Pandemia: a contaminação do medo

Pandemia: a contaminação do medo

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O melhor será não lembrar esses tempos estranhos. Parecia um filme de ficção. Fim dos tempos, sem anúncio prévio. Ruas desertas, sem vivalma, apenas árvores e o som dos pássaros. Louvável cântico e lindo restolhar das folhas, num céu límpido e translúcido. O sossego da cidade estava inicialmente tão apetecível, parecia que tínhamos saudades do silêncio ou da quietude. Por vezes, as cidades cansam. Pessoas, correrias, automóveis, barulhos de fundo intermináveis, movimento contínuo, tudo isto acumula e cansa, visualmente e fisicamente. E, de repente, nada desses tortuosos sons e incansáveis movimentos. Parecia o paraíso ao virar da esquina. Até o rio corria lindo e majestoso no seu fio de água. Chegámos a acreditar que a natureza rejubilava, espreguiçava e estendia os seus longos braços pelos espaços sujos da cidade. Mesmo as manchas escuras da industriosa ação humana pareciam estar a desaparecer. Um mundo despido da ambição humana e entregue à natureza. Mas, depois, ao silêncio seguiu-se o silêncio. O aborrecimento instalou-se. Começámos a ter saudades uns dos outros. Os jantares virtuais com amigos e família, telefonemas a pessoas que não se viam há algum tempo, o teletrabalho e o respetivo contacto com colegas para partilhar, falar ou desabafar, começaram a ocorrer com muita frequência, diariamente ou de hora a hora. O confinamento estava a ficar insuportável, estava a fazer mossa na nossa saúde mental. O que fizeste para manter a saúde mental?

Para relaxar, regressar à família

Tantos testemunhos, tão diversos, previsíveis e, por vezes, desesperantes. O que fiz? Muita atividade física: caminhar, correr, andar de bicicleta, ginástica em casa, na varanda, onde calhasse. Só me apetecia mexer. Não suporto a imobilidade. As saudades que eu tenho do movimento, do andar para trás e para diante, falar, ouvir, movimentar-me. Com o teletrabalho, era tudo muito parado. Daí a atividade física, como um tique nervoso.

Outra fala, outro desabafo: ocupei-me com a decoração de casa e mudança de móveis; fiz jardinagem, decoração do espaço exterior, práticas de mindfulness e meditação; tentei manter uma rotina, mas confesso que comecei a sentir uma  imensa vontade de ver pessoas, de falar, de tocar e sentir os outros; nenhuma rotina individual é suficiente, sentia que faltava tudo o resto. Sim, é verdade. Nada resultou. A Berta também disse que tentou de tudo. Para relaxar, não fazia nada, disse-me ela… com dois filhos em idade escolar e um deles a precisar de ajuda, quando não estávamos em aula, era impossível. Não sabia para que lado me virar. As aulas eram tão cansativas e, depois, aquela permanente chamada de atenção do meu filho. Entre o teletrabalho e os cuidados maternais, não me restou grande disponibilidade. Confesso que, durante algum tempo, tive muita dificuldade. Tinha uma tendência para responder a tudo e a todos, a toda a hora. A família queixou-se.

Mas houve quem testemunhasse como se nada se tivesse passado, como se a anormalidade imposta fosse possível ou compatível: dediquei mais tempo à família, vendo séries, fazendo exercício físico, arrumações e leitura; também comi mais e bebi em qualidade, para compensar; quando o aborrecimento ocorreu, dediquei-me à horta, à jardinagem e aos animais, todos tiveram o meu cuidado extremo. Repito, realizei exercício físico, tive oportunidade para fazer mais bolos, cuidar das plantas, fazer algumas pesquisas, mas não foi um período fácil! O meu grande apoio foram os meus filhos de 14 e 18 anos. Sem eles, tudo seria muito mais complicado.

Agenda internacional do medo

Sim, é verdade, este vírus obrigou-nos a parar, a ter um medo irracional e insensato, a evitar o contacto com tudo, a estar de frente à nossa condição, a desesperar com este delírio higienista, a punir todo o comportamento que não se adeque a esta urgência sanitária, a desejar mandar para aquela parte os tiranos da obediência sanitária. Nada disto é meu, nem original, mas gostei destas pequenas ideias de Bernard-Henri Levy. As grandes mentes veem estruturas, veem mais à frente, apercebem-se mais rapidamente do que todos nós. Parece teoria da conspiração. Dizer que vivemos numa época particularmente moralista, que as pessoas transportam uma energia punitiva, que esta energia foi transportada para este vírus e que, por via disso, se instalou um medo irracional e insensato nas pessoas, é coisa que nos põe a pensar. E acrescentar que, por detrás desta tirania da obediência há alguém que tem o propósito de estrangular a liberdade dos cidadãos, é coisa do diabo. De facto, há coincidências um bocado estranhas. Com este vírus, os direitos humanos em Hong Kong deixaram de ser falados, os refugiados desapareceram dos radares dos media, as reduções dos rendimentos das classes médias mundiais deixaram de ser faladas e as democracias vivem cada vez mais em confinamento, vigiadas e amordaçadas com regras e limitações de circulação e de expressão. Para aumentar o clima de medo, o racismo saiu à rua e começaram a pichar estátuas de homens que simplesmente viveram em tempos em que a escravatura não era sequer questionada e que algumas coisas fizeram para a abolir. Se quiséssemos continuar com as teorias da conspiração, diríamos que este vírus é somente um ponto numa agenda internacional do medo.

Um vírus quase irrelevante

Portanto, começo a ficar farto deste vírus do medo, dos testemunhos abonatórios do confinamento, das maravilhas do ensino à distância, do abuso do teletrabalho, da ilusão da comunicação virtual, da utilização abusiva das redes sociais, dos google meets, slidos, padlet e outras maravilhas digitais. Deixem-nos viver, deixem de dizer o que devemos fazer, deixem de alimentar o medo. Por conta deste, muita gente tem morrido. O vírus mata menos que muitas doenças. Se olharmos para trás, este vírus é quase irrelevante, nada comparado com a peste negra ou a pneumónica espanhola. Por que razão este delírio higienista?

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Categorias: Crónica, Pandemia, Sociedade

Acerca do Autor

Domingos Manso

Domingos Manso de Araújo, nasceu há 54 anos, em Braga. É professor do quadro da Escola Secundária D. Sancho I, V. N. Famalicão desde 1989. Licenciou-se na Faculdade de Filosofia de Braga e fez mestrado em Filosofia da Educação na Universidade do Minho. Escreve na Revista Sancho Notícias e é colaborador permanente no jornal Ecos da Gravia, Valadares, São Pedro do Sul.

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