Os mortos expulsam-nos de qualquer regresso

 

 

O noticiário abre com a fotografia de dois cadáveres, Oscar e Valeria Ramírez, pai e filha, afogados no Rio Grande, fronteira entre o México e os EUA, onde procurariam asilo. E é o próprio pivô jornalístico que nos antecipa a sensação de déjà-vu: três anos antes, o corpo de Alan Kurdi, três anos, oriundo da Síria, fotografado jacente numa praia turística, sinalizava o momento em que o uso de expressões como “tragédia diária” não poderia passar sem que se trincasse a língua, marca de sangue que deixaria exposta a sua inerente contradição.

Mas – e então? Exibe-se a fotografia para vergonha pessoal e, depois, alheia e coletiva, em forma de um colossal arrependimento pelo estado do mundo? Para que o espectador se sinta “já culpado por olhar para a imagem que deve provocar o sentimento da sua culpabilidade” (Jacques Rancière, O Espectador Emancipado, p. 128)? Para suscitar algum tipo de aprendizagem ou clarividência com os rumos trágicos da História, impedindo-a de se repetir (como quando se diz, por exemplo, a respeito das vítimas nos campos de extermínio nazi), que é preciso “aprender” com o horror para que ele não volte a acontecer?

A conversa vai sempre dar ao mesmo, é repetida, regurgitada, muitas vezes fazendo tábua rasa de um longo escrutínio muito estudado em torno da imagem fotográfica, do efeito de banalização da morte suscitado pela hiperexposição e hiperexcitação mediáticas (sobre isto, é ler, entre outros, Olhando o Sofrimento dos Outros, de Susan Sontag, e os ensaios de Rancière, acima citado). Sobretudo hoje, quando, abrindo uma caixa de comentários aleatória de um qualquer jornal online, nos deparamos com a insuportável guerra de trincheiras, o ruído, o nonsense, com alguma sabujice partidária à mistura, tornando evidente que a suposta democratização da palavra (de que o Facebook seria, depois da generalização da net, mais um portentoso emissário) é inseparável da tiranização do indivíduo, submisso à vontade de partilhar uma opinião, mesmo que tal signifique despejar ora sentimentalismos ora boçalidades, sem um pingo de fundamentação crítica, de um pensamento plenamente empenhado na sua elementar afirmatividade. (E, mais uma vez, um outro autor emerge à superfície deste lodaçal para nos esticar o dedo médio: Karl Kraus, que acusou furiosamente a imprensa do seu tempo de ser cúmplice direta das causas conducentes à II Guerra Mundial.)

Dito isto, todavia et pour cause, continuar.

Estes afogados no México não são a repetição desse discurso agregado à imagem daquela criança morta na praia, e por isso também não têm nada para nos ensinar, se nos mantivermos nesta lógica da aprendizagem pela morte ou pela tragédia ou. Nada a ensinar, exceto tornar evidente esta insanável fissura, como escreve Rui Nunes no início de um pequeno poema seu intitulado “Lampedusa”, nome de uma ilha no Mediterrâneo, entre a Europa e o Norte de África: “Não se regressa aos mortos: / eles expulsam-nos de qualquer regresso. / Sôfregos da sua morte, flutuam / com o abandono de detritos: / em volta respira a água. / Expectante” (publicado em maio de 2017, pela Paralelo W; de referir aqui um artigo de João Oliveira Duarte na revista Caliban sobre o “imemorial” no poema de Rui Nunes e de como essa categoria expulsa a ideia de “pedagogia” associável ao historial de flagelos e atrocidades dos séculos XX e XXI).

Aprender com a catástrofe e pela catástrofe, segundo Peter Sloterdijk, é um mito humanista que nos é particularmente caro: afinal, aprendemos que a “revelação”, que a “verdade” finalmente desocultada, virá apenas, à letra, com o “apocalipse” – o que, dentro desta lógica, implica chegar à mesma “conclusão fatal” deste filósofo alemão: “só o fim do mundo, ao acontecer realmente, seria um aviso convincente quanto ao fim do mundo. Só o desastre realmente consumado traria a prova de uma verdade que tem de vir à luz de maneira apocalíptica e presente, para se tornar inteiramente presente. Por conseguinte, a única catástrofe inteligível para todos seria a catástrofe, a que ninguém sobrevive” (Sloterdijk, 2002, p. 85).

