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O nascer da escrita e as volutas sem destino de um cigarro longínquo

 

 

Quando lhe acenava com uma palavra inesperada, o seu efeito estrangulava o tempo e deixava-se perder nas volutas sem destino de um cigarro longínquo.

(quando se deixa de fumar, a palavra cigarro passa a fazer parte do catálogo da bizarria)

Ela existe no seu corpo esguio de palavra, sedutora em dias de chuva, ao sabor de Maio, em Paris ou Budapeste. Existe no desejo roubado à inquisição do medo. O espelho contempla o formato ajuizado da sobrevivência, aparentemente liberto do nefasto prazer

(esse prazer singular e insubstituível),

ainda que lhe lateje a garganta que, cedendo à morte tranquilizaria as pequenas veredas desenhadas pelo suor, sufoca sem o sufoco hedonista do fumo, do contágio, desse capítulo da libertação que o cinema demonstra como um plano de corte ou um fragmento do silêncio que se deseja e espera para que a obra de arte sobreviva.

Fumar um cigarro: um ato entre o prazer e o sofrimento

A nicotina tem esse grandioso valor de intervalo. Entre o inferno exaltante da tecla e o paraíso nublado de um escritório sombrio apesar da madrugada solar que precipita alegremente a torrencial escrita. Fumo e não quero. Quero e não fumo. Há uma paradoxal resistência. Dupla. De rota biunívoca. Por um lado, o fumo, o silêncio e a descoberta da ideia seguinte. Por outro, o pesadelo de um desejo obliterado pelo bom senso e a difícil meditação para que o corpo do texto se concretize no seu objecto escultórico final. Entre o prazer e a facilidade e o sofrimento e a dificuldade. Se deixar de fumar é sofrimento e dificuldade, o pathos cristão; fumar é poliedricamente diabólico e sedutor.

Uma nova civilização de ideias e um breve intervalo na vida de um artista

Um cérebro sem fumo tem de criar uma nova civilização de ideias, um novo processo para resgatá-las às suas dobras cinzentas. Sim, tudo isto enquanto a garganta não desiste do vapor infernal da nicotina. Empilham-se desejos e lutas, o verso e o reverso, antagonistas do corpo cénico da literatura; colunas tão altas de confrontos que ao mínimo repelão se desmoronam nas lamas da indecisão. A inquieta hesitação abrindo espaço à melancólica redução do espírito a trapo humano. À revelia da tosse vulcânica da literatura. E o ácido como contraponto da exaltação. Sem iridescências argumentativas. O poema é o que importa mesmo no último sopro da exaustão.

Fumo e não fumo e nesse intervalo da batalha a ideia perfura o silêncio ruidoso da contenda e inscreve-se imperialmente na página que inicia uma nova dinastia literária. A fase oculta do artista.


Imagem: José Poiares

Obs: texto previamente publicado na página facebook de Luís Filipe Sarmento correspondente à pré-publicação de um excerto do livro Ácido, tendo sofrido ligeiras adequações na presente edição.


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‘Berlim Me Mata’

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