Os Português: que português falas tu?

Os Português: que português falas tu?

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Muitos estudantes brasileiros queixam-se de serem alvo de constantes correcções por parte dos professores que lhes exigem que “escrevam em português” – o que se entende português de Portugal, o que é de um enorme paroquialismo, atraso e ignorância.

Nunca me recordo de ver um professor inglês exigir que os estudantes norte-americanos escrevam em inglês do Reino Unido ou escondam o sotaque Made in India. Já estive com brasileiros que tentam esconder o sotaque fechando as vogais e quando lhes mostro carinho pela sua fonética sentem-se aliviados e voltam ao português do Brasil, sem esforço, e eu encantada com a musicalidade do seu sotaque.

Não existe um português correcto, uma norma do português correcta

Não existe um português correcto, que seria o de Portugal. Obrigar alguém a esconder a sua própria língua e/ou sotaque é inaceitável. Que a população em geral, com o 6º ano ou menos, ache que no Brasil se fala “brasileiro” é triste, que docentes do liceu e universitários não compreendam a maravilhosa diversidade do português falado e escrito noutros continentes é de dar vergonha alheia. É lerem Machado de Assis, ouvirem Chico Buarque, ou simplesmente comer um acarajé em Salvador da Baía, para perceber que só temos mundo a acrescentar ao aprender com os outros como a nossa língua, que é de 10 milhões aqui e de 200 milhões no Brasil e tantos em África, ganhou vida, sonoridade, sentido noutros lugares. Aliás, se não fosse o Brasil a esta altura já falaríamos em Portugal todos um pouco de Zeinal-bavês, o semi-inglês da globalização dos mercados, que é sempre o empobrecimento das culturais locais. Tive muitos alunos brasileiros, aprendi muito português com eles. Sou-lhes grata pelo que me têm ensinado.

Não existe no Brasil uma língua brasileira, a língua oficial do Brasil é o português, uma variante do português. Os brasileiros não falam brasileiro, falam português do Brasil. Há quem defenda que já se tornou ou irá tornar uma língua e não uma variante, não tenho qualquer opinião sobre isso.

Há uma norma de português europeu, mas há uma norma de português do Brasil, não existe uma norma de português no mundo que seria a correcta, a do Estado-nação Portugal, mas várias. Dentro destas normas há erros – eles devem ser corrigidos seja em que norma for. E é verdade que nem sempre os nossos docentes (em Portugal ou no Brasil) dominam as normas e por vezes corrigem erros que não o são. Outras são, nos dois lados do Atlântico, arrogantes, e impõem à martelada uma norma como a única, excluindo de facto qualquer mediação com os alunos. Nada disto tem a ver com o acordo ortográfico que é uma tentativa, falhada, de impor o português do Brasil a Portugal também. Falhada porque a vida da língua mostrou-se mais forte do que a sua mercantilização, felizmente. Eu não escrevo com Acordo, mas não corrijo quem o faz, nem corrijo quem escreve em português do Brasil.

Diferenças fonéticas portuguesas, uma vantagem comparativa

Os brasileiros têm mais dificuldade em entender-nos do que nós a eles. Isso é uma questão fonética, mais do que de telenovelas. A riqueza dos nossos sons faz com que seja mais fácil para nós ouvirmos as suas vogais abertas do que eles nos escutarem, já que nós falamos “comendo” as vogais. Para um brasileiro nós não dizemos telefone, mas tfon. Para nós eles dizem algo como téléfóni. Essa fonética portuguesa vem nos manuais de consultoria de gestão de recursos humanos como uma vantagem comparativa dos portugueses que, cito os ditos manuais, ganham mal e falam bem línguas. É por isso que em Portugal se fixam empresas estrangeiras a criar call centers, e aconselham Portugal, em vez de Espanha, Itália ou Brasil, justamente porque “falam bem línguas e têm baixos salários”. Isto, claro, prende-se com a periferia portuguesa e o facto da nossa burguesia (elites que governam o país, empresas e governos) não terem qualquer estratégia para o país que não seja vender títulos de dívida pública e exportar força de trabalho (emigrantes). Com águas, agricultura, energia, Banca, dependentes de Espanha, e tudo sujeito à economia alemã de exportação de máquinas e capitais faz com que Portugal tenha a sua existência – e a sua língua – ameaçada. A solução não é penalizar os estudantes brasileiros.