Mais recentemente, na verdadeira empreitada que é o livro Tens de Mudar de Vida. Sobre Antropotécnica (2018, trad. Carlos Leite), Sloterdijk aprofunda o cinismo inerente à mencionada lógica de aprendizagem. Habituados no século XX a assistir ao apocalipse como um fenómeno habitual de entretenimento e êxtase escatológicos, do cinema à ficção científica, e cercados por todo o lado de um súbito elenco de “catastrofistas de serviço”, com a singularidade do fim do mundo a dar a vez a um cortejo festivaleiro de desgraças iminentes, doseando o pânico com sucessivas migalhas de pão e infinitos números de circo – mas nunca o suficiente para extrair desse informe plural de “fins do mundo” (amolecido pelo hábito) um abismo implacavelmente decisivo –, não é de admirar, então, que “as ameaças” do Fim sejam sentidas como “uma parte do divertimento”, enquanto “os avisos” desse Fim próximo mais não seriam do que “um elemento do show”. Daí, também, esta lucidez paredes-meias com o mais acomodado senso comum, esse que goza do estatuto de dispensar qualquer legitimação e refutação críticas: “pragmaticamente, cada um fica-se pela convicção de que ainda vai haver tempo para levar a coisa a sério” (Sloterdijk, 2018, p. 548).

E é esta convicção – tão profundamente óbvia, tão imanentemente visceral, que o mais “natural” é nunca a pormos em causa – que nos incita a regressar aos mortos que nos expulsam, a este pai e à sua filha afogados. Pragmaticamente, são sempre eles, irredutivelmente eles, e não nós, os que ainda vivem, cúmplices fatais da atualização sistemática dessa “metáfora da existência” que é o “naufrágio com espectador”, título de um célebre ensaio de Hans Blumenberg. Mas agora vem a ingenuidade da pergunta, tão ingénua quanto desesperada: quanto tempo dura esse “ainda” de que falava acima Sloterdijk, essa suspensão coletiva da urgência em agir até “levar a coisa a sério”?

E levar a sério a crise dos refugiados significa exatamente o quê? E a crise das alterações climáticas, que claramente deixará ainda mais vulneráveis os migrantes e refugiados, assim como toda a franja populacional que, sob a designação de “países de Terceiro Mundo”, fica logo irremediavelmente excluída do luxo da sobrevivência? Luxo esse que, como é por demais sabido, acaba monopolizado pelos maiores produtores de lixo mundial, dado que os países menos desenvolvidos são somente responsáveis por 10% das emissões de dióxido de carbono. Posto isto, segundo Philip Alston, repórter das Nações Unidas ao serviço dos direitos humanos, num recente artigo saído no The Guardian, além do óbvio retrocesso civilizacional ao nível da redução dos índices de pobreza, o flagelo ambiental irá igualmente melindrar as instituições democráticas e muitos direitos civis conquistados a ferro e fogo: “The risk of community discontent, of growing inequality, and of even greater levels of deprivation among some groups, will likely stimulate nationalist, xenophobic, racist and other responses. Maintaining a balanced approach to civil and political rights will be extremely complex”, assegura Alston.

Portanto: ao invés de uma ecologia de superfície, que procura disseminar remendos e compressas para amputações profundas (vendendo-nos a ilusão de que, agindo em conformidade – sem lançar beatas ao chão, reciclando mais e melhor, sendo vegan, etc. –, estaremos a reverter uma situação da qual seríamos todos responsáveis em idênticas proporções), importa urgentemente encarar os efeitos das alterações climáticas reconhecendo-lhes a natureza intrinsecamente política das suas causas, interferindo diretamente nelas. (António Guerreiro, na sua última reflexão no suplemento ípsilon, discorre sobre a diferença estrutural entre estes dois tipos de ecologia: a ecologia de superfície e a ecologia profunda.)

