La Boétie e a atualidade da obediência consentida dos oprimidos

La Boétie e a atualidade da obediência consentida dos oprimidos

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Há livros que vivem quase antigamente em nós. Aconteceu um dia, no acaso da leitura, um impressão de ritmo, uma luz ou coisa mais funda e consistente, um abalo nos fundamentos do discurso sobre o poder e o comportamento. Na altura, li o pequeno livrinho, como se fosse levado pela bafaragem do entendimento, embora me parecesse desconcertante um tal discurso, tão energético e acertado, quase com vista para a rua, esta nossa rua complexa de gentes e movimentos, de disparidades e conflito. A jovem vida de La Boétie aparecia-me na companhia do autor dos “Ensaios”, o excelente Michel de Montaigne e eu teria que regressar um dia a este livro impressionante.

Étienne de La Boétie viveu entre 1530 e 1563. É conhecida a sua proximidade a Montaigne (1533/1592). Uma amizade profunda uniu-os e talvez não valha a pena, de momento, determo-nos sobre o contexto e acontecimentos que animaram essa relação tão intensa e exemplar. Montaigne dedicou a La Boétie o ensaio sobre a amizade, que iremos ler um pouco mais tarde. De momento, fiquemo-nos com este extraordinário “Discurso sobre a Servidão Voluntária.” Diz Montaigne que o amigo teria escrito o “discurso” aos dezoito anos e quem somos nós para duvidar. Acreditamos também, como Montaigne, que se “não fora tão curta a vida” La Boétie ter-nos-ia deixado obra extensa e valiosa, comparável em grandeza a alguns dos nossos clássicos. “O Discurso sobre a Servidão Voluntária” é uma reflexão profunda e explosiva sobre as relações de poder. O poder discutido e estudado do ponto de vistado tirano  e do ditador; o poder entendido como o conjunto complexo de processos e comportamentos que conduzem à subserviência, “a servidão voluntária” nas palavras de La Boétie.

A história é pródiga em exemplos. O longo e desvairado desfile dos “língua de fora”, a idiotice pasmada dos babados, os que seguem em fila indiana cheirando o cu uns aos outros, os lambisgóias, a luxúria da obediência e do crime sobre o diminuído, em favor do chefe, do poderoso, do canalha. Bela indústria esta, a que fabrica cães raivosos, desmaiados mentais que se engrandecem cumprindo ordens.

O “Discurso sobre a servidão voluntária” é um texto desconcertante, porque abala algumas das nossas estruturas mentais e alguns fundamentos da nossa arquitectura conceptual. Um texto do Renascimento chega até nós com um ímpeto de verdade e uma força de verosimilhança suficientes para interrogar os sentidos da história e a crença na utopia da evolução no que a certos aspectos do comportamento humano dizem respeito. A figura do ditador, do autocrata ou do tirano fazem parte da nossa mundividência, são objecto de conhecimento e de certo modo aparecem vulgarizadas pelos factos e pela repetição. O tirano está por todo o lado, vem de longe e vive à espreita, mas também se esconde em cada um de nós. Até aqui não haverá novidade. No entanto, se consideramos esse estranho e recorrente fenómeno da “servidão Voluntária”, o caso é outro. Como é que o servo se entrega fielmente nas mãos do algoz, por que ordem de razão ou razões as massas servem fielmente o seu dono, executam as suas ordens, entregam-se à obediência com espírito de serviço?A preocupação com os movimentos, lógicas, sentidos e direcções que animam as massas na sua idiotice histriónica e idolátrica, tem sido uma preocupação da teoria política, mas também da sociologia e da filosofia. Ortega Y Gasset, Elias Canetti, Karl Marx, entre outros, escreveram páginas importantes. As massas assaltando os castelos e os paióis, as mesmas massas besuntadas de frémitos electromagnéticos, vingativas e endemoninhadas ao serviço da bula, na denúncia dos marginais, as massas preceituando a santa moral e desfazendo os diferentes em farinha para peixe e ossos para cães.

Um livro, todo o livro, é um objecto, um modo de construção de uma casa, o lugar habitado por um texto essencial e um conjunto orbital de notas, explicações, memórias, citações, prefácio, posfácio, imagens, inscrições. O livro é também matéria plástica, combinação das partes e ritmo de cor, papel, grafismo e, por vezes, estranheza, algum segredo. Encontro o “Discurso sobre a servidão voluntária”, de La Boétie, numa edição da Antígona, mais precisamente, a 2 edição refundida, Lisboa, 1997, com tradução e prefácio de Manuel João Gomes e um ensaio anexo de Pierre Clastres. O prefácio de Manuel João Gomes apresenta-se com o curioso título “Prefácio difícil apesar da ajuda de Montaigne”. Saliente-se também o conjunto de ilustrações de Peter Bruegel e a participação de Júlio Henriques na revisão do texto e na tradução dos anexos. Fiquemos, por ora, com um pequeno excerto de Pierre Clastres, que se inscreve na parte inferior da primeira orelha: “Lá Boétie é o fundador ignorado da antropologia do homem moderno, do homem das sociedades divididas. Antecipa, a mais de três séculos de distância, o cometimento de um Nietzsche (mais ainda que o de um Marx), que consiste em pensar a degradação e a alienação”.

