breve história da europa - raquel varela - recensão - joão carlos louçã

Por que ler a ‘Breve História da Europa’ de Raquel Varela?

 

 

Organizada em 8 capítulos, esta Breve História da Europa, agora com uma edição de bolso, analisa com rigor a história europeia da Grande Guerra de 14/18, aos nossos dias, pré-pandemia. Proporciona uma fascinante leitura através dos principais acontecimentos do século passado, da relação entre capital e trabalho, da formação e consciência da classe-que-vive-do-seu-trabalho e das muitas encruzilhadas da história, com todos os momentos em que o futuro do continente esteve em aberto e poderia ter sido diferente. Raquel Varela descreve, analisa e conclui sobre inúmeros assuntos a propósito desse percurso. De forma contundente intervém nos principais debates na historiografia, a propósito de duas guerras destrutivas – até hoje as únicas que são conhecidas por “mundiais” – das condições em que estas ocorreram e das alternativas que, na época, não tiveram força para vingar, mas também daquilo que veio após estas guerras; da Europa como projeto político da dominação burguesa; do intervalo conhecido pelos “30 gloriosos”, de crescimento e esperança em que quem-vive-do-seu-trabalho pôde ter melhores salários, menos horas de trabalho, organização sindical, serviços públicos nos campos da educação, saúde e assistência na velhice. Como bem descreve a autora, esses anos não foram produto do acaso ou da beneficência das classes dominantes, eles resultaram da força do movimento dos trabalhadores no pós-guerra de 45, naquilo que foi designado por pacto social em que a melhoria substancial das condições de vida foi moeda de troca para refrear todos os projetos revolucionários que então se exprimiam com intensidade.

Segurança de emprego apazigua conflitos sociais no pós-Guerra

Diz ela, na pp. 104 “Terminada a Segunda Guerra Mundial, havia centenas de milhões de trabalhadores armados em toda a Europa. Como desarmá-los? Como reduzir o conflito à luta entre democracia e fascismo, entre regimes políticos, expurgando a revolução, mantendo o Estado capitalista na Europa ocidental inquestionável?

De duas formas: negociando com a URSS e convencendo os partidos comunistas a depor armas; e construindo o Estado social, o pacto social europeu, em que o capitalismo teria um travão a si próprio – a garantia da segurança de emprego”.

A história da Europa poderia ter sido diferente se…, mas…

Como bem sabemos, foi a partir dos anos 80 do século passado que esse pacto caduca e começam os ataque aos direitos do trabalho, principal objetivo do capitalismo na versão neoliberal que ainda hoje enfrentamos.

A linha cronológica de Raquel Varela anda para a trás e para a frente sem uma preocupação de linearidade. Pelo contrário, esse movimento do olhar em frente e para trás em simultâneo revela argumentos, clarifica a análise do que aconteceu nas condições em que aconteceu, as suas consequências projetadas no futuro e, muitas vezes, permite pensar o que poderia ter sido se os caprichos da história tivessem tido outro rumo.

Um desse caprichos, que a autora refere na pp. 84, remete-nos para o testemunho de David Rousset, militante trotskista francês que em agosto de 1936, conheceu em Marrocos, Omar Abjeli e Mohamed Wazzani, dirigentes do movimento nacionalista marroquino. Com eles viajou para a efervescente Barcelona onde estabeleceu contactos com o POUM (Partido Obrero de Unificacion Marxista), a CNT (Confederation Nacional del Trabajo) e a FAI (Federation Anarquista Ibérica. Em setembro tinham estabelecido um protocolo em que os nacionalistas africanos atacariam a retaguarda de Franco e a sua base logística e em troca veriam reconhecida a independência dos territórios espanhóis no Rife. O acordo celebrado entre todos os partidos e o governo catalães tinha de ser aprovado por Madrid. O governo republicano, acossado pelo fascismo e pressionado pelos governos francês e britânico, ciosos dos seus impérios, não estava pronto para se desfazer dos territórios coloniais. O acordo fracassa e a retaguarda de Franco é deixada em paz pelos nacionalistas marroquinos.

