E se, afinal, se puder morrer de amor?

E se, afinal, se puder morrer de amor?

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A literatura figura, de forma brilhante, o desgosto da perda de um grande amor com o fatalismo de “morrer de amor”. Quer em poemas, novelas ou em músicas, a expressão é usada para tornar mais rica a imagem do casal apaixonado que se vê prostrado numa cama, a definhar, perante a separação.

Mas, e se a ciência concordar com a expressão? E se, de facto, for possível que o desgosto amoroso leve a um quadro tal de fragilidade que possa culminar na morte?

A comunidade científica já havia encontrado sinais de que uma baixa imunitária em situações de profunda tristeza podia levar a quadros secundários de doença mas há a acrescentar uma entidade cardiovascular mais objetiva e descritiva do que falamos – a Síndrome do Coração Partido ou Síndrome de Takotsubo.

Descrita inicialmente em 1991, no Japão, esta miocardiopatia foi reconhecida sobretudo em mulheres de meia-idade que haviam sofrido stresses emocionais intensos como divórcios, confrontos pessoais ou a morte do companheiro.

Mas, afinal, como pode um desgosto afetar o coração?

As miocardiopatias são, tal como o nome indica, doenças (do grego páthos) do miocárdio, o músculo cardíaco responsável pela normal contractilidade e distensibilidade do coração. Estas miocardiopatias podem agrupar-se em três grandes grupos: as hipertróficas, em que o músculo sofre um espessamento anormal com prejuízo do tamanho das cavidades cardíacas; as miocardiopatias dilatadas, em que a diminuição da espessura do miocárdio leva a um aumento generalizado das cavidades e do próprio coração em si; as restritivas, em que, podendo manter-se de um modo geral as dimensões das cavidades cardíacas e do músculo, há alterações na distensibilidade cardíaca. Estas últimas são frequentemente encontradas em sobreposição a um dos outros quadros de miocardiopatias.

Aquilo que acontece em situações-limite de stresse, quer físico, quer emocional, como nos desgostos amorosos, é que, entre outros eventos, há uma desregulação na libertação de substâncias endógenas como as catecolaminas e uma disfunção na contractilidade cardíaca. A porção apical do coração sofre alterações estruturais que levam a um balonamento do ápice do coração e este passa a assemelhar-se a um takotsubo – armadilha japonesa para capturar polvos com um reservatório largo e pescoço estreito. Daí surge o nome dado a esta síndrome.

Esta é uma miocardiopatia dilatada em que os doentes ficam, subitamente, com sensação de falta de ar (dispneia) e dor torácica, em tudo semelhante a um quadro de enfarte agudo do miocárdio (EAM). No eletrocardiograma também surgem alterações compatíveis com EAM mas nesta Síndrome não há nenhuma oclusão aguda de um vaso coronário. São entidades diferentes com tratamentos diferentes.

É possível tratar um coração partido? Poderemos mesmo morrer de amor?

A Síndrome do Coração Partido tem apenas tratamento sintomático já que, na maioria dos casos, o prognóstico é muito bom, com a miocardiopatia a reverter por completo em alguns dias ou semanas. Em cerca de 10% dos casos há recorrência da doença em novos eventos de stresse. Muito raramente, esta dilatação apical pode resultar em rutura cardíaca com possível morte associada.

Um evento súbito e doloroso pode ter repercussões tais no nosso corpo que o próprio coração sofre um rearranjo da sua estrutura e há uma doença orgânica tangível que representa o nosso sofrimento.

Assim, morrer de amor pode ir para lá do campo figurado; a perda de alguém ou algo que amamos grandemente pode, cientificamente, “despedaçar-nos” o coração.


Imagem de destaque: Paula Costa (ilustração)


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Categorias: Ciência, Comportamento, Saúde

Acerca do Autor

Inês Grenha

Inês Grenha formou-se em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto em 2016. No corrente ano de 2018 é Interna de Formação Específica de Medicina Interna na Unidade Local de Saúde do Alto Minho.

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