O corpo do mandante bem pode ser um corredor de maldades, um complexo de esquinas donde surgem sem aviso as espadas, um mavioso altar de enganos e traições. A bondade do chefe não é elegível e a condição do domínio sobre um grande número é o exponencial crescimento de discursos e acções destinados a silenciar e a castrar a iniciativa e a liberdade. O tirano alimenta-se da obediência e semeia a divisão junto dos súbditos, de modo a obter ganhos com a divisão do rebanho em bons e maus, prolongando assim o seu poder. Foi neste sentido, ouvindo o cântico de pensamentos assassinos, que me conduziu a leitura da primeira página do “Discurso”.

Escreve La Boétie: “Vistas bem as coisas, não há infelicidade maior do que estar sujeito a um chefe; nunca se pode confiar na bondade dele, pois dele e só dele depende o ser mau quando assim lhe aprouver”. Por detrás destas palavras está uma passagem da Ilíada e depois delas toda a história que há-de vir, com as suas representações do homem só, invadido pelos vazios do poder. Fonte de inúmeros venenos e tentações, entre o esgar criminoso do músculo e do cutelo e a bondade da justiça despejada na terra para subir ao céu no gás dos homicídios. É terrível saber “que só dele depende o ser mau quando assim lhe aprouver”. Quando começa essa maldade? Onde? Com que modos se apresenta e com que roupas se veste? Alguém atravessa o postigo rasgando a carne no extremo de um verso e talvez possa salvar o seu tempo numa fuga sem fim. A maioria caminha lentamente para o lugar da execução, uma parede escura onde houvera antes da lei uma nascente.

À medida que vou lendo também vou dizendo, vamos devagar, voltemos a ler. Olha, não tinha reparado. Ontem caía cerrado o nevoeiro sobre o discernimento, ia lendo as coisas muito sérias e pesadas do discurso, mas a mente tem uma extraordinária capacidade de transformar segmentos em peripécias, muros consistentes em pedaços de vento ou penugem que se perde a resvalar nos vácuos atmosféricos. Recomecemos então pelo que já sabíamos. A monarquia é governo de um só sobre a grande maioria, mas por vezes são muitos os mandadores, como foi o caso dos trinta tiranos nomeados por Esparta para governar Atenas. “Mas que vem a ser isto afinal? Que nome se deve dar a este desgraça? Que vício, que triste vício será este: um número infinito de pessoas não só a obedecer mas a servir, não governadas mas tiranizadas, sem bens, sem pais, sem filhos,, sem vida a que possam chamar sua? Suportar a pilhagem, as luxúrias, as crueldades, não de um exército, não de uma horda de bárbaros, contra os quais dariam o sangue e a vida, mas de um só?”

Um livro pode viver de um coração descentrado, pulsações, trompos, círculos de sangue que animam a convivência e atraem como o buraco negro. Sim, encontrei a passagem que me responde a todas as dúvidas e então páro para descansar. Deve ser isto. Foi com esta descoberta que pude ficar em paz. Afinal a grande questão de La Boétie aparece resumida em poucas palavras. Vou já transcrevê-las, mas antes disso recupero o fôlego, recolho o riso e fico a pensar que todos os grandes livros vivem de vários corações. Seja como for, leio agora coisas importantes: “Não quero por enquanto levantar o discutidíssimo problema de saber se as outras formas de governar a coisa pública são melhores do que a monarquia. A minha intenção é antes interrogar-me sobre o lugar que à monarquia cabe, se algum lhe cabe, entre as mais formas de governar. Porque não é fácil admitir que o governo de um só tenha a preocupação da coisa pública”.

Continuam as preocupações. Lá Boétie interroga, discute, compreende com inefável melancolia e robusto discernimento e por isso reitera, faz ouvir mais do que palavras e enredo dogmático ou atraente retórica, faz ouvir, dizíamos, uma voz. Acrescente-se a essa voz um sufoco, um crescendo dramático. Como se explica que sejam poucos e depois muitos, agora multidões, depois cidades, o número daqueles que entregam “anima” e vitalidade ao vazio do tirano? Pior! Como se explica essa vontade de submissão a uma figura anódina de solitário? Como se poderá compreendeu esse desejo mórbido de anulação, essa entrega de corpo e alma da imensa energia que vem acender o homem só? Esse homem descolorido será deste modo insuflado pela deposição a seus pés de uma grandiosa vontade de submissão.

Que estranha lei parece governar este mundo! Um, dois, dezenas, centenas de homens, cidades inteiras e países a deixarem-se governar, a deixarem esmagar a natureza do humano que sente e que pensa, em favor da anulação e da obediência a um só, a um ceptro ou a uma coroa. Que lei explica esta vontade de sujeição a quem tudo pode fazer ou desfazer? “Que vício, que triste vício será este: um número infinito de pessoas não só a obedecer mas a servir, não governadas mas tiranizadas, sem bens, sem país, sem filhos, sem vida a que possam chamar sua? Suportar a pilhagem, as luxúrias, as crueldades, não de um exército, não de uma horda de bárbaros, contra os quais dariam o sangue e a vida, mas de um só?” La Boétie procura compreender o fenómeno. Será cobardia, pergunta-se. Os casos da história estão aí para desfazer essa hipótese. Mil, dez mil, cem mil, não têm coragem para fazer frente a um só? Procuremos por outra via, que este não parece ser o recto caminho. Mil, dez mil, um milhão, não podem temer a um só homem. Não se tratará, portanto, de cobardia ou nem sempre a cobardia explica o fenómeno.

