A minha médica e a Vacina anti-COVID

A minha médica e a Vacina anti-COVID

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O debate sobre as vacinas trouxe três argumentos que merecem o nosso tempo. Falar sobre as vacinas cria “alarme”; não devemos debater porque serão seguras se forem “aprovadas pelas agências de medicamentos”; o assunto deve “ser deixado para cientistas e não para redes sociais”. Alguns destes argumentos foram usados por pessoas com qualificação superior. Quero argumentar que nenhum destes argumentos tem validade cientifica ou filosófica. Andam entre a falácia e o obscurantismo.

‘A minha mãe é uma cientista’

Costumo brincar com uma frase anarquista que diz “Contra toda a autoridade, excepto a minha mamã”. A minha mãe é uma cientista – de genética florestal, com especialidade em melhoramento genético – das mais reconhecidas a nível internacional na sua área –, teve responsabilidade na FAO justamente na sua especialidade. Nunca, em momento algum, em 42 anos me disse sobre qualquer assunto, simples ou complexo, com 5 anos ou 40, “é assim”. Fosse qual fosse o tema – um cozinhado mal feito, um livro que estávamos a ler, um copo que eu tinha deixado cair, ela sentava-se tentando explicar, adaptando-se à nossa idade, desenhando, usando metáforas, recorrendo a exemplos, a mim e ao meu irmão “porque as coisas aconteciam”. Se eu estragava um sapato e pedia para colar ela sentava-se e obrigava-me a colá-lo explicando o efeito da chuvada e como se cola bem. E sempre me disse que se não compreendêssemos “porquê”, não faríamos bem. Faz o mesmo quando uma planta minha tem uma doença – senta-se, mostra-me a incidência solar, a humidade, e explica como se distingue a doença e como se cura. Na minha família reina a Razão. Os Deuses e os Reis morreram na Revolução Francesa, quando a autoridade passou a exigir evidências, explicações e metodologia científica. Reina também a democracia – cada pessoa tem o direito de ser educada e ensinada, e tudo lhe deve ser explicado, seja criança seja adulto. Talvez seja este um dos legados mais importantes que ela me deixou – um espírito crítico e democrático, acompanhado da beleza da pedagogia – saber e ter vontade de ensinar. Uma parte dos cientistas perdeu ou nunca teve este dom: esconde-se atrás da dificuldade de comunicação própria, apontando o dedo à ignorância alheia, explicam que as vacinas são para tomar porque o “povo é ignorante, o assunto não é para o facebook” e foram aprovados “pela Agência…”.

Obscurantismo não, obrigado

Este obscurantismo, mandar os outros tomar algo sem explicar, repousando na Autoridade institucional, é cada vez mais posto em causa e não é por acaso que os movimentos anti-vacinas crescem exponencialmente em países com mais educação e em sectores sociais com mais qualificação. Na Alemanha, onde estou, são gigantes e têm a adesão de muitos médicos (e não são das medicinas alternativas só). Não os quero aqui debater. Sou a favor de vacinas, mas sei que todas têm perigos. E que viver é um risco. Como é um risco ter doenças. Nada tem risco zero – ao contrário da intensa propaganda que tem sido feita desde Março, a vida não é um dado seguro, tem riscos, que devem ser medidos. Assim o é com as vacinas, seus polémicos adjuvantes, e com esta também, que usa uma tecnologia inédita. As perguntas que fazem as pessoas sobre as vacinas têm todo o direito de ser colocadas, e quem está do outro lado tem o dever de responder a elas em vez de lançar um “tomam porque nós sabemos”. Deus morreu, há muito.

O efeito placebo-humano

Confesso-vos também que sempre que tive o azar de entrar num consultório médico onde este me viu em 10 minutos e me mandou tomar ou fazer algo sem me explicar, sorrio, digo que sim, agradeço, pago, saio, não tomo e nunca mais lá volto. Tenho hoje médicos, 2 ou 3, que estão comigo 1 hora e com detalhe – se necessário fazem desenhos e explicam-me o que fazer. Saio de lá quase curada, só da confiança que me transmitem. Ainda não me perguntei à minha médica o que ela pensa, sei que vai dedicar uns 30 minutos, pelo menos, a falar sobre o tema comigo. Chamo-lhe o efeito placebo-humano. A confiança não repousa na autoridade mas na transmissão de conhecimento.

