As portas da perceção

 

 

Descobrir a origem de um problema pode ser tão ou mais difícil do que a resolução em si mesma. Sem intenções genéricas ou superficiais, a verdade é que, por norma, a descoberta do pedigree, da matriz de um conjunto de factos não isolados e que (nesse sentido) configurem uma realidade de encadeamentos, se consubstancia em algo que saliva por detida reflexão.

Pois bem: não será crucial migrar para um estado de transe reflexivo ou meditativo para deslindar o que levou as autoridades judiciárias portuguesas a empreender a tão badalada “Operação Teia”.

Refiro-me à polémica que veio à estampa, umbilicalmente ligada a uma franja do poder autárquico e respetiva esfera de influência corruptora de titulares de órgãos e instituições de cariz público. Alegadamente, os autarcas de Barcelos e Santo Tirso – incluindo, neste último caso, a respetiva mulher –, em colaboração com o presidente do Instituto Português de Oncologia (IPO) do Porto, terão constituído os baluartes de uma arquitetura versada na prática de crimes de natureza económico-financeira, que assumiu como tradução prática “a viciação fraudulenta de procedimentos concursais e de ajuste direto” (de acordo com o veiculado pela Diretoria do Norte da Polícia Judiciária, através de comunicado oficial datado de 25.05.2019).

A jusante das formulações jurídicas relativamente às sanções penais adstritas a este figurino de condutas[1], coloca-se, sem hesitar, a questão: será isto uma nouvelle vague ou, em roupagens simplistas, a visualização do filme do costume?

Confiando na perspicácia do leitor, parece-me demasiado evidente o sentido da resposta.

Com a franqueza possível, trazer à liça casos como este, tem tanto de trivial, quanto de infrutífero. Pelo ângulo da trivialidade, a elevação pública de indícios de corrupção no contexto peculiar do poder local em Portugal não é, de facto, um fenómeno jovem, bem pelo contrário: lembramo-nos – pelo menos, na última vintena de anos –, de Felgueiras, Gondomar, Oeiras, entre outras, verdadeiros paradigmas de edilidades cuja gestão, em tempos idos e ao cabo de vários mandatos, fora orientada, cirurgicamente, no sentido do favorecimento pessoal, de molde direto ou indireto. No tocante à aridez destas revelações, assistimos, ontem como hoje, a uma apatia generalizada, temperada por uma desvalorização, judicial e política, na prevenção, repressão e punição destes comportamentos, perfeitamente localizados no tempo e no espaço.

Poder-se-á pensar que a panaceia ou o elixir para todos estes males reside na indispensabilidade de operar uma mudança, corajosa e responsável, nas engrenagens das máquinas partidárias; simultânea ou alternadamente, surgirá, porventura, a tentação de refletir sobre o (crónico) problema da adequação das penas a este cardápio de ilícitos criminais.

Porém, salvo o respeito por melhor opinião, o antídoto tem carácter sociológico. Melhor dito: tem profundas raízes cívicas.

O tempo demonstrou-nos que o conformismo e a subserviência aos interesses instalados e disseminados pela “política de proximidade”, deram lugar a consequências absolutamente tóxicas, não para os governantes, mas, como sempre, para os governados. Dito isto, não se parece afigurar-se outra solução suficientemente sustentável que não seja lançar as bases de iniciativas civis, de grupos, movimentos ou associações de cidadãos, imunes a “partidarices” e caciquismos, com vocação para desenvolver alternativas de governação ao nível autárquico. Não parece haver outra saída. Nem possível, nem desejável. Com efeito, haverá como negar os méritos de experiências de agremiações civis que, esgotadas do carrossel sectário que se viveu (e vive) em certas frações do panorama autárquico, decidam tomar a linha da frente do palco político?

Claro que há sempre um lado cómico nas argumentações negativas. Especialmente uma tentativa de colagem a epifenómenos de extremismos ou radicalismos. Mas não se trata de algo assim.

Concebeu-se, na Ocidental Praia Lusitana como noutras paragens, uma espécie de aversão institucional não apenas à aceitação, pura e simples, de intervenção política de movimentos de cidadãos independentes, como à própria capacidade para participarem dos sufrágios eletivos, nacionais, regionais ou locais. Tal quadro não surpreende, nem pode surpreender. Precisamente pela linha de pensamento básica, a resvalar num raciocínio eminentemente matemático: X números de movimentos cívicos que se aventurem no ofício público de servir as comunidades, equivalem a Y muchachos/as partidáriosa menos do que aquilo que seria suposto, o que, por seu turno, se traduz em Z percentagem de perda de influência política, quer no contexto deliberativo, quer no plano executivo, câmbio, este, que, invariavelmente, também afetaria certas sinergias negociais com o setor privado.

Um espectro demasiado nocivo para ser, sequer, cogitado por quem governa e desgoverna há décadas.

Propala-se, atualmente, em jeito de veste justificativa para a morte da decência governativa, uma teoria interessante, mas de cujo fundamento discordo: vivemos uma crise de regime. Ora bem, julgo que, diferentemente deste racional, vivemos uma crise de exemplo. Com este ou com qualquer outro regime. Uma crise que se traduz em observar quem nos ascende e não conseguirmos, mais vezes do que menos, perspetivar credibilidade, seriedade, retidão e transparência, vetores estruturais da coexistência democrática em qualquer sociedade ocidental. Naturalmente, este marasmo identitário repercute-se com muito maior impacto no poder citadino, junto das autarquias que servem localmente os interesses de todos nós.

45 anos passaram e a nossa democracia continua refém de vícios e órfã de maturidade.

Pertinente será, aqui e agora, terminar na esteira de Diderot: “Ah senhora, como a moral dos cegos é diferente da nossa! (…)”.[2]



[1] Os crimes de que os arguidos estão indiciados nesta fase do processo são os de corrupção passiva e ativa (Art. 373.º e 374.º do Código Penal), participação económica em negócio (Art. 377.º do C.P.) e tráfico de influência (Art. 335.º do C.P.).

[2] Denis Diderot in Carta sobre os Cegos, pág. 36 (1749).

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