Vamos realizando operações de aproximação. A solução parece uma luz atrás da encosta, uma projecção de sombras e nós prosseguimos, leitores esforçados e, às vezes, incautos ou distraídos. Falávamos de cobardia e logo prosseguimos a nossa demanda, o cúmulo de razões escapa, agora aproxima-se, o leitor é um caminhante. Falemos então de ânimo e coragem e eis que “postos estão frente a frente” dois exércitos. Os primeiros soldados lutam pela liberdade, desejam mantê-la, lembram os tempos felizes da sua vida; os segundos querem tirar-lhes essa mesma liberdade, acorrentá-los a normas de opressão e impedimentos. Nessa guerra que se aproxima com fragor, pergunta La Boétie, quem lutará com mais denodo, a quem virá o ânimo redobrar as forças e exaltar a coragem e o heróismo? Não será difícil responder. Escreve La Boétie: “Nas muito famosas batalhas de Milcíades, Leónidas e Temístocles, travadas há já dois mil anos e que permanecem tão frescas na memória dos livros e dos homens como se tivessem acontecido ontem, nessas batalhas travadas na Grécia para bem da Grécia e exemplo do mundo inteiro, donde terá vindo aos gregos escassos não digo o poder mas o ânimo para se oporem à força de navios tão numerosos que mal cabiam no mar? ” Dizem-nos a História e o bom senso, e a razão e a experiência testemunham, que a luta pela liberdade move montanhas. Quanto ao medonho, temível e execrável tirano, quanto a essa tenebrosa figura que atrai o esmorecimento e a fraqueza e fortalece os seus domínios com os perfumes da obediência, bastaria que os súbditos se recusassem a servi-lo, lhe dissessem não. Como é possível governar um povo que não se deixa governar? Infelizmente, considera La Boétie, ” São, pois os próprios povos que se deixam oprimir, que tudo fazem para serem maltratados, pois deixariam de o ser no dia em que deixassem de servir”.

Os tiranos inçam, incham, fortalecem o seu poder à força do saque e dos roubos. Alimentam-se como o fogo. Dêem-lhe ar e lenha e logo as chamas se alteiam e se espalham e a voragem tudo consome e destrói. Se queremos parar o incêndio, não o podemos alimentar. Se queremos esvaziar o poder do tirano, não o podemos alimentar em bens, obediência, apoio, concordância ou ajuda de qualquer espécie. Se assim for, ele há-de secar como a raiz à míngua de água, há-de extinguir-se como o fogo sem matéria que lhe alimente a chama.

Os homens tudo desejam e alcançam, tudo procuram e tudo desfazem. Move-os a coragem e a sobranceria, tanto quanto os anima a cobardia. Os homens caminham como um destino suspenso sobre uma ilusão, abraçam o abismo, deliram com a posse, despem o sagrado e vestem a torpeza da incansável perdição. “Uma só coisa, estranhamente, os homens não têm a força de desejar: a liberdade, um bem tão grande e aprazível! Perdida ela, não há mal que não sobrevenha, e até os próprios bens que subsistem perdem todo o seu gosto e sabor, corrompidos pela servidão”. Pobres humanos que vos satisfazeis com a perdição, que pareceis felizes quando vos roubam a fazenda e vos sugam a energia. Quem é esse, afinal, por quem vos moveis, a quem ofereceis o coração, a força, a vontade, os próprios filhos? “Esse que tanto vos humilha tem só dois olhos e duas mãos, tem um só corpo e nada possui que o mais ínfimo entre os mais ínfimos habitantes das nossas cidades não possua também; uma só coisa ele tem mais do que vós e é o poder de vos destruir, poder esse que vós lhe concedeis”. O texto de La Boétie insiste, afunda, interroga, desmente e dói como a ferida aberta, mostra o lugar onde o veneno se espalha e a pedra incandescente deixa alastrar o incêndio dos enxofres. Pobres humanos criadores de tantos bens, de riquezas sem fim, de promessas douradas, de sonhos e imagens do paraíso! Morreis por ele, e a ele tudo sacrificais. Ao rei, ao senhor, ao déspota, ao mandarim inclinais a cabeça, dobrais a cerviz e ajoelhais e “enquanto vós definhais, ele vai ficando mais forte, para mais facilmente poder refrear-vos.” De novo o grito e o aviso, a espantosa voz, possante e ao mesmo tempo juvenil, de novo o grande senhor que aos dezoito anos, confirma Montaigne, nos avisa: “Tomai a resolução de não mais servirdes e sereis livres. Não vos peço que empurreis o tirano ou o derrubeis, peço-vos tão-somente que o não apoieis; não tardareis a ver como, qual descomunal Colosso a que se tire a base, cairá por terra e se desfará.””A memória da sujeição” corre pelo mundo, ecoa, faz ouvir o seu clamor. Pobres animais que resistem à fúria dos domadores, dos negociantes e carcereiros. Pobres animais que gemem e gritam e fazem ouvir alto a sua dor, como se clamassem por liberdade. “Alguns há que, dos maiores aos mais pequenos, ao serem presos, opõem resistência com as garras, os cornos, as patas e o bico, demonstrando assim claramente o quanto prezam a liberdade perdida.” Há animais que morrem, quando perdem a liberdade, lembra Lá Boétie. “Que dizer perante isto? Que Até os bois sob o jugo andam gemendo/E na gaiola as aves vão chorando (…)/” Enfim, os animais “sentem” a dor da sujeição (…) as alimárias feitas para servirem o homem não são capazes de se habituar à servidão sem protestarem desejos contrários. A que azar, pois, se dará que o homem, livre por natureza, tenha perdido a memória da sua condição e o desejo de a ela regressar?”

O Texto de La Boétie vai crescendo, evoluindo no propósito, desatando nós, interrogando, procurando exemplos e fundamento, repetindo. Vamos a meio da leitura, com uma certa sensação de circularidade, mas a cada volta, a cada desfazer do círculo, quando o texto parece fechar-se no irremediável veneno das variações, a linha move-se e prossegue com motivo, abrindo caminho, refinando o propósito, tornando sólida a questão e poderoso o argumento. Não nos parece que o texto padeça de intermitências e artifício de montagem. Sente-se a unidade e o crescendo, a sólida formação retórica, a leitura dos clássicos, o milagre do exemplo bem escolhido, que anima a página com a solidez de uma iluminura fazendo-a crescer, tomar altura, mudar-se em uma outra que conduz o argumento alargando o espaço físico e a virtude moral.

A leitura do texto de La Boétie leva-nos a acreditar que o seu pensamento consubstancia a crença numa espécie de idade do ouro sob a égide da qual nascemos: “A que azar, pois, se deverá que o homem, livre por natureza, tenha perdido a memória da sua condição e o desejo de a ela regressar?”. No parágrafo seguinte, como num salto de prestidigitador, La Boétie nomeia três espécies de tiranos: “Uns reinam por eleição do povo, outros por força das armas, outros sucedendo aos da sua raça”. Como é conforme naquele que pratica as regras da argumentação e os preceitos da retórica, é previsível que o autor discuta, um a um, os termos que compõem a “tese” contida na afirmação. É curioso o facto de La Boétie deixar para o fim o caso dos tiranos que reinam por eleição do povo, talvez porque seja este o caso que merece mais ponderação e cuidado no processo especulativo e no esforço exegético. Os que chegam ao poder pela força das armas “portam-se como quem pisa terra conquistada. Os que nascem reis, as mais das vezes não são melhores; nados e criados no seio da tirania, mamam no leite a índole do tirano, tratando os povos em quem mandam como se fossem seus servos hereditários; (…) Aqueles a quem o povo deu o poder deveriam ser mais suportáveis; e sê-lo-iam, a meu ver, se, desde o momento em que se vêem colocados em altos postos e tomando o gosto à chamada grandeza, não decidissem ocupá-los para todo o sempre”. A argumentação prossegue e procede da experiência e esta ensina-nos que o tirano vai querer transmitir “aos filhos o poder que o povo lhes concedeu.” E a história do poder segue o seu caminho e a sua lei, engrossa as suas margens como um rio alimentado por águas caudalosas e o que era mau torna-se pior. Com o tempo e a força esmagadora da opressão esmorece a vontade dos súbditos e maior se torna ainda a servidão. Não haverá grande diferença entre os tiranos, escreve La Boétie e prossegue de forma quase engenhosa, dispondo a argumentação numa espécie de paralelismo: “Os eleitos prosseguem como quem doma touros; os conquistadores, como quem se assenhoreia de uma presa a que têm direito; e os sucessores, como quem lida com escravos naturais”.

Imaginemos agora uma situação diferente, propõe La Boétie. Que faria um povo que não tivesse memória da opressão e por conseguinte desconhecesse a consciência da liberdade? Que faria essa gente se lhe fosse dado a escolher entre o jugo dos tiranos ou a luz da liberdade? Escolheria certamente a liberdade, a não ser que viesse a repetir-se o triste caso dos Israelitas, os quais escolheram livremente a tirania ao pôr o seu destino nas mãos do rei Saul. La Boétie sugere que “os homens enquanto neles houver algo de humano, só se deixam subjugar se forem forçados ou enganados.” Aconteceu com Esparta e com Atenas perante Alexandre da Macedónia, aconteceu com Pisístrates, três vezes tirano de Atenas e outras tantas derrubado. Devemos, no entanto, ao tirano a protecção e “recolha das rapsódias de Homero que hoje podemos ler na Ilíada e na Odisseia” salienta em nota explicativa o tradutor.

