A realidade e o fundo: o barco e o submarino

A realidade e o fundo: o barco e o submarino

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Se um escritor criasse uma situação em que na mesma semana 700 migrantes, mulheres e crianças no porão, se afundam à procura de trabalho e 5 milionários desaparecem num submarino para ir ver os destroços do Titanic dir-se-ia um cenário forçado. É certo que o genial Ruben Ostlund de certa forma tinha criado este cenário no filme O Triângulo da Tristeza, um desastre inesperado em alto mar que coloca frente a frente as duas classes fundamentais da era contemporânea, burguesia e trabalhadores. Mas a realidade desta semana foi mais chocante, superou a melhor ficção.

Os socialistas do século XIX tinham uma tese, hoje esquecida pela maioria da esquerda, tese muito sofisticada: na competição capitalista, os trabalhadores, se não lutam solidariamente, passam a ter comportamentos arriscados, ou degradantes, ou violentos, ou canalhas, fruto do medo da sobrevivência. Já os burgueses, fruto da competição entre eles, ou seja, entre Estados e empresas, e pela sua situação de poder, transformam-se em brutos, cínicos, violentos, crentes na omnipotência, vivem na ilusão do poder dominar, subjugar. São os fautores das guerras. Não lutam só por um emprego, pegam em armas desesperados e mobilizam os seus Estados. No fundo, a ideia era esta: o capitalismo afunda na maior degradação ambas as classes sociais.

Não acho “bem feito” que os milionários se tenham afundado depois de terem pago centenas de milhar de euros. Nenhuma morte me sabe bem, confesso. Claro que, a contrário dos migrantes, sem escolha, os milionários escolheram. Mas escolheram dentro dos limites morais de uma sociedade sem moral, que a rigor transforma os seres humanos em entes dezumanizados. Tudo é dinheiro. Até, claro, a transmissão televisiva de ambas os naufrágios. O dos milionário tem rendido mais, porque o enredo é mais sofisticado. Aliás, a Marinha dos EUA anda a tentar socorrê-los, em vida, já a da UE no Mediterrâneo pouco ou nada faz, chegam para retirar corpos. Não valem o mesmo, nas contas do rosário mercantil. Tudo isto, por fim, atinge-nos, magoa-nos, impede-nos de pensar no belo, de amar a vida.

O barco foi ao fundo, o submarino também. Esta semana nem deu para fingir que a realidade não existe.

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Categorias: Crónica, Refugiados

Acerca do Autor

Raquel Varela

Raquel Varela é Historiadora, Investigadora e professora universitária da FCSH da Universidade Nova de Lisboa / IHC / Socialdata Nova4Globe, Fellow do International Institute for Social History (Amsterdam) e membro do Observatório para as Condições de Vida e Trabalho. Foi Professora-visitante internacional da Universidade Federal Fluminense. É coordenadora do projeto internacional de história global do trabalho In The Same Boat? Shipbuilding industry, a global labour history no ISSH Amsterdam / Holanda. Autora e coordenadora de mais de 2 dezenas de livros sobre história do trabalho, do movimento operário, história global. Publicou como autora mais de 5 dezenas de artigos em revistas com arbitragem científica, na área da sociologia, história, serviço social e ciência política. Foi responsável científica das comemorações oficiais dos 40 anos do 25 de Abril (2014). Em 2013 recebeu o Santander Prize for Internationalization of Scientific Production. É editora convidada da Editora de História do Movimento Operário Pluto Press/London e comentadora residente do programa semanal de debate público O Último Apaga a Luz na RTP. Entre outros, autora do livro Breve História da Europa (Bertrand, 2018).

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