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A terra dos Rus’, 1ª pt.

 

 

Durante séculos, os Rus’, povos assentes na Ucrânia (com a excepção da Crimeia, com uma História Antiga parcialmente integrada no mundo greco-romano), Rússia e Bielorrússia, bem como FinlândiaPaíses Bálticos, não fizeram parte de nenhuma ‘nação’, reino ou república que fosse remotamente equiparável aos estados actualmente presentes na região. É preciso,  por isso, recuarmos ao período medieval para encontrar o nascimento das primeiras organizações políticas conhecidas de povos sedentários nos territórios onde hoje se encontram.

Os Rus’: uma mistura de povos

A origem do termo “terra dos Rus” – kievan Rus -, que desde a Idade Média denomina aquelas populações e territórios, continua a ser alvo de intenso debate. Mas é sabido que, desde o século XII, já nas línguas medievais europeias esse nome surge associado à geografia em causa, tanto no idioma eslavo antigo – Rousskaya zemlya -, como em grego – Ros / Rosia -, em arábico – ar-Rus -, em francês – Russie / Rossie -, ou em latim – Rusia / Russia ou Rutenia.

Precisamos, então, determinar e esclarecer o significado exacto da palavra Rus’. A teoria prevalecente coloca a expressão como uma declinação da palavra escandinava rods  – ‘homens que remam’ -, naturalmente relacionada com a navegação, a principal actividade dos povos nórdicos da época, enquadrada no termo Viquingue – Viking – que designava ‘marinheiro’ ou ‘pirata’. Curiosamente, também se considera a mesma origem para a palavra moderna que designa a Suécia nas línguas Finlandesa e Estónia: ruotsi e rootsi, o que não é surpresa, visto que a zona costeira sueca de Roslagen ou Roden – actualmente Uppland -, é apontada como ponto primário de origem da palavra. Esta ligação entre os escandinavos da actual Suécia e as tribos eslavas que já se encontravam entre os rios Dvina, Dniepre e para leste até ao rio Volga é fundamental para se perceber de facto quem verdadeiramente foram os Rus’.

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Desde o século IX que a “terra dos Rus” surge associada a uma vasta região que se estendia desde o Báltico até aos limites das florestas com as estepes, o que veio a ser ampliado ao longo dos séculos X-XI até à foz do rio Dniepre, nas águas do Mar Negro e logo ao lado da Península da Crimeia. Mas quem eram ao certo estes Rus’ que ocupavam este tão extenso território? A questão não é politicamente inocente, uma vez que a controvérsia normanista foi sempre usada como arma de arremesso político, desde logo quando, no século XVIII, surgiram as primeiras teses que postulavam a origem escandinava dos russos.  Mais tarde essas teses seriam também usadas por autores alemães como evidência para o argumento pseudo-científico de uma alegada superioridade cultural e racial germânica sobre os eslavos.

Com os ânimos assim acirrados sobre a sua génese, não espanta que boa parte da historiografia russa tenha resistido à ideia de origens nórdicas, oferecendo os académicos anti-normanistas certas conclusões que supunham antes os Rus’ como tendo uma matriz quase exclusivamente eslava e com contribuição estrangeira mínima ou até mesmo inexistente. Assim foi durante as épocas czarista e soviética – com as teses anti-normanistas canonizadas durante o período estalinista – e continuando na era pós-soviética entre os nacionalistas russos. Esta perspectiva prolonga-se pela actualidade, aparecendo em obras recentes de alguns autores ocidentais em contacto com a realidade cultural em causa, como é o caso de José Milhazes (embora de uma forma não tão taxativa).

Seja como for, na historiografia medievalista mais recente praticamente ninguém contesta o papel dos Escandinavos ou Varangianos* no surgimento dos Rus’, como eram conhecidos entre os romanos no oriente.