‘É preciso explicar…’

Os debates não lançam “alarmes”. O alarme está lançado pela realidade. Não se inverta a ordem dos factos. As mulheres não são mal tratadas porque se contam anedotas. As anedotas de mulheres mal tratadas existem porque elas são mal tratadas. Impedir o debate é obscurantismo. Debater, rir, criticar, falar de um assunto nunca pode fazer mal a esse assunto. Se quem tem dúvidas lança argumentos que parecem ridículos ou fake news a obrigação de quem defende estas vacinas é provar com argumentos que não é assim. Não é apontar o dedo e chamar ao “povo estúpido”.

O alarme está lançado e foi-o pelas instituições que deviam ter responsabilidade. O alarme está lançado porque as pessoas são mais qualificadas, têm mais acesso a informação e a desinformação; porque há opiniões contraditórias sobre um tema que envolve riscos; e sobretudo o alarme está lançado porque as vacinas vendidas na Europa e nos EUA não foram realizadas com investigação pública, os seus accionistas ganharam milhões quando o número de miseráveis não pára de aumentar; não contentes ainda escolheram para divulgá-las o homem que invadiu o Iraque dizendo que havia armas de destruição massiva, e saiu da UE para a direcção de um Banco. De facto, foi tudo tão mal conduzido que o estranho é que haja ainda taxas de confiança que, em alguns países – e são os mais democráticos e desenvolvidos –, não cheguem aos 50%. É preciso explicar porque esta vacina é segura, se usa uma nova tecnologia; é preciso explicar porque se há outras que usam uma velha tecnologia, elas não foram compradas pela UE; é preciso explicar porque se optou por estas que são mais caras porque exigem equipamentos muito caros de transporte e conservação; é preciso explicar porque para uma doença que afecta de forma ligeira ou inexistente 98% da população se compraram vacinas para imunizar toda a população e não apenas a população de risco. É preciso explicar porque a aliança global para as vacinas não é uma organização não lucrativa de cientistas e academias públicas, mas um think tank dirigido por um tipo licenciado em direito, líder da Goldman Sachs, que apadrinhou uma guerra com milhões de mortos. Sempre tomei vacinas e tomarei, mas não porque Deus manda.

Mais ciência, por favor!

Preciso de ser convencida que, havendo um risco mínimo, quase ínfimo, inevitável, compensa porque porque estou a fazer um bem a mim e à minha comunidade. Quem se coloca na posição de acusar os outros de alarme e com isso silencia o acesso ao conhecimento, tem uma atitude tão a-científica como quem argumenta com teorias da conspiração. Já disse e repito: os CEO ou responsáveis das farmacêuticas nem deviam ser ouvidos pelos media. Há aqui um óbvio conflito de interesses, e há uns anos era proibido que entrassem num debate sendo parte interessada no sector comercial. Vou precisar de ouvir cientistas sérios e não Carlos Moedas ou Durão Barroso para decidir o que vou fazer. Mas o que eu faço é pouco relevante. Tenho muita confiança nas minhas dúvidas e sobretudo meios, que a maioria não tem, de me informar. Em poucas horas escrevi a vários colegas da área que me responderam com extensas e boas explicações. A maioria das pessoas não tem isso. Gostava que tratassem melhor as pessoas que têm dúvidas mas não têm conhecimentos nem se movem em meios onde os podem ter. Menos arrogância, menos anátemas de “burros”, “negacionistas”, enfim. É que não há ciência sem humildade e vontade de compreender os outros.

Obs: artigo com publicação original no blogue de Raquel Varela, tendo sofrido ligeiras adequações editoriais na presente edição.

Imagem: AronPW (ed. VN)

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Categorias: Crónica, Pandemia, Sociedade

Acerca do Autor

Raquel Varela

Raquel Varela é Historiadora, Investigadora e professora universitária da FCSH da Universidade Nova de Lisboa / IHC / Socialdata Nova4Globe, Fellow do International Institute for Social History (Amsterdam) e membro do Observatório para as Condições de Vida e Trabalho. Foi Professora-visitante internacional da Universidade Federal Fluminense. É coordenadora do projeto internacional de história global do trabalho In The Same Boat? Shipbuilding industry, a global labour history no ISSH Amsterdam / Holanda. Autora e coordenadora de mais de 2 dezenas de livros sobre história do trabalho, do movimento operário, história global. Publicou como autora mais de 5 dezenas de artigos em revistas com arbitragem científica, na área da sociologia, história, serviço social e ciência política. Foi responsável científica das comemorações oficiais dos 40 anos do 25 de Abril (2014). Em 2013 recebeu o Santander Prize for Internationalization of Scientific Production. É editora convidada da Editora de História do Movimento Operário Pluto Press/London e comentadora residente do programa semanal de debate público O Último Apaga a Luz na RTP. Entre outros, autora do livro Breve História da Europa (Bertrand, 2018).

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