“Hoje”, escreve Rui Nunes no poema pelo qual começámos, “este mar transformou-os em ilhotas balouçantes / onde pousam as gaivotas, / enquanto círculos de aves necrófagas, / no céu desbotado, sobrevoam.” É ainda sobre os mortos que nos expulsam, estes versos. Sobre o puro ato sem discurso que é a morte, dos corpos que bóiam como “ilhotas balouçantes”, sem subjetividade que os insufle de alguma ficção redentora (um sentido, um resquício de dignidade humana ao qual nos possamos desesperamente agarrar para poder ainda dizer a palavra “esperança” e imaginar um futuro, uma ideia ou imagem de futuro), ou os arranque a essa condição miseravelmente física e objetual, enquanto meras carcaças e pasto para aves. Na estrofe seguinte, continua a expansão deste desamparo inominável: “Perderam uma chegada, um encontro, um riso, / um seixo na praia, um aceno de mão. Até um tronco seco. / Ou um rapaz distraído com o sol a dobrar-lhe o corpo. / Gente que, na incerta travessia, foi esquecendo, / nome a nome, todos os nomes.”

Rui Nunes está demasiado consciente de que a literatura e a poesia abrigam nas suas definições lastros de infâmia: a infâmia de nos entreterem contando histórias, tecendo ficções e literatices, quando o que urge, retomando Rancière, é “estabelecer relações novas entre as palavras e as formas visíveis, a palavra e a escrita, um aqui e um algures, um então e um agora” (p. 150). Literatura e poesia são signos de poder, e o poder é a narrativa histórica dos vencedores, condenando à margem, à sombra, ao silêncio e à pilha dos destroços as outras narrativas (os romances de Saramago são, a este nível, um exemplo comummente reconhecível de uma obra contra-histórica ou anti-épica no contexto da literatura portuguesa). E, num horizonte crítico partilhado por Rancière a respeito do intolerável nas imagens (debate que se reacende com a exposição de uma fotografia como a dos dois corpos afogados), poderíamos dizer que o poder, neste caso, está nas mãos dos que selecionam as imagens e nos discursos que tecem sobre elas:

“O que vemos, sobretudo nos ecrãs da informação televisiva, é o rosto dos governantes, dos especialistas e dos jornalistas que comentam as imagens, que dizem o que elas mostram e o que sobre elas devemos pensar. Se o horror se banalizou, não é porque dele vejamos demasiadas imagens. Não vemos no ecrã demasiados corpos em sofrimento. Mas vemos, isso sim, demasiados corpos sem nome, demasiados corpos incapazes de nos devolver o olhar que lhes dirigimos, corpos que são objecto de palavra sem terem eles mesmos direito à palavra. O sistema da Informação não funciona pelo excesso das imagens, funciona seleccionando os seres falantes e raciocinantes capazes de «desencriptar» o fluxo de informação que diz respeito às multidões anónimas. A política própria destas imagens consiste em ensinar-nos que não é qualquer um que é capaz de ver e falar. É esta lição que é confirmada muito servilmente por aqueles que pretendem criticar a explosão televisiva das imagens” (Rancière, O Espectador Emancipado, pp. 142-3, destacados meus).

É certo que nenhum de nós se pode gabar de ser inocente perante a reação emocional face a (mais) uma fotografia como esta. Há lágrimas, há discursos, há angústia – e há a denúncia de tudo isto, da artimanha ideológica, da falsa consciência cínica e mais não sei o quê. Os peditórios para os dois lados da barricada exibem os cestos rotos de tamanha abundância (o que não implica, por sua vez, que de cada lado haja quem tenha e não tenha razão, haja quem veja e não veja sentido nas razões e desrazões de tudo isto; pior mesmo é simplificar obtusamente o que é complexo, o que incide sobre a vida e a morte de seres humanos reais, o que joga tensionalmente com palavras e imagens, o sentir e o pensar, mais a nossa incredulidade, a nossa condição frágil, a nossa cumulativa ignorância e o lastro de angústia que se lhe segue. O século XXI, como afirma Sloterdijk, obriga-nos a existências excessivas num regime de dialéticas permanentes: “Enganamo-nos sobre a natureza do que é problemático quando só admitimos como tal aquilo que seja previsível ser resolvido durante a legislatura em curso. E passamos tanto mais ao lado da essência das tensões verticais na existência humana quanto nos baseamos na ideia de que existe uma simetria entre challenge e response. Quem se interroga sobre a situação do homem, encontra exigências excessivas dum lado e excedentes do outro – e nada garante que umas casem com os outros como o problema e a sua solução”, Sloterdijk, 2018, p. 548.)