Continuo a ler La Boétie. O manto de sombra da “servidão voluntária” acompanha o texto. Às vezes lembra música de fundo, outras cresce como um espinho venenoso ou o lado mais visível de um estigma. O texto desdobra-se em argumentos, mas também em ilustração e exemplos e assim o jovem escritor conduz a nossa atenção suavizando algumas perplexidades ou endurecendo algumas evidências. Ao cabo da leitura das novas páginas, senti-me tentado a orientar a reflexão escrita viajando do fim para o princípio, ciente de que o sentido não se alteraria no essencial. Encontro-me num lugar relativamente calmo, onde a paisagem discursiva acomete suavemente por princípios razoáveis, quase pacificadores. Escreve La Boétie: “É natural no homem o ser livre e o querer sê-lo; mas está igualmente na sua natureza ficar com certos hábitos que a educação lhe dá”. Pobres dos que nascem “com a canga ao pescoço”. É curioso o exemplo que La Boétie vai buscar a Homero. No reino dos Cimérios, o sol desaparece durante metade do ano. É natural, discorre o autor, que os que nascem durante a escuridão não possam conhecer a luz; é natural, portanto, que se haituassem à treva e não desejassem a luz. “Nunca se lastima o que não se conhece. Só se tem desgosto depois de se ter gozado o prazer, e ao conhecimento do infortúnio sempre se junta a lembrança de alguma passada alegria”. Ouvimos agora, por momentos e de forma concisa, o que se passou com Catão de Útica. Quando menino, entrava em casa do ditador Sila acompanhado pelo seu preceptor. Às vezes deram-lhe a ver inúmeras violências e terríveis injustiças. Condenações, crimes, expulsões, confiscação de bens. Catão logo se apercebeu que visitava “o Paço do tirano”, um lugar que “mais se assemelhava ao antro da tirania do que a um tribunal de justiça”. Revoltado, o jovem Catão há-de pedir um punhal ao preceptor, sonhando em matar o tirano para “libertar o povo”. Quem vê homens livres e quem enxerga escravos não pode achar “que uns e outros possuem todos a mesma natureza”. Uns serão dignos de “uma cidade de homens” e outros de um “curral de animsis”. Lembremos também o exemplo de Licurgo, “reformador de Esparta”que desejou mostrar “ao povo lacedemónio que os homens são o que a educação faz de cada um”. A história reza o seguinte: Licurgo criara dois cães, filhos da mesma mãe de modos muito diversos. A um habituou a viver na cozinha e a outro deixou correr livremente pelos campos “ao som da trompa e da corneta”. Um dia “colocou os dois cães no centro de uma praça e, no meio deles, uma sopa e uma lebre”. É bom de ver que um preferiu o prato e o outro quis alcançar a lebre. Assim foram os “lacedemónios, que todos preferiam sofrer mil mortes a submeter-se àquilo que não fosse a lei e a razão”. Fiquemos ainda com uma bela história que muito nos diz acerca do amor que os gregos de Esparta e de Atenas tinham à liberdade. Conta-se que Xerxes, naquela época em que desejou conquistar a Grécia, mandou emissários “a várias cidades gregas, a pedir-lhes água e terra, segundo o costume que tinham os persas de intimar os outros à rendição”. Pelos vistos, não chegou a enviar emissários a Esparta e a Atenas, porque aqueles que seu pai Dario tinha enviado foram parar a poços e a fossos. Diziam os gregos de ambas as cidades “que tirassem terreno e água à vontade e que fossem levá-las ao seu príncipe. Nenhum daqueles povos tolerava, nem sequer por palavras, que alguém lhes tocasse na liberdade”. Aconteceu, porém, que “os espartanos tinham incorridono no ódio dos próprios deuses, especialmente no de Taltíbio, deus dos arautos”. Para apaziguar os deuses, os espartanos enviaram a Xerxes Specto e Bulis, para que deles fizesse o que lhe aprouvesse. Durante a viagem aconteceu-lhes entrarem no palácio de “Gidarno, lugar-tenente do rei em todas cidades do litoral da Ásia”. Como é natural, Gidarno desfez-se em mesuras e promessas e não cessava de mostrar o seu espanto perante a atitude dos espartanos que assim recusavam riqueza e honrarias. Fiquemos por ora com a resposta dos dois bravos Specto e Bulis e meditemos no alcance de suas palavras: ‘Ruim conselho é o que nos dás, Gidarno. O bem que nos prometes, já o experimentaste, mas nada sabes do que nós já possuímos; gozas do favor do rei, mas nada sabes da liberdade, do gosto que ela tem, da sua doçura. Se a conhecesses, havias de nos aconselhar a defendê-la, não só com lança e escudo, mas com unhas e dentes.’ (…) Acrescentaríamos em jeito de conclusão que “Não era possível ao persa estimar a liberdade, pois nunca a tivera, nem ao lacedemónio aceitar a sujeição, depois de ter conhecido o gosto da liberdade.”

“A primeira razão da servidão voluntária é o hábito”, escreve La Boétie. Tal como os burros e os cavalos, aceitamos o freio e a albarda. A princípio resistimos, depois habituamo-nos, tornamo-nos mansos e serviçais e adoptamos como brinquedo o instrumento de tortura e desfilamos garbosos exibindo os arreios, como se fossem asas. Depois ouvimos as desculpas do costume. Sempre foi assim, já assim era no tempo dos nossos pais, habituamo-nos e a moleza instala-se, o antigo vigor desfalece, a aceitação acabrunha, a cobardia faz esmorecer todo o ímpeto, toda a vontade, toda a capacidade de erguer os olhos ao céu, respirar fundo, correr e saltar o muro.Há homens avisados, certamente, aqueles que olham e sabem donde vêm, sem esquecer de procurar o horizonte. Aqueles que só olham para onde põem os pés enganam-se por vezes e não vêem o poço dissimulado. La Boétie lembra Ulisses, o que não desistia, o que enfrentava os perigos e que em cada passo da sua existência sabia aproximar o destino desejado.

