‘A ridícula ideia de não voltar a ver-te’, de Rosa Montero, um sentido e sofrido testemunho biográfico de Marie Curie

‘A ridícula ideia de não voltar a ver-te’, de Rosa Montero, um sentido e sofrido testemunho biográfico de Marie Curie

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O terceiro livro de Rosa Montero que leio é este A ridícula ideia de não voltar a ver-teLa ridicula idea de no volver a verte, no original. Desde já confesso que sinto muita empatia por esta autora madrilena nascida no mesmo ano em que nasci. A leitura de A Ridícula Ideia de não voltar a ver-te, que é um livro fascinante e comovente, reforçou mesmo essa proximidade afectiva e ideológica com a escritora. Este é um daqueles livros que nos ajudam a reforçar a convicção da indispensabilidade da luta feminista quando se anseia  por um mundo mais justo e melhor para todos.

Logo no início, Rosa Montero, que em 2020 participou no LEV – Festival Literário de Matosinhos – alerta que “este não é um livro sobre a morte”. Em minha opinião é um livro sobre a forma de enfrentar o luto por uma morte de alguém muito querido, um exercício de superação das limitações da vida que só a arte e a literatura têm a capacidade de fazer. A escritora cita Fernando Pessoa: “A literatura, como a arte em geral, é a demonstração de que a vida não basta.”

O centro desta obra de Rosa Montero é a personalidade extraordinária de Marie Curie

A vida literária, e não só, está cheia de coincidências, um dos vários hashtags para que Rosa Montero nos remete ao longo do livro. Foi no processo da doença de Pablo, marido de Rosa Montero, que lhe chegou às mãos o diário que Marie Curie escreveu ao longo do ano que se seguiu ao falecimento repentino de Pierre Curie; e no qual Rosa Montero se espelhou. Assim, o centro desta obra de Rosa Montero é a personalidade extraordinária de Marie Curie (1867-1934).

A ‘Mutante’, símbolo da mulher em transição

Rosa apelida Marie Curie de ‘Mutante’. Ela foi uma pioneira absoluta. É ainda, até hoje, a única mulher que recebeu dois prémios Nobel em áreas diferentes (Física e Química), a única mulher no Panteão dos Homens Ilustres em Paris, a primeira mulher a licenciar-se em Ciências na Sorbonne, a primeira mulher a doutorar-se em Ciências em França, a primeira mulher a leccionar na Sorbonne… e foi também uma polaca que lutou de forma ímpar contra inúmeras adversidades – dificuldades económicas, inveja da comunidade científica, estranheza da sociedade pelo seu pioneirismo, conciliação da intensa vida profissional e familiar, problemas de saúde, verdadeiro linchamento público pelo seu relacionamento com Paul Langevin – nunca aceitando assumir o papel de vítima, antes rompendo e fazendo um caminho impressionante numa “época em que às mulheres quase nada era permitido”. Talvez por temperamento, certamente pela personalidade tenaz e pela sua postura face à vida e à sociedade, há em Marie Curie um desdenhar da sua feminilidade, pelo que nunca quis dar parte de fraca nem mesmo quando passava mal durante os períodos de gravidez. Nunca fez referência aos problemas que teve de enfrentar por ser uma pioneira e única num mundo de homens, nomeadamente quando foi candidata e depois recebeu o prémio Nobel, nem nunca associou os seus problemas de saúde e do marido aos trabalhos de investigação e de produção de rádio e de polónio. Quando o talento das mulheres tinha de ser escondido atrás de nomes masculinos ou elas tinham de se travestir de homens, de que há vários exemplos conhecidos, entre os quais o caso da papisa Joana, e quando até ao século XX as mulheres não tinham saídas profissionais para além de operárias ou damas de companhia, como aceitar a ambição de uma mulher a querer ascender ao conhecimento e ter uma carreira? Daí ter sido alvo de campanhas sujas e ferozes contra ela, por inveja, por preconceito, porque se a ambição é natural num homem é impensável que possa ser assumida por mulheres! A culpa sim, ou o apagamento! Mas ambição não; não é coisa de mulheres!

É dramaticamente desproporcional o número de laureados com o Prémio Nobel homens e mulheres

Rosa Montero aproveita para nomear algumas cientistas e investigadoras que foram pioneiras, que abriram caminhos para grandes descobertas contemporâneas – Lise Meitner, Rosalind Franklin, Henrietta Swan Leavitt ou Jocelyn Bell – que mais tarde foram alvo de reconhecimento através da entrega dos “Nobel” a homens que ou usurparam o trabalho delas ou nem sequer as nomearam quando receberam os galardões. O contrário do que aconteceu aquando da atribuição do primeiro Prémio Nobel da Física para Pierre Curie e Henri Becquerel pela descoberta do polónio e do rádio, que Pierre se recusou a receber caso o nome de Marie não fosse incluído. Um caso muito bicudo para a época que acabou com a inclusão do nome de Marie, mas com a atribuição do valor em dinheiro apenas aos dois homens, como se Marie não contasse! Coube a Pierre subir ao palco e fazer o discurso de agradecimento, tendo aproveitado para atribuir a Marie Curie todo o mérito pela descoberta. O palco para ele; o apagamento dela, sentada no meio da audiência. Talvez por isso a relação de laureados com o Nobel até 2020 seja de 923 homens para 58 mulheres. Quantas terão sido preteridas, esquecidas, apagadas?

Rosa Montero escreve uma biografia sentida e sofrida

Por fim, este belo livro, fruto de um profundo trabalho de investigação e consulta de documentos sobre a vida e obra de Marie Curie, é valorizado com diversas fotografias de Marie Curie, do marido Pierre Curie, das filhas Irène e Ève e também de outras personagens e lugares que Rosa Montero convoca ao longo da obra. Encerra com o diário de Marie Curie, um sentido e sofrido testemunho da ainda jovem cientista entre Abril de 1906 a Abril de 1907, de onde é retirada a frase escolhida por Rosa Montero para título deste livro: A ridícula ideia de não voltar a ver-te.

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Obs: este texto foi originalmente publicado no blogue da autora ‘Lendo e escrevendo‘, tendo sofrido ligeiras adequações editoriais na presente edição.

Imagem: Porto EditoraSergio CadiernoWellcome Collection / ed VN

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