O episódio dá-nos um vislumbre dos caminhos de uma História que podia ter sido uma coisa mas que foi outra. Dos “ses” intermináveis que nos fazem pensar nas circunstâncias e nas pessoas que foram protagonistas e que determinaram aquilo que veio a seguir. O “se” desta história marroquina é um “se” gigantesco capaz de nos fazer formular outras perguntas. E se a guerra de Espanha tivesse significado uma derrota das forças fascistas na Europa em 38? E se Madrid e Valência nunca tivessem caído.? E se Estaline nunca tivesse tomado o controlo de Barcelona, acabado com as milícias e decapitado o POUM e a CNT? E se Picasso nunca tivesse tido de pintar Guernica? E se a Legião Condor, Hitler e Mussolini tivessem tido em Espanha a sua primeira derrota?

A história não se faz no condicional, todos o sabemos. É também por isso que a descrição contida no livro sobre este período é fundamental para entendermos de onde veio a noite fascista na Europa dos anos 30 do século passado. A tibieza dos governos de Frente Popular espanhol e francês, a política de colaboração de classe do movimento comunista alinhado com Moscovo, se não determinaram terão certamente contribuído para a derrota espanhola e para o caminho que se abriu às forças do Eixo a partir daí.

Acontecimentos que marcam o mundo atual analisados à luz da história global

No mesmo capítulo, dedicado às revoluções dos anos 30, Raquel Varela evoca os acontecimentos em Casas Viejas, na Andaluzia rural em janeiro de 1933. O episódio e a sua interpretação histórica é palco para uma profunda desavença entre um ilustre historiador e um antropólogo. Eric Hobsbawm, o historiador em causa – visitou Casas Viejas em 1956 e classificou os anarquistas rurais espanhóis como “pré-políticos” e “rebeldes primitivos” – num modelo evolutivo de desenvolvimento político. Para Jerome Mintz, o antropólogo que investigou longamente o assunto, o levantamento de Casas Viejas é justamente o exemplo contrário à teoria de um movimento espontâneo, utópico, apocalíptico, como foi caracterizado por Hobsbawm. Respondeu a um apelo de greve revolucionária nacional. Os anarcosindicalistas de Casas Viejas acreditaram que estavam a participar num movimento de maior amplitude iniciado dois dias antes. Mintz afirma que Hobsbawm utilizou os acontecimentos de Casas Viejas para comprovar a sua perspectiva num trabalho de terreno em que lhe terá escapado sempre o essencial.

Na linha da história global que faz, a autora encontra o seu fio condutor nas condições de trabalho, nos significados do trabalho em cada momento histórico, na organização de trabalhadores como agentes de mudança e esperança por um futuro melhor. Sem concessões fáceis às situações difíceis ou aos momentos de dificuldade e incerteza em que os trabalhadores e as suas direções claudicaram, cada episódio contado revela uma linha de pensamento com grande coerência e onde a atividade científica tem no marxismo grelha fundamental de análise. É por isso natural o ênfase dado aos processos de luta que têm no exercício da greve o seu mais forte exemplo. A liberdade tantas vezes negada e outras tantas conquistada, tem nas lutas laborais os seus maiores exemplos, a chave para os avanços em todos os domínios. Sem elas a escravatura ainda estaria nas leis, as mulheres não teriam direito a voto e continuariam submetidas à vontade de pais e maridos. Sem as lutas operárias não haveria semana de 40h, nem férias pagas. Sem elas nunca teríamos tido educação pública ou serviço nacional de saúde.
Sem o exemplo da revolução russa e das suas enormes realizações nos campos da igualdade, ainda que no espaço de uma curta década, o proletariado europeu e as classes trabalhadoras do mundo inteiro, não teriam tido pretexto ou força para desafiar o poder burguês – em alguns casos, que a Raquel faz notar, impor-lhe derrotas profundas, ainda que efémeras. Sem a Comuna de Paris nos seus 72 dias de desafio, não teria, provavelmente, acontecido a revolução russa de 1917.

Munique 1972, Berlim 1936, Cidade do México 1968 – são datas e lugares de três edições de Jogos Olímpicos que a autora, a propósito da ocupação israelita da Palestina, refere nas pp. 165 e 166. Um bom exemplo desse movimento de vai-e-vem na cronologia que nos permite melhor entender e ter uma rápida aproximação das implicações políticas destas edições olímpicas. No primeiro caso, o rapto, por guerrilheiros palestinianos, de atletas israelitas. No segundo caso, a utilização dos Jogos para afirmação do regime nazi mas também a oposição de organizações judaicas e de sindicatos de trabalhadores que exigiam dos EUA a não-participação. No terceiro caso, o pódio da icónica imagem dos dois atletas afro-americanos Tommie Smith e John Carlos, de punho erguido, luva negra na mão – a luta dos negros norte-americanos pelos direitos civis e igualdade, a imagem que se tornou a expressão gráfica do grito de “Black Power”.