O livro, uns mais do que outros, também pode seu um objecto desconcertante, interrogativo, surpreendente e ao mesmo tempo uma reunião de matéria e de forças que te provocam e te obrigam a pensar que em certo passo da leitura ouves as palavras quase eternas, “conhece-te a ti mesmo”. Fico parado à escuta, deixo passar o eco e logo desconfio que pouco vou acrescentar ao que já sabia. Sou um tipo curioso, é verdade. Fixo de ideias? Talvez. O caso é que deparei há dias, no início de um parágrafo do “Discurso sobre a Servidão Voluntária” de La Boétie com a enumeração de uma sequência de nomes próprias que não me sai da cabeça. Que espécie de estranheza ou encanto anda por ali às voltas, desce da página como um recado, rindo-se, com certeza, do velho preceito inscrito em Delfos, vento e memória, afinal? . “Harmódio, Aristogíton, Trasíbulo, Bruto-o-Velho, Valério e Díon”. Gente com estes nomes há-de ter feito das boas, fico por aqui a pensar. Já vamos ver, já vamos ver. De certeza que nunca mais me vou esquecer. Vivemos tempos de conspiração. A isso se dispuseram Bruto e Cássio. Era preciso libertar Roma. Reza a história que não confiaram na coragem do grande Cícero para levar a cabo o golpe necessário. Quando se trata de enfrentar a tirania “com intenção limpa e recta” os que se insurgiram “tiveram a ajuda da própria liberdade, ansiosa por renascer”. Foi o que fizeram os heróis que começamos por nomear. “Em casos assim”, disse La Boétie, “a sorte quase nunca falta a quem quer o bem”.Lembremos sempre o caso daqueles “que não queriam derrubar a coroa mas tão-só abalá-la, pretendendo expulsar o tirano para melhor manter a tirania”. Fiquemo-nos também com as belas palavras, “não se deve abusar do sagrado nome da liberdade para levar a cabo ruins empreendimentos”.

A servidão traz consigo a tibieza e a cobardia. Segundo La Boétie, já “Hipócrates, avô da medicina, (…) o afirmou num dos seus livros intitulado” Das Doenças”.Chegou a hora de lembrarmos Xenofonte,”homem sério e da melhor água entre os gregos”, escreve La Boétie. Lembrou-se o historiador de pôr “Simónides a falar com Hiéron, rei de Siracusa, sobre as misérias dos tiranos. Quanto mais não fosse, serviria o livro para que os tiranos olhassem como num espelho as suas” manchas” e “verrugas”. Grandes medos e terrores passam os tiranos para poderem “fazer o mal”. Por isso entregam as violências e vinganças a mercenários estrangeiros, protegendo-se assim dos súbditos a quem ofenderam. Outros casos houve, como o daqueles Reis “que contrataram para a guerra tropas estrangeiras, com intenção de preservarem os seus súbditos”. Era o que dizia Cipião, o africano, “para quem valia mais defender a vida de um cidadão do que desbaratar cem inimigos”. Segundo La Boétie, “o tirano só se sente em segurança quando consegue ter como súbditos homens sem valor. Com razão se lhe poderia dizer o que Trasão, em Terêncio se gloria de ter dito ao domador de elefantes:

Tão bravo vos heis mostrado
Que sois das bestas criado.”

O exercício do poder é herdeiro de uma grande escola, rica de casos, experiências e invenções. Vejamos o que nos conta La Boétie na triste história dos enganos com que Ciro ludibriou os lídios. Primeiro apoderou-se de Sardes, capital da Lídia, aprisionou de seguida o “riquíssimo rei Creso, levando-o cativo. Como é natural, revoltaram-se os habitantes da capital, mas Ciro era arguto e experiente e logo descobriu um modo infalível de dominar evitando a violência. Fundou na cidade de Sardes” bordéis, tabernas e jogos públicos, mandando apregoar um decreto em que obrigava os habitantes a frequentá-los”. Escusado será dizer que os resultados poderão ter superado as expectativas. Curiosamente, assinala La Boétie, “a palavra latina para significar passatempo é a palavra” ludi”, que vem de Lydia (Lídios). Em resumo, “É espantoso como eles se deixam levar pelas cócegas”.