Efectivamente, foram estes povos Rus’ oriundos sobretudo de Aland, na actual Finlândia, e da actual Suécia Central que migraram para o Leste da Europa, se instalaram, criaram povoados e acabariam por entrar em contacto íntimo com os povos locais, incluindo várias tribos eslavas (os Kriviches, Drevlianos, Viatiches, entre outros), outras de origem iraniana, mas fortemente eslavizados (como os Polanos e Volínios), ou de origem fino-báltica (como os Chudes). O resultado acabaria por resultar semelhante aos de outros migrantes Escandinavos, como os habitantes da Danelaw, os Hiberno-Nórdicos e os Normandos na actual Normandia, em Itália ou mesmo na Península Ibérica: tomaram o poder e gerou-se um processo de etnogénese, assim dando origem a um novo grupo étnico com o nome e tradições escandinavas, mas de cultura e língua predominantemente eslavas. Isto é verificável tanto pela arqueologia como pela documentação, quanto pela tradição de cariz lendário, como é o caso da Crónica de Nestor ou da Crónica Primeira, quer por documentos mais coevos, como o relato da viagem ao Volga de Ahmed Ibn Fadlan, a embaixada de Liutprando de Cremona ou as crónicas do historiador romano Leão, o Diácono.

A dinastia Ruríquida – de Normandos a Eslavos

Os varangianos (escandinavos) aparecem na Crónica de Nestor como tributadores das tribos eslavas e fino-bálticas na região de Novgorod a partir do ano 859, aproveitando os conflitos entre estas para se imporem. No entanto, outras evidências documentais e arqueológicas apontam para uma presença nórdica anterior em alguns povoados como Staraia Ladoga desde meados do século VIII (Shepard, 1996: p. 12-27) (Duczko, 2004: pp, 2-3), complementadas por crónicas carolíngias como os anais de Saint Bertin, referindo que os Rus’ não só já tinham líderes, mas também algum nível de organização política na primeira metade do século IX, influenciados pelos Cazares** das estepes euro-asiáticas. Mais referências surgem numa crónica romana oriental, a “vita” de S. Jorge de Amastris, escrita até c. 842, reconhecendo um primeiro ataque dos Rus’ ao Império Romano precisamente na região do Ponto (no nordeste da actual Turquia).

De acordo com as narrativas cronísticas russas medievais, essas mesmas tribos acabaram por convidar os Rus’ – os tais “homens que remavam”, ou seja, escandinavos – a instalarem-se nas suas terras para os “liderar e reinar sobre eles”. Escolheram então três irmãos: Rurik, Sineus e Truvor, e “(…) as suas respectivas famílias que trouxeram com eles todos os Rus, e migraram.” (Crónica Primeira, 1953: p. 7). Rurik escolheu instalar-se em Holmgard/Novgorod – mais provavelmente situada originalmente no actual sítio arqueológico de Rurikovo Gorodishche -, sendo que a partir daí passou essa região a ser conhecida como “terra dos Rus”. Se realmente os escandinavos se instalaram pacificamente aceitando o convite dos eslavos locais, ou se foi antes o resultado de um processo mais violento e traumatizante de invasão e/ou conquista, é uma questão dúbia, visto que não há grandes provas arqueológicas para comprovar uma ou outra hipótese.

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No entanto, podemos arriscar que, como em quase todos os episódios semelhantes na História, deverá ter ocorrido uma mistura de ambas. Uma questão importantíssima que importa explicar é o porquê dos nórdicos se terem instalado naquela região, com ou sem convite, sendo que a resposta que mais sentido parece fazer é que a região de Staraia Ladoga fazia parte de rotas de comércio que envolviam o Império Carolíngio, Constantinopla, os búlgaros do Volga, o Cáucaso e até o Califado Abássida em Bagdade, com os nórdicos a actuar como eixo de distribuição desse comércio (Franklin & Shepard, 1996: pp. 3-70).

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Após a morte dos outros irmãos em 861 ou 862, Rurik assumiu a autoridade nas regiões antes controladas pelos falecidos, unificando a “terra dos Rus” e abrindo caminho para a dinastia Ruríquida ou Rurique, que governaria o reino dos Rus’ até à sua desintegração no século XIII, continuando porém nalguns principados/reinos que lhe sucederam, como Pskov, Suzdal, Ryazan, Smolