Gosto de aletria, mas não me habituei a saboreá-la como doce de Natal. Na Beira Alta é um doce de festa e de trabalhos agrícolas, quando se quer oferecer algum mimo depois de um dia de labuta como são as sachas do milho, as vindimas ou as ceifas. Retive na memória o saber fazer deste doce pelas mãos da minha mãe. Feita com água, perfumada com as folhas da laranjeira lá de casa, à falta de limões, e no final envolvida em ovos batidos e misturados com um pouco de leite. Devia ficar dura para se poder cortar à faca e assim facilitar a distribuição pelos convivas.
No Minho vim conhecer outra receita e aprender a saboreá-la enquanto doce natalício. Mas, confesso, nunca tive mão para esta nova maneira de a fazer e, por isso, deixei essa tarefa para quem a aprecia mais do que eu nesta altura.
Mas a pergunta impõe-se: desde quando anda a aletria pelas nossas mesas?
Ao olharmos os receituários manuscritos e impressos em língua portuguesa verificamos que ela já cá anda desde o século XVI. De facto, localizamos uma referência muito discreta a esta massa fina na receita de ovos de laços, constante do receituário da Infanta D. Maria que nos deu também a conhecer, por exemplo, as almôndegas à portuguesa. Mas talvez o seu consumo seja anterior, pelo facto de lhe ser atribuída propriedades medicinais, situação que se continua a verificar nos séculos seguintes, como, por exemplo, no Mosteiro de Tibães, ao longo do século XVIII, quando algumas vezes se compra aletria para os doentes. Raphael Bluteau, por volta de 1712, define-a como uma maça de farinha dividida em cordas delgadinhas semelhantes às dos instrumentos musicais de cordas. E é também por esta altura que, pela primeira vez, aparecem receitas doces tal como as conhecemos actualmente. Feita em água, ou leite, com ovos, manteiga, açúcar e os vários aromatizantes da ápoca, com destaque para a água de flor de laranjeira. As receitas vão variando, mas no essencial mantém-se o mesmo sabor. Na região Minho é habitual, também, juntarem-lhe algumas uvas passas para lhe dar um ar mais festivo.
Encontra-se presente nas mesas natalícias dos vários mosteiros do Norte, masculinos e femininos, desde meados do século XVIII, e também como doce que se dava aos doentes. A ela me refiro no meu livro Viúvas de Braga e outros doces do convento dos Remédios, embora não a encontre nos gastos deste convento.
No século XIX a sua presença começa a ser mais abundante, acompanhando o aumento do consumo de massa, ao lado do macarrão e do talharim, fixando-se definitivamente como doce natalício a Norte do país. Camilo Castelo Branco faz-lhe referência nos seus romances o que prova que, por essa altura já estava bem consolidada nas práticas alimentares minhotas.
Preparemos, então, uma bela travessa de aletria, com a canela desenhada a preceito, e façamos com isso uma homenagem a uma longa tradição natalícia deste cantinho nortenho.
Imagem: Olívia Fagundes Rocha – Alquimia dos Tachos
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