Por esta Breve História da Europa também perpassa a Revolução portuguesa

Tratando-se de uma “Breve História da Europa” a autora passa em revista muitas das situações especificas de cada país, os acontecimentos e condições sociais e políticas que os impulsionaram. E para além da Europa, uma vez que acontecimentos como o do golpe de Pinochet no Chile, por exemplo, tiveram fortes repercussões em territórios europeus.

No espaço que naturalmente dedica à revolução portuguesa de 74/75, à contra-revolução que se seguiu e aos seus significados Raquel Varela não tem hesitações: “a democracia representativa não foi a extensão da revolução, mas sim a rutura com a revolução. A definição de um regime assente na continuidade da modernização capitalista teve primeiro de pôr fim aquele que foi o período mas revolucionário da história de Portugal, o seu período mais democrática” (pp 213).

Ainda a propósito da revolução portuguesa, a autora insurge-se contra as visões deterministas da História, o senso-comum fácil que repete que o resultado de uma crise será sempre a perda inevitável da força de trabalho face ao capital. Nos contextos de crise económica internacional que analisa, os exemplos de expansão de direitos laborais e da massa salarial, direta e indireta, são muitos. A França pré-revolucionária da Frente Popular perante a crise de 1929, e a Europa do sul após a crise de 70/73. No caso português foi o processo revolucionário que fez avançar, à velocidade da luz, esses direitos, apesar da crise do “choque petrolífero” e da queda das taxas de crescimento do país. Em contextos revolucionários, ou pré-revolucionários é a força dos movimentos populares, dos trabalhadores organizados, que garante a expansão de direitos para toda a sociedade e deixa vislumbrar as enormes contradições do regime de produção capitalista. Este vê-se obrigado às concessões que lhe permitam continuidade, num quadro social de contestação generalizada e de visível expressão de alternativas. Esta obra devolve a todos esses momentos a sua enorme capacidade de mudança, as ruturas que deixaram marcas profundas naquilo que hoje somos e nos direitos que adquirimos.

Imigração e internacionalismo marcam mais recente globalização da economia europeia

Na última secção do livro, dedicada à imigração e ao internacionalismo no quadro europeu, Raquel Varela deixa abertas as brechas da esperança onde podermos imaginar soluções e alternativas projetadas para o devir. Cito, da pp. 257: “A globalização criou concorrência entre trabalhadores rebaixando o salário de todos à escala mundial, mas pode ter criado também o seu contrário – o internacionalismo.”

Um dos exemplos fortes que serve o argumento é o da luta dos trabalhadores dos portos. Liverpool em 1995 – uma disputa que se prolonga até 1998 com fortes repercussões internacionais, que juntou trabalhadores precários a trabalhadores efetivos, contra a privatização do setor e a chamada “liberalização” laboral. Em 2008, os mesmos trabalhadores portuários protagonizam uma extraordinária greve de solidariedade internacional. Por esta altura e nos anos seguintes, também em Portugal, as ameaças de despedimentos e restruturação são objeto da solidariedade dos trabalhadores do setor em todo o mundo. O conflito prolongou-se durante anos, com a solidariedade de classe a ultrapassar fronteiras e governo e patrões a terem de enfrentar poderosos movimentos de greve e boicote em solidariedade com os estivadores portugueses. Na descrição densa da história deste processo de luta podemos afinal encontrar caminhos.

Uma obra fundamental

Sem soluções fáceis, este livro, faz-nos pensar, fornece instrumentos para uma reflexão sustentada. Tão pouco a leitura desta “Breve História da Europa” requer uma concordância absoluta com todas as afirmações da autora, mas é sem dúvida uma obra fundamental para entender de onde vimos e para onde ainda podemos ir. “


Obs:

1. a edição da “Breve História da Europa” utilizada para este texto foi a de 2019, da Bertrand Editora.

2. texto previamente publicado no blogue Raquel Varela | Historiadora, tendo sofrido ligeiras adequações editoriais na presente edição.


‘Breve História da Europa’ de Raquel Varela com edição de bolso

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