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“[…] a precisão da indecisão, isso é a literatura” (página 170, revista Electra, Alexander Kluge). Invejo saudavelmente o uso dos deíticos, esses relâmpagos certeiros que sabem dividir o céu em duas metades, ainda que assimétricas. Mas basta isso: dividem, recortam, sulcam, correm esse risco da escolha. O risco de riscar, de arriscar. Isso é a literatura: aponta-se o dedo no meio da noite, às escuras. Não há luz, mas vira-se a noite às avessas, e aprende-se a ver com a pele, os ouvidos, o peso do ar como uma névoa de ferro. Avança-se devagar, tropeça-se, esfola-se os joelhos. A precisão da indecisão implica suspender, e até quebrar, com a hipótese de entender os fenómenos do mundo como uma narrativa, ainda que incompleta, ainda que sem final feliz (foi Thomas Bernhard que o disse: “Viver sem contos de fadas é mais difícil, por isso é tão difícil viver no século XX”). O romance precisa de gaguejar para que ao real do dia se restitua, ainda assim, alguma dignidade, algum sentido de presença (ou a presença desse sentido, como uma dor alojada no fundo da barriga: não a sua descrição – não posso estar à espera que acreditem em mim quando escrevo dor em vez de osso, ave, tília –, mas o intempestivo da palavra, o que nela faz roer o discurso até que o corpo se agite sem querer, sem que o mostre sequer, tímido até para o próprio sangue e entranhas).
“Uma narrativa? Não. Nada de narrativas. Nunca mais.” (Maurice Blanchot, A Loucura do Dia, p. 54) E porquê? Porque isto: “Descrever é petrificar” (Rui Nunes, Suíte e Fúria, p. 74).
Vai-se por atalhos quando o mapa de que dispomos é a literatura, a poesia, a arte. Não é uma paisagem bonita, por mais verdes que sejam os campos da cor do limão. Bonita (posso dizer bonita sem complexos? Porque sublime soa-me a ranço de antestreias com presidentes de câmara e gente estranha, a ter que fingir, entre fatos e veludos, que não me vem à cabeça o interior avinagrado dos contentores do lixo, onde os restos desta farra antemostram os nossos corpos sob a terra) é a sua desagregação, bonita é a forma como as formas se disjuntam, que nem os continentes da Terra. Perceber que não há paisagem, nem sequer Beleza, nem arte-Arte, onde o Ego se banhe todo e chapinhe feito Narciso, assinando para dizer que é seu, assassinando para melhor se impor (até cita Herberto, vê lá tu, ai que bem que ele fala, je est un autre, sim senhor, com uns pós modernos temos todos umas ricas fuças literárias), isto aqui sou eu, tu ficas desse lado, cuidado, olha o traço, estás a pisar a linha, não és de cá, sai.
Não há paisagem. (O pê é maiúsculo, como em deus quando ainda tínhamos medo dele e uma afirmação destas não chegava a ser escrita.) Há apenas a iridescência ansiolítica dessas maiúsculas, a falsa harmonia dessas totalidades com que ladrilhamos o chão e dizemos: aqui tenho pé.
(“lê-se para atingir uma totalidade qualquer, para descobrir o sentido, o grande sentido de um texto que só o acabamento desvendará”, Rui Nunes, Suíte e Fúria, p. 75.)
É esse o atalho, é isso a literatura, a poesia, a arte. Não chegamos ao destino (o destino foi Auschwitz, o gulag, Lampedusa, um tiroteio na escola norte-americana, um prémio Nobel). Nunca se chega a um destino se nos guiamos pelo mapa da literatura. Apetece-me dizer: já somos o lugar a que nos destinamos, somos esse lugar para onde apontamos uma qualquer vontade de ir (ou para onde a vontade se aponta a si mesma, e nós, feitos vasos, somos por ela cheios, grávidos de energia, paixões absolutas, espíritos de outrora agora). Saber que se deseja ir é já uma pequena glória de bolso, um coração que bate (e a consciência de que bate o coração, de que o coração bate, de que é a nossa mão que se lhe sobrepõe para o sentir bater – uma pequena família de gestos inúteis, de observações rasas, de acidentes diários: mão, coração, corpo, pele, pulso, a imanência de tudo isto, a alegria disto tudo, de haver textos “que abrem para enormes vacilações. Disseminantes, inseminantes, rasgam um desvio em cada letra, em cada som, em cada olhar”, “textos que não conseguem acabar, porque, momento a momento, se dividem. Nos dividem”, Rui Nunes, Suíte e Fúria, p. 68). Saber que se deseja.