Sábio é o tirano que ao seu povo adoça o bico. Não nos espantemos com a ignomínia, pois doces e festas e oferendas enfraquecem os ímpetos, amolecem a coragem e derrotam a vontade de resistir. Envenenam ainda aquela reserva que mantém o animal limpo em suas águas criativas e seus fervores, tornam dócil o selvagem, fecham a cadeado a imaginação e estropiam a loucura do homem livre, senhor das suas garras e músculos, capaz de conquistar a eternidade derrubando as muralhas. Mas o tirano acumula experiência e dela se serve para estender o seu domínio. Os tiranos pareciam pródigos em ofertas e recompensas “e não davam conta os néscios, de que recuperavam dessa forma parte do que era seu e que não podia o tirano dar-lhes força que não lhes tivesse furtado antes. O que hoje ganhava o sestércio, o que se fartava de comer no festim público, louvando a grande liberalidade de Tibério e Nero, era no dia seguinte obrigado a entregar os seus haveres à avidez, os filhos à luxúria e o próprio sangue à crueldade daqueles magníficos imperadores, fazendo-o sem dizer palavra, mudo como uma pedra, quedo como um cepo. O povo ignorante sempre assim foi. Perante o prazer que honestamente não pode atingir, é aberto e dissoluto, e face ao agravo e à dor que honestamente não deveria sofrer, é insensível.”Pergunta La Boétie: “quem mais do que os tiranos tem conseguido para sua segurança habituar o povo não só à obediência e à servidão mas até à devoção?”. A história da dominação é feita de mentiras e de enganos, de supostos milagres e unguentos destinados a amaciar a alma dos pobres assim mudada em pele de cordeiro e pescoço inclinado para o cadafalso. “Faz pena ouvir contar as artimanhas,” diz La Boétie, “a que os tiranos de antigamente recorriam para consolidarem as suas tiranias e o modo como de coisas somenos tiravam grande partido”. Enfim, graves casos, alguns mistérios e certamente muito enxofre misturado com água benta. Alguns dos casos e histórias parecem inverosímeis, mas veja-se o caso de “Vespasiano,” que “no regresso da Assíria, passando por Alexandria no caminho para Roma, aonde ia tomar o governo do Império, fez muitos milagres. Punha os coxos a andar, dava vista aos cegos e obrava muitas outras façanhas em que só podia acreditar quem fosse mais cego do que essoutros a quem ele curava”.

E vai concluindo La Boétie este seu “Discurso sobre a Servidão Voluntária” e nós com ele, fechando um pouco mais os olhos ou abrindo lugares fundos na memória, coisas que ardem também e que às vezes saltam como bolhas venenosas embrulhadas em nuvens. “Passarei agora a um ponto que, a meu ver, constitui o segredo e a mola da dominação: o apoio e o alicerce da tirania.” Quem defende os tiranos, afinal? Não são os guardas e o alabardeiros, não serão as hordas de servidores e os regimentos acantonados em volta do palácio? Serão tão-só “quatro ou cinco os que estão no segredo do tirano, são esses quatro ou cinco que sujeitam o povo à servidão (…) Essa meia dúzia tem ao seu serviço mais seiscentos que procedem com eles como eles procedem com o tirano. Abaixo destes seiscentos há seis mil devidamente ensinados a quem confiam ora o governo das províncias ora a administração dos dinheiros, para que eles ocultem as suas avareza e crueldades, para serem seus executores no momento combinado e praticarem tais malefícios que só à sombra deles podem sobreviver e não cair sob a alçada da lei e da justiça. E abaixo de todos estes vêm outros. Quem queira desenredar esta complexa meada descobrirá abaixo dos tais seis mil mais cem mil e milhões agarrados à corda do tirano; tal como em Homero Júpiter se gloria de que, puxando a corda, todos os deuses virão atrás”. E a tirania prossegue por modos renovados, senta-se no trono de César, reinventa-se e cresce no número de usufrutuários. “São quase tantas as pessoas a quem a tirania parece proveitosa como as que prezariam a liberdade”. Debaixo do tirano se vêm, portanto, juntar os tiranetes. La Boétie falar-nos-á abundantemente dos “piratas sicilianos” e da guerra que lhes moveu Pompeu Magno, mas os piratas também conheciam as leis e sabiam fazer alianças e assim navegavam e espalhavam o corso, distribuindo benesses aos apoiantes. Diz La Boétie, “O tirano submete uns por intermédio dos outros” e vê-se assim protegido por aqueles que submete. É triste de ver a estupidez dos oprimidos que aos tiranos prestam serviço. São eles os primeiros “a abraçar a escravatura”.Quem se aproxima do tirano, arrisca-se a perder a liberdade. “O camponês e o artesão, embora servos, limitam-se a fazer o que lhes mandam e, feito isso, ficam quites”, mas os que andam em volta dos favores “não se poderão limitar a fazer o que ele diz, têm de pensar o que ele deseja e, muitas vezes, para ele se dar por satisfeito, têm de lhe adivinhar os pensamentos.” Não haverá pior condição do que esta. Feliz será o foragido e o indigente, pois o servo é obrigado a fazer-lhe “todos as vontades (…) trabalhar nos negócios dele (…) ter os gostos que ele tem, (…) renunciar à sua própria pessoa”. Pobres servos que “não têm olhos, nem pés, nem mãos, têm de consagrar tudo ao dever de espiar a vontade e descobrir os pensamentos do tirano. Será isto viver feliz? Será isto vida? Haverá no mundo coisa mais insuportável do que isto? (…) Haverá condição mais miserável do que viver assim, sem se ter nada de seu, sujeitando a outrem a liberdade, o corpo, a vida? Mas querem servir para juntarem fortuna…”

