COVID-19: o que escolher quando tudo desaba na vida?

COVID-19: o que escolher quando tudo desaba na vida?

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Quando a dor, o sofrimento e a morte alastram, pouco mais há a fazer do que esperar. Esperar que o mal acabe, que a natureza reponha o seu equilíbrio, que a humanidade reencontre o seu lugar, que os vírus e as bactérias voltem a ser inaudíveis. Mas há quem não opte por esperar, há quem não possa esperar e haverá quem não possa esperar mais.

Esperar ou não esperar significa que quem teve estas opções escolheu porque tinha condições para escolher. E isto independentemente de se saber de forma objetiva a melhor estratégia a seguir. Por razões culturais, houve quem optasse pela contaminação comunitária, atendendo e acudindo de imediato aos mais desprotegidos; e houve quem escolhesse parar tudo, para evitar esse contágio mortífero. Nenhuma destas estratégias se aplicou sem dor e sofrimento. Ninguém ficou indiferente à difícil aplicação da justiça ou à limitação das liberdades individuais. Mas, nestes tempos do mal maior, todas estas comunidades tiveram ou tinham, até à data, coisas que se dão por garantidas sem se pensar muito: Estado presente, instituições fortes, boas condições de saúde, robustez do seu tecido produtivo, mercado a funcionar nos mínimos e sociedade civil solidária ou cumpridora. Claro que muitas pessoas deste mundo dito desenvolvido não tinha ou não têm nada disto garantido: nem dinheiro, nem pé-de-meia, nem subsídio, nem rede familiar.

Responsabilidade pela escolha: pessoal e intransmissível

Mas as muitas pessoas no mundo desenvolvido correspondem a milhões no mundo subdesenvolvido. Na Índia densamente povoada, não bastam as ordens dos políticos para parar os miseráveis que lutam pela sobrevivência. É necessária a polícia para os travar, impedir, vergastando e humilhando. A fome não dá direito à escolha. Parar é morrer e não parar é evitar morrer, correndo o risco de morrer.  É por isso que correm desesperadamente à procura de trabalho, de ganhos, de comida, mesmo sabendo que podem sucumbir nessa fuga. Mas preferem esse risco ao desespero da inação. No Brasil, nas favelas também densamente povoadas, a miséria vai sendo controlada pelas máfias locais. A luta pela sobrevivência há de ser tão ou mais forte do que na Índia. Daí que não se deva estranhar que o presidente, tão iletrado como o povo que o elegeu, desvalorize a crise sanitária e defenda que se enfrente o bicho de frente, à homem, pelas palavras do próprio. A ilusão do livre-arbítrio é a mesma. Só lhe faltou dizer que estavam condenados a não parar, custasse o que custasse. Contudo, mesmo que a miséria seja um enorme constrangimento, as pessoas são responsáveis pelo que fazem ou deixam de fazer.

Escolha também pode ser processo coletivo

Num caso e no outro, as escolhas estão sempre presentes. E, nestes tempos de paragem forçada ou de permanente luta pela sobrevivência, os riscos são maiores e mais dolorosos. Eventualmente, mais custosos para quem não estava habituado e constrangido a optar pelo mal menor para evitar o mal maior. A imagem de dezenas de camiões do exército italiano, em marcha lenta pelas ruas de Bérgamo, a transportar urnas de dezenas de mortos foi um soco forte no orgulho desse povo orgulhoso. Mas nenhuma destas imagens se deve comparar à difícil escolha dos médicos italianos e espanhóis que tiveram de escolher entre quem iam tentar salvar e quem iam deixar morrer. Mais do que o princípio intuitivo de vida (salva-se quem menos viveu e quem mais hipóteses tem de salvar-se), orientou-os o critério clínico da experiência: a idade pode ser determinante, mas as condições de sobrevivência podem pesar mais. Nenhum exercício dilemático lhes assiste (salva-se o jovem rico de boas famílias em estado muito grave ou o velho da rua em estado grave?). Face às situações, o único critério é clínico, não o social, o económico ou outro. Se é mais provável salvar-se o idoso, salva-se o idoso e deixa-se morrer o mais jovem, ou vice-versa. Claro que, nestas circunstâncias excecionais, privilegia-se a vida jovem em detrimento da vida longa, exatamente por que esta já realizou as suas possibilidades e o jovem ainda tem uma imensidão delas à sua frente. Julgo que devem ter muito pouco tempo para tomar decisões éticas tão difíceis. Essa decisão, tomada em grupo, é mais difícil quando se tem de mandar (com vãs esperanças) os mais idosos para casa para dar lugar aos mais novos infetados, e se sabe que, muito provavelmente, esses idosos não irão resistir. À medida que as situações difíceis se avolumam, os profissionais decidem e executam não pensam. A emergência, à semelhança da fome, não deixa muito espaço à reflexão filosófica, pelo menos no imediato.

Escolher a simplicidade da vida

Por isso é que, lá para a frente, haverá quem não possa mais esperar. O mundo não pode ficar eternamente à espera. Não se vive, se não se produz. A bolsa pesará mais do que a vida. Ou seja, e seguindo um raciocínio utilitarista, tem que se mandar as pessoas trabalhar e deslocar-se para aliviar as bolsas e garantir a sobrevivência da maioria, sabendo que isso vai acarretar a perda de muitas vidas. É esta ética da utilidade que ditará as regras e que nos colocará, temporariamente, ao nível das éticas da pobreza e da sobrevivência. Ninguém proibirá o rico e o pobre de trabalhar, mesmo sabendo que poderão ser contaminados. Claro que o rico usará máscaras e outras proteções e o pobre vai como pode. Mas nunca ninguém disse que o mundo é justo. Tão pouco é seguro garantir a justiça, seguindo o raciocínio e a prática utilitarista. Parece, portanto, ser mais viável este raciocínio utilitarista do que o raciocínio kantiano, que nos obriga a valorizar a vida das pessoas do mesmo modo, independentemente das circunstâncias. E o mundo voltará ao que era. É mais útil isto do que aquilo. É muito provável que as coisas não se alterem e que a lógica de funcionamento siga a perspetiva utilitarista e até egoísta. Mas seria expectável esperar e imaginar que os jovens deixem de viver tão despreocupados e tão ligeiramente como têm vivido; que a América garanta um SNS aos mais pobres; que a Europa do norte respeite a do sul e se deixe de preconceitos; que a bolsa seja regulada e a banca deixe de viver à custa das comissões; e que todos, indivíduos e organizações, assumam uma atitude responsável e vigilante das suas vidas. A insustentável leveza de ser consumidor e obediente não permitirá que as coisas mudem. Depois disto, só nos resta escolher a simplicidade da vida, única forma sustentável de não sermos definitivamente vencidos pelos vírus e bactérias.

Imagem: Bekky Bekks

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Categorias: Crónica, Sociedade

Acerca do Autor

Domingos Manso

Domingos Manso de Araújo, nasceu há 54 anos, em Braga. É professor do quadro da Escola Secundária D. Sancho I, V. N. Famalicão desde 1989. Licenciou-se na Faculdade de Filosofia de Braga e fez mestrado em Filosofia da Educação na Universidade do Minho. Escreve na Revista Sancho Notícias e é colaborador permanente no jornal Ecos da Gravia, Valadares, São Pedro do Sul.

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