Nós, Europeus! – Construção, reconstrução e desconstrução de uma herança metafísica
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“Forsan et haec olim meminisse iuvabit” (trad.
“Talvez algum dia nos seja agradável recordar
essas coisas”)
Virgílio, Eneida I:203
O leitor, se acaso possui a cidadania portuguesa, deve saber que, além dessa, possui também a cidadania europeia, ou melhor, possui a condição de cidadão da União Europeia (UE) de iure et de facto. Assim foi convencionado por tratado e, igual e permanentemente reconhecido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia em diversos acórdãos jurisprudenciais. Esta atribuição faz do leitor um civitas de direitos reforçados, nomeadamente ao nível da liberdade de circulação e de residência na UE sem discriminação em razão da nacionalidade; ao nível dos direitos políticos ativos e passivos, ou seja, no direito de eleger e de ser eleito em eleições nacionais; ao nível da participação social e cívica, com especial atenção ao direito de petição ao Parlamento Europeu; também o direito de apresentar uma queixa ao Provedor de Justiça da UE; na proteção dos direitos fundamentais ao nível mais elevado e até em direitos mais ordinários como fazer compras on-line em toda a União ou ter cuidados de saúde e estudar nos países que compõem esta extraordinária organização. De entre muitos outros direitos, também queria referenciar um direito especial: o cidadão português, por exemplo, caso esteja num país extracomunitário sem representação diplomática portuguesa, pode arguir da sua condição de cidadão da União Europeia e requerer proteção consular da própria UE ou de qualquer Estado membro desta e, dessa forma, ser tratado nas mesmas condições que os cidadãos naturais desses mesmos Estados. Exemplificando: imagine o leitor que está de visita a um país sem representação diplomática portuguesa, acontece-lhe um infortúnio – que pode estar relacionado com um falecimento, um acidente, uma doença, uma situação de prisão ou detenção, ou ser vítima de crime violento ou sujeito de repatriação – então pode dirigir-se à representação diplomática da União Europeia e beneficiar de proteção ou assistência, não porque é cidadão português, mas sim porque é cidadão da União Europeia. Mas, ainda que a União Europeia não tenha nesse mesmo país qualquer representação diplomática, pode o leitor dirigir-se a qualquer embaixada ou consulado de qualquer país que faça parte da União Europeia e dessa forma, enquanto cidadão europeu, ver ser-lhe prestado pelo menos a mesma assistência que seria prestada a um cidadão nacional desse mesmo país; assim, se um português recorrer a uma embaixada alemã, por exemplo, será tratado como se fosse cidadão alemão, embora não seja cidadão alemão mas sim cidadão europeu.
Europeus emergem da tensão permanente entre o excelso e o medíocre
Esta viagem pela cidadania europeia tem um objetivo preciso: fazer o leitor tomar consciência que é contribuinte e beneficiário de um legado histórico magnífico e permanente que constitui o ser-se europeu. Se a minha plateia fosse composta inteiramente por crentes das religiões abraâmicas, eu diria que quero falar-lhes da alma ou do espírito europeu. No entanto, neste mundo da ciência, da técnica e da tecnologia, é bem melhor reduzirmos a linguagem a um conceito mais moderno, como por exemplo a mente ou consciência – uma natureza intrínseca – do cidadão europeu. Não pretendo fazer juízos sobre comportamento instrumentais deste ou daquele povo, mas sim ir mais fundo, não ter medo de negar ou afirmar uma posição, que será sempre subjetiva, como é evidente, mas quero chegar aí, onde não mora a quietude do sangue.