O servo nem da sua pessoa é dono. Como pode ele pensar em ganhar o que quer que seja ao serviço do tirano? Já sabemos donde vem essa temível força do tirano que tudo possui e a todos absorve. São os pobres e desgraçados serviçais que lha oferecem, lha entregam, lha outorgam. Ah, esse terrível desejo de possuir, ah, esse maldito verbo ter, motor de delírios, façanhas, ilusões e desastres. Todos os que vivendo nos Paços do tirano, bons e maus, estrategas brilhantes e mentes ilustres, vencedores na ordem da táctica e na projecção estratégica, todos eles serão vítimas da voragem do tirano. Ó, como eram bem vistos Séneca, Burro, Trázeas e como sofreram na pele a ruindade dos tiranos. O tirano a todos quer mal, tudo despreza, a si próprio odeia. Belos exemplos nos chegam do séquito de Nero. O monstro a todos parecia amar e a todos destruiu. Que fez Nero a sua esposa Popeia? Que tinha feito Agripina, mãe de Nero? Assassinara Cláudio, seu marido, por amor de Nero e este que fez? Assassinou sua mãe. A história é pródiga em acontecimentos, mas também em casos que, aparentemente, diferenciam os tiranos. Uns serão violentos e outros perversos; alguns serão valentes e outros imbecis ou charlatães. O que parece certo é que mesmo o mais aparentemente inofensivo, estranhamente se muda em assassino. Lembremos o pobre e “ingénuo” Cláudio, tão abundantemente enganado por Messalina. Um dia o “ingénuo”, o distraído, a reunião de virtudes não se esqueceu de “a entregar ao carrasco”. É certo que os tiranos se encantavam a prevenir o crime e com que prazer se encantavam também a sentir a pele sedosa de um belo pescoço em breve arrancado ao colo pela adaga. Escreve La Boétie: “É bem conhecido o dito do homem que, vendo a descoberto o colo da mulher amada, sem a qual parecia não poder viver, a acariciou, dizendo: ‘Este belo pescoço, logo que eu o ordene, será cortado’.”Lembremos sempre, nas palavras de La Boétie, a extraordinária fábula de Esopo: “Respondeu a raposa ao leão que se fingia doente: ‘De boa mente entraria no teu covil; mas só vejo pegadas de bichos que entram e nenhuma dos que dele tenham saído’.”

O tirano vive só no fausto silencioso do seu palácio de sangue. Corredores medonhos e altas colunas de gelo cobrem a sombra dos assassinos. O tirano não tem amigos, fabrica os seus assassinos a quem considera favoritos. Assim morreram, Domiciano “às mãos de Estêvão, Cómodo assassinado por uma das suas amantes, Antonino por Macrino(…)”. Os preceitos e valores da amizade, o culto da bondade e da mútua estima, a honestidade dos propósitos, a integridade, não vestem o hábito do tirano. O tirano não conhece as bondades da amizade, mas alimenta com zelo as agruras da cumplicidade. O tirano vive só, ofuscado pelo diamante que julga animar o cofre da sua alma negra. “Entre os ladrões”, escreve La Boétie, “reina a maior confiança, no dividir do que roubaram; todos são pares e companheiros e, se não se amam, temem-se pelo menos uns aos outros e não querem, desunindo-se, tornar-se mais fracos.” No entanto, o tirano atrai como um perfume, inebria e cega com a sua luz, desencadeia no séquito o íntimo espírito suicidário das almas mortas. Aproximemos de novo a fábula e observemos “O Sátiro indiscreto” que “ao ver aceso o lume descoberto por Prometeu, achou-o tão belo que foi beijá-lo e queimou-se.” Pode acontecer, adverte La Boétie, que os favoritos escapem ao tirano, mas “não escaparão às mãos do rei que vier depois.” Oiçamos o desabafo e que nos sirva de lição também a nós, pois o reino do tirano não parece ter fim: “Que tormento estar sempre de olho à espreita, de ouvido à escuta, a espiar de onde virá o golpe, para descobrir as ciladas, examinando sempre as feições dos concorrentes, a ver se descobre quem o trai, rindo-se para todos e a todos receando, não tendo inimigo declarado nem amigo certo! Que tormento fazer sempre rosto risonho, tendo o coração transido, não poder mostrar-se contente e não se atrever a ser triste!…” Terminemos com palavras sábias e ao mesmo tempo terríveis: ” (…) o povo gosta de acusar dos males que sofre não o tirano mas os que o aconselham (…) sobre eles lançam mil ultrajes, mil vilanias, mil maldições (…) Em paga dos serviços que prestam ao tirano, tal é a honra, tal é a glória que recebem das pessoas, que, caso pudessem arrancar-lhes um bocado do corpo, nem assim se sentiriam saciadas ou mais consoladas pelo sofrimento que eles lhes infligem. Mesmo depois de morrerem, os que ficam tudo farão para que o nome de Come-Gentes lhes seja atribuído, escrito e manchado pela tinta de mil penas, e a sua reputação desfeita em milhentos livros, e os próprios ossos, a bem dizer, pisados pelos vindouros, que assim castigam depois de mortos os que sempre tiveram ruindade. Aprendamos pois com tais exemplos, aprendamos a fazer o bem (…) “.

Imagem: Antígona + Marcelos Marques (ed VN)

Obs: este texto resulta da colagem de diversos textos do autor publicados originalmente na página de facebook de José Miguel Braga, tendo sofrido algumas adequações editorias na presente edição.


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Categorias: Cultura, Leitura, Literatura

Acerca do Autor

José Miguel Braga

Professor, encenador, ator.

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