caraças.” Mas é um livro desequilibrado, cheio de defeitos, começa como a história familiar e acaba como uma saga.”
Imagem: AB
Obs: publicação original no blogue Lendo e Escrevendo de Almerinda Bento, tendo sofrido ligeiras adequações na presente edição.
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