Se eu fosse um cidadão competente e atento, responsável, enfim, pelas partes do destino que me cabem, já tinha ido lavar os óculos há muito. Deixei-me ficar nesta lassidão de poeira e restolhos da respiração agarrados ao vidro e deve ser por isso que o dia luminoso, azul e pousado como um sacramento ou um rijo pernil alvoroçado num pouco de vinho e algumas manadas de sal, me parece meio fosco entre impressões londrinas, obras nos prédios, bulícios surdos e outras maquinações de natureza pensativa.
Às vezes acordamos com estes memoriais a pingar do nariz, estas sombras escusadas e inconvenientes. A verdade, no entanto, é que se eu for lavar os óculos, a minha vida poderá mudar um pouco. Fico logo a sorrir da beiça e das sobrancelhas, olho à janela e vejo o caminho que segue no pequeno bosque encantado. Logo a seguir volto para trás. Esqueci-me de trazer as botas e agora o terreno parece bastante molhado. São nascentes que aparecem de todo o lado, nascentes e flores, tufos, solidões, cores violáceas misturadas com o amarelo, alguma impressão de branco sujo quase desmaiado.
Regresso a casa. Tenho muito que fazer. Canhotinha na lareira, aqueço as mãos e de vez em quando espreito a ver o dia a passar. Agora, sim, está na altura de lavar os óculos. Não me ocorre nada para dizer. Pode ser que o exercício, a água a cair, a sensação do vidro ensaboado, a massagem cuidadosa com a folha de papel, pode ser que isso traga algum alento. Logo se verá e já se vê alguma coisa.
Fui e vim. Sinto-me um pouco mais pasmado. Deve ser o brilho das coisas. A cortina do escritório cheia de sol. Havia de passar uma borboleta lá fora e eu a pensar que era um pequeno dragão perdido no jardim. Põe-te a pau, bichinho, olha o melro!, mas a esta hora o melro já passou a cancela e depois naqueles plainos molhados por tantas águas crescem flores por um dia e amanhã mudam de sítio.
Da próxima vez não me posso esquecer das botas. Gostava tanto de espreitar aquele penedo mais alto. Sei lá o que estou a perder, mas eu não quero salvar-me. Se eu chegasse lá acima, assim com a vista afinada e o coração esperançoso, os músculos bem rijos de cabra montesa, ainda me punha a suspirar pelas belezas ao longe, ainda me perdia. O paraíso é realmente um sítio perigoso. A gente fica ali a pasmar e os óculos outra vez cheios de poeira, o que vale é que da próxima levo as botas e posso chegar à beira do ribeiro. Ó, sim, massajar as lentes com musgo e hortelã e então é que eu vejo.
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Editada edição comemorativa da Viagem a Portugal de José Saramarago
Imagem: Marcelo Marques (edVN)
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