Uma vida mais pobre, uma língua mais pobre

A língua em geral está cada vez mais pobre porque os trabalhadores – e por isso o ensino – estão cada vez mais dependentes de um mercado de trabalho empobrecido. A maioria das pessoas, em Portugal e no Brasil, fala cada vez pior porque não existe uma estratégia educativa que não seja a dos salários baixos (dados como “vantagem” em livros de recursos humanos). Esta desumanização do trabalho vem acompanhada do empobrecimento da língua que se reflecte nos baixos níveis de leitura e na alfabetização via youtubers – muitos dos quais brasileiros. Ora o problema é que crianças e adultos estão cada vez mais estimulados a aprender pouco e rápido, se passassem horas a ler escritores brasileiros isso seria uma boa notícia, mas, pelo contrário, passam horas em ecrãs onde a linguagem é cada vez mais pobre.

Uma linguagem pobre é uma vida pobre, são sentimentos pobres. Se eu não uso todos os tempos verbais eu não consigo criar, projectar o que não existe, pensar sentimentos distintos dos que tenho. Na minha área, como em todas, não dominar o português é não dominar a história. Se descrevo uma greve com um simples “foi vitoriosa ou derrotada” eu não compreendo que uma greve pode ser uma vitória parcial, um recuo conjuntural, uma derrota histórica, uma vitória que a médio prazo trouxe uma derrota maior, um empate, etc. Se não distingo formas de amor, carinho, amizade, afecto, paixão, ternura, e tudo se resume a gosto ou não gosto, os meus sentimentos serão mais pobres e por isso também as minhas relações são mais pobres. Daí que o ensino da língua seja estratégico. Creio que, aliás, o fanatismo dos debates na política, nos jornais e nas redes sociais muitas vezes tem a ver com o pobre domínio da língua – as pessoas gostam ou não, estão a favor ou contra, não conseguem desenvolver mais os argumentos.

Como deve ser ensinado o português?

Não sei responder à questão. Mas sei que recebemos cada vez mais estudantes brasileiros e temos que chegar a um acordo de respeito que os ensine (ensinar a sério) e não os penalize ou marginalize. Sobre erros de português, eu dou os meus livros a corrigir a um profissional. Infelizmente não posso fazer isso sempre – por exemplo, com os textos que aqui escrevo – mas seria a minha vontade. O que se assiste não é só ao mau ensino de português que temos (ninguém quer admitir, a começar pelos professores, que temos mau ensino a tudo e que a mudança tem que ser de fundo), é que os jornais e televisões deixaram de pagar decentemente a revisores, ou sequer os têm. Em vez de 4, 5, 6 provas, há 1 ou 2 de revisão, quando há.

Aceitar e ensinar as diferentes normas do português

O analfabetismo funcional com os ecrãs está a explodir; estamos a perder a língua. No capitalismo, agora cada vez mais automatizado, uns grunhidos, seguidos de uns SMS e uns desenhos com supostos sentimentos (risos, triste, etc.) são mais do que suficientes para garantir lucros. Os recursos estão desumanizados. Penalizar ainda mais quem muda de país não vai resolver isto. É preciso mudar os países, e talvez possamos pensar, para o futuro, em países onde as normas de português sejam todas ensinadas e aceites.

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A princesa estuda, a plebe tem ‘aulas’ online

Obs: este artigo resulta da conjugação de dois textos previamente publicados no blogue pessoal da autora – Raquela Varela | Historiadora -, intitulados ‘Que português falas tu?’ e ‘Os Português que falamos’.

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Categorias: Crónica, Cultura, Ensino

Acerca do Autor

Raquel Varela

Raquel Varela é Historiadora, Investigadora e professora universitária da FCSH da Universidade Nova de Lisboa / IHC / Socialdata Nova4Globe, Fellow do International Institute for Social History (Amsterdam) e membro do Observatório para as Condições de Vida e Trabalho. Foi Professora-visitante internacional da Universidade Federal Fluminense. É coordenadora do projeto internacional de história global do trabalho In The Same Boat? Shipbuilding industry, a global labour history no ISSH Amsterdam / Holanda. Autora e coordenadora de mais de 2 dezenas de livros sobre história do trabalho, do movimento operário, história global. Publicou como autora mais de 5 dezenas de artigos em revistas com arbitragem científica, na área da sociologia, história, serviço social e ciência política. Foi responsável científica das comemorações oficiais dos 40 anos do 25 de Abril (2014). Em 2013 recebeu o Santander Prize for Internationalization of Scientific Production. É editora convidada da Editora de História do Movimento Operário Pluto Press/London e comentadora residente do programa semanal de debate público O Último Apaga a Luz na RTP. Entre outros, autora do livro Breve História da Europa (Bertrand, 2018).

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