Fazer-se desta forma sintética uma ontologia da naturalidade ou da nacionalidade não é despiciendo. Não somos nós, porventura, herdeiros de toda a filosofia grega, com mais de 2500 anos? E de um direito e de uma justiça romana, também ela espargida e milenar? Não somos também filhos desses padres apostólicos e apologéticos que nos doutrinaram sem pudor ou constrangimento? Ou herdeiros de línguas clássicas, já mortas, dizem, que ora funcionaram (funcionam?) como veneno ora como antídoto? E mais, não nascemos nós da mesma cepa que figuras excelsas como Homero, Hesíodo, Platão, Aristóteles, Vergílio, Cícero, Catulo, Agostinho de Hipona, Tomás de Aquino, Maquiavel, Shakespeare, Ivan Turgueniev, Fiodor Dostoievski, Goethe, Marx, Kierkegaard, Arthur Schopenhauer, Friedrich Nietzsche, Pessoa e muitos outros? Ou inclusive de figuras terríveis como Tibério, Calígula, Nero, Vitélio, Domiciano, alguns Papas malditos, os reformadores fanáticos, cruéis inquisidores, Napoleão, Leopoldo II da Bélgica, Hitler, Estaline e companhia? E não somos nós, afinal, um produto de empiristas britânicos, racionalistas franceses, idealistas alemães a até de niilistas russos? Bem, como pode o leitor comprovar, o europeu não é apenas um animal bípede sem penas, é bastante mais que isso. É, prima facie, um ser dialético onde a vida emerge da tensão permanente entre o excelso e o medíocre.
O Europeu v. os Europeus
Nós, Europeus, não somos um único povo, somos muitos povos unidos. Não somos um único território, somos diversas terras unidas. Nem somos uma única língua, mas muitas, vivas e mortas que vivem. Nós ultrapassamos essa fase e essa circunstância. Superámo-la. Somo muito mais que isso. E é por isso que também somos diferentes e complexos. Existem povos e nações cujo olhar se dirige unicamente para o futuro. Outros limitam-se a viver esse instante efémero que é o presente. Outros vivem numa dimensão impenetrável para o estrangeiro. O Europeu, pelo contrário, vive personificado nesse deus Janus, uma divindade bicéfala que olha para o passado e para o futuro, olha o oriente e o ocidente, fala a vozes distintas, pensa a dobrar e escuta sons inauditos. Duas caras, que tanto podem ser rostos como podem ser máscaras.
Literatura clássica contém ADN fundador da Europa e dos Europeus
Nos próximos artigos pretenderei focar qualidades – ou os chamados acidentes aristotélicos -, personagens ou acontecimentos que, ao longo da história, determinaram aquilo que somos hoje, e que, de alguma forma, radicam no mais profundo de nós, no nosso património genético, impressos na alma, e no meio envolvente, do qual não podemos renunciar. Numa altura de populismos e de fake news, faz-se urgente lembrar ao leitor a massa de que é feito ou de como o outro afinal somos nós próprios, para que possamos afirmar-nos como Ricoeur, enquanto soi même comme un autre.
No próximo artigo – o primeiro desta série – tentarei mostrar o que herdamos dos gregos antigos e como se manifesta hoje, em cada um de nós, essa pesada e fascinante herança.
Enquanto isso, convido o prezado leitor a pegar nesses clássicos gregos, ousar olhar-se ao espelho. Viaje na Ilíada, essa obra fundadora da literatura ocidental. Não tenha medo de fixar a guerra e conhecer a ira, esse sentimento tão humano. Depois acompanhe Ulisses no seu regresso a Ítaca, na Odisseia, e contemple o poder da aventura e o chamamento da terra. Pegue em Hesíodo, no seu Os Trabalhos e Os Dias, e reconheça nele o valor da labuta e do mérito. Tenha a coragem de voltar à filosofia das ideias de Platão, aos seus mitos e às suas inúmeras e ricas metáforas, seja na República, seja nos seus Diálogos ou nas Cartas. E não se esqueça de tocar pelo menos numa obra de Aristóteles, pode ser na Metafísica se for ousado, e entre num paraíso escondido. Aproveite a viagem com Parménides nos seus “corcéis que nos conduzem, tão longe quanto o coração possa” e dê uma oportunidade a Heraclito e ao seu mundo em movimento perpétuo. Como o tempus fugit, lembre-se apenas que a sua alma não seria tão rica e luminosa se não fosse Esopo e as suas incríveis fábulas. Aproveite para as ler em português, mas olhe para elas em grego antigo, essa língua dos deuses, e pasme-se.
Têm o seu ADN diante dos seus olhos. Escute Kant: sapere aude! Ouse saber! Encontrar-nos-emos em breve.
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