A questão de fundo, como salienta Rancière, permanece intacta, mesmo quando se pensa ter mudado radicalmente as regras de jogo nestas matérias: a ideia de uma resposta política (um agir) que se seguiria à exibição de uma fotografia como a dos dois familiares afogados. Critica-se a mediatização destas fotografias por “excesso de fé” nesse poder político associado à imagem fotográfica: uma crença excessiva na empatia e na compreensão humanas que conduziriam, logo depois, a uma tomada de posição e a uma interferência nas condições responsáveis pelas evidências que a fotografia nos põe diante os olhos. Não é assim que o jogo funciona, nunca foi, por mais resistente que seja o substrato das Luzes nas nossas faculdades estimativas e na ideia luminosa de progresso. E, no entanto, o progresso deu-nos Auschwitz e o World Trade Center, o Pato Donald e Donald Trump.

E, no entanto, ainda, mesmo aceitando de antemão o posicionamento de Rancière, como reprimir esse desejo profundo de que esta fotografia devenha, de uma vez por todas, uma arma de ataque contra o sistema que a engendrou, ceifando a vida a estas duas pessoas? Como revirar os olhos, sopesados de teoria e estética, face à instintiva consternação de quem apela, mais uma vez, à humanidade da humanidade? Ainda para mais se for esse exato pendor emocional o que separa sem equívoco o espírito de uns do pragmatismo de um Trump ou de um Bolsonaro. Não adianta negar: a imagem choca, a fotografia é intolerável, isto não pode continuar assim. E também não adianta negar: o mundo não acabou naquele pai e naquela criança. Há uma “paisagem do possível”, ainda, para voltarmos à linguagem de Rancière. Mas o mundo acabou para eles – e continuará a acabar sempre e de cada vez que lhes usurparmos as condições que, numa versão ideal da vida em democracia, lhes dariam um rosto, um nome e uma voz. As condições possíveis para que a cada homem e mulher, seja qual for a sua origem, não lhes seja espezinhada a dignidade de existirem e a existência em dignidade.

Dito isto, continuar.

Referências

Rui Nunes, Lampedusa, Paralelo W, 2017.

Peter Sloterdijk, A Mobilização Infinita. Para uma crítica da cinética política, trad. Paulo Osório de Castro, Lisboa, Relógio D’Água, 2002.

Peter Sloterdijk, Tens de Mudar de Vida. Sobre Antropotécnica, trad. Carlos Leite, Lisboa, Relógio D’Água, 2018.

Hans Blumenberg, Naufrágio com Espectador. Paradigma de uma metáfora da existência, trad. Manuel Loureiro, pref. José A. Bragança de Miranda, Lisboa, Veja (s.d.).

Jacques Rancière, “A imagem intolerável”, in O Espectador Emancipado, trad. José Miranda Justo, Lisboa, Orfeu Negro, 2010, pp. 123-153.

António Guerreiro, “Ecologia profunda e de superfície”, Público, 21 de junho de 2019, disponível aqui: https://www.publico.pt/2019/06/21/culturaipsilon/cronica/ecologia-profunda-superficie-1876845.

Damian Carrington, “‘Climate apartheid’: UN expert says human rights may not survive”, The Guardian, 25 de junho de 2019, disponível aqui: https://www.theguardian.com/environment/2019/jun/25/climate-apartheid-united-nations-expert-says-human-rights-may-not-survive-crisis?fbclid=IwAR3mhlNv9D7NpF3MVJJTkRF-_wJdY0ETaK9SvpnV3rAHx8vSnC-mV4ZS0YM.

Lara Takenaga, “Why The Times Published a Photo of Drowned Migrants”, New York Times, 26 de junho de 2019, disponível aqui: https://www.nytimes.com/2019/06/26/reader-center/rio-grande-migrants-photo.html?fbclid=IwAR3yKL-y4aak1yL8QlC9CIZxF-nSxr4dg_R8lvr8cOJnw2XdARprpU4sp1g.

João Oliveira Duarte, “Lampedusa: a (im)possibilidade da memória em Rui Nunes”, Caliban, 29 de junho de 2017, disponível aqui: https://revistacaliban.net/lampedusa-a-im-possibilidade-da-mem%C3%B3ria-em-rui-nunes-b8abd79d4968.

Fotogramas: First Reformed (Paul Schrader, 2017) e Se7en (David Fincher, 1995)

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