Ver [a guerra] de verdade em ‘Alemanha Ano Zero’ de Roberto Rosselini

Ver [a guerra] de verdade em ‘Alemanha Ano Zero’ de Roberto Rosselini

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Para a Tereza Bento

 

Somos filhos da guerra ou, no caso da minha geração, somos filhos do que se disse que foi a guerra. Num certo período da juventude, fomos educados pelas gestas de Hollywood, com os heróis de chapéu incólume, grande desplante cínico perante o inimigo e, é claro, a mágica protecção da produção que mandava exterminar alemães e japoneses, quase sempre na sequência de terríveis provações. Os filmes acabavam sempre bem para os Aliados, mas se não acabassem, ficava o exemplo da honrosa morte pela pátria e a vingança seria terrível. Felizmente foi possível ver outros filmes e outras coisas. Coisas mais raras e menos conhecidas. Filmes alemães, literatura italiana, poemas russos. Hoje de manhã, graças à publicação de Tereza Bento, estive a ver o filme “Germânia Ano Zero”, de Roberto Rossellini. O filme também aparece com o título “Alemanha Ano Zero”, mas eu prefiro “Germânia”.

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Atenção, diz a nota informativa, estás perante um filme fundador, de algum modo, do Neo-Realismo. Ah, está bem, convém sempre estarmos informados para podermos obstar ao que vem. Ao espectador avisado ninguém o apanha. Pois é, meus amigos! Cheira-me a patranha. Eu diria exactamente ao contrário, “o espectador avisado é o mais apanhado”.

Não pretendo analisar o filme. Isso já foi feito e muito bem feito. Gostava, no entanto, de dizer que o vi do princípio ao fim sem interrupções. Olhei para ele com aqueles olhos acinzentados, só molhados na luz mais negra da memória. Lembro-me de passar de comboio ao longo dos campos de Auschwitz, no documentário de Alain Resnais. “Noite e nevoeiro”, embora também seja costume dizer-se “Noite e neblina”. Depois fui lá e bem vi os choupos erguendo-se na álea das casernas, os choupos sem pássaros, o peso do lugar maldito. Em Birkenau, os corvos. Eu já trazia a terra coberta de cadáveres, quando passei os bosques espantosos. Bosques das histórias, lugares sagrados onde vieram pôr aqueles cenários de fuzilamentos, escravatura, extirpação de toda e qualquer humanidade ou esperança que possam esconder-se na coração da tua intimidade.

Anos atrás, tinha lido muito comovido “Se isto é um homem“, de Primo Levi. Interroguei-me sobre um dos limites da literatura, o que contraria em absoluto a possibilidade de qualquer melodramatismo. A grande força do livro é a sua frieza, o modo andante e gramatical, a dispositio, como se cada passagem, fragmento, notação se agitassem como coisa vívida, sortilégio, efeito ou causa de literatura. Primo Levi conseguiu contar o inenarrável “leite negro da madrugada”. Os factos acontecidos no Lager não são susceptíveis de enquadramento no cânone da referencialidade e no limite ético da representação. Então, Primo Levi contou. A coisa escrita desprendeu-se dele como alma de coisas, rio que foi, atmosferas, actos e omissões, “cousas estranhas da natura”. “Se isto é um homem” é um dos livros do século e a poesia de Paul Celan também. Para quem não tiver muito tempo para dedicar à leitura, pode ler “Noite”, de Elie Wiesel.

O filme desta manhã, “Germânia Ano Zero”, leva-nos à cidade de Berlim destruída pelo exército russo. Rossellini filma nas ruínas e opta por trabalhar com actores não profissionais. Conta-se a história do pequeno Edmund, que se atreve e vagueia pelos destroços para arranjar que comer. Desenrasca-se, é um puto, um pequeno herói da rua. Frequenta a escola entre o crime e a observação. Em casa passa-se fome e o pai está muito fraco e doente. O irmão vive escondido. Foi soldado resistente até ao fim. Os diálogos dramáticos intramuros são em geral curtos e sóbrios. Por vezes a intensidade é grande, mas não chega a haver manifestações de histerismo ou de histrionismo, do ponto de vista da representação.

Sentia-me a andar a ver de verdade e a cada passo saía para as ruínas, as ruínas gerais, as almas mudas e as torturadas, a inflação, o demónio da aldrabice, o poder dos mais fortes, os senhores que gostavam de meninos, a fome, dez marcos por um tesouro, um milhão por um quilo de manteiga e três batatas. Ouvir-se-ão no filme duras constatações. “Dantes éramos nacional-socialistas, agora somos só nazis”. Mais adiante, o homem de meia idade explicará ao pequeno Edmund a teoria: na lei da selva, vence o mais forte. É a vida. Os mais fracos não resistem e os mais fortes tendem a prevalecer.

O menino decide envenenar o pai e depois sai pelas ruínas em busca de um lugar alto, como se pudesse ser anjo antes de cair. O filme é imensamente belo. O tempo que medeia entre o crime cometido por Edmund e o seu suicídio vai sendo dito em movimento, no modo como o corpo se comporta e se relaciona, os olhares, os ângulos, a mobilização das nossas capacidades perceptivas. Não há artifício para prenunciar ou a inserção de atmosferas sonoras mais ou menos explicativas. O filme é só feito daquelas acções que podiam e podem ser assim.

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Muros de irresponsabilidade

Obs: este texto teve publicação original na página facebook do autor, tendo sofrido ligeiras adequações editoriais na presente edição.

Imagens: DR

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Categorias: Cinema, Crónica

Acerca do Autor

José Miguel Braga

Professor, encenador, ator.

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