Mas não é um saber. Saber é um nome, outro ansiolítico. Sabe-se apenas sob condição de que temos que suportar termos nascido para isto, para existir, para estarmos juntos, aqui, assim. Não é o saber, é o desejo. O animal, a coisa insuspeita, a sombra, a brecha. O que não permite a totalidade, o que finta a narração. Quando nos livros de Clarice Lispector se lê “e eis que”, ou “de súbito”, “e então”. Quando nos nódulos de Rui Nunes apanho com cenas assim, vivas: “O relâmpago. O que há de súbito num golpe. Num risco. Num rasgão. Um desvendamento. Brutal como todos os desvendamentos. Sempre que recorda, o rapaz está a atravessar o terreiro. Atravessa-o para lá. Afasta-se. E fica nítido. Não se escondeu atrás de uma árvore, não se desviou para o tanque, não desapareceu no som da água. De súbito, já lá não está. E tudo recomeça” (Suíte e Fúria, 2018, páginas 37 e 38).
Estou aqui, sensivelmente, há uma hora a escrever, a esgadanhar-me por uma frase, contra cada frase. Dou por mim, agora, a tentar ver que palavras precisas me permitem mostrar o que penso enquanto ando pela rua a fotografar. Palavras que mostrem a indecisão que me leva aos sítios, aos mínimos sinais, fôlegos, instâncias de algo maior que a minha perceção rasteira ou imediata das coisas. Porque é aí, na rua, com a máquina, que consigo ser mais súbito, mais relâmpago, mais golpe. A imagem acontece porque sou simultaneamente apanhado por ela, mas também porque me deixo ser apanhado, fintado, deixo descair o ritmo das pernas para que a rasteira se propicie e, chegando a casa, possa ver no computador em que imagens colaborou o meu olhar. Mais súbito, mais relâmpago, mais golpe. Fotografei uma planta daninha a irromper num lanço de escadas. O branco todo sol de uma parede, onde cabos elétricos tombavam como pregas e drapeados (detalhes de Botticelli sobrevivem em parapeitos de Castelo Branco; algures, em Nine, uma camisa branca estendida contra um muro evocou-me o santo sudário). Mais: um pano torcido num tanque. O pneu furado de uma bicicleta, ao pé de caixas vazias onde o lixo ganhara aspeto de fóssil. A sombra de um rapaz visto de costas. Algures, um vermelho no aguado da visão. A loucura do dia numa pequena folha amarela que o vento ou a lama me trouxe para dentro do carro. A precisão da indecisão, isso é a literatura (e a fotografia?), isso ou a literatura (mas a escolher, escolho isso): formas múltiplas, punhado de escombros, resquícios de nada, esta coleção de imagens que não se esgota. Eis o corpo a anunciar a sua desagregação até que o impulso ingénuo de dizer “eu” se dissemine, e no seu lugar não haja ninguém. Ou seja, todos nós.
Kluge conclui assim: “De Ovídio até hoje, dos rabinos na Babilónia até hoje há uma continuidade. As grandes fragatas da filosofia são belas. Belo é Cícero, Platão, Aristóteles, os filósofos árabes, a universidade de Paris, Abelardo, Kant, Horkheimer, Adorno. Todos eles são os grandes navios de guerra. A literatura são os pequenos, os submarinos que procuram as minas. Somos os barcos da batalha de Salamina, muitos barcos pequenos.” (Electra, p. 170)
E acrescenta: “Não sou eu que escrevo, mas é algo em mim que escreve. Isto é Kleist. E quanto mais, deste modo, mantenho o ego ao nível baixo, mais decisivos, mais humanos, mais fortes são os elementos. E nós podemos juntar estes elementos. A imaginação do humano como um todo não precisa desta mistura dos elementos, prefere conduzir guerras civis. Isto, que acabo de dizer, é basicamente a teoria marxista, mais Luigi Nono, mais Joyce, mais Cervantes, mais Kleist, mais Musil.” (p. 179)
Referências
Alexander Kluge, “Temos de arrancar a madeira dos salões e construir jangadas”, entrevista concedida a António Guerreiro, Electra, n.º 4, dezembro de 2018, pp. 162-179.
Rui Nunes, Suíte e Fúria, Lisboa, Relógio D’Água, 2018.
Maurice Blanchot, A Loucura do Dia, trad. Ricardo Ribeiro, ed. Sr. Teste, 2019.
Fotografias: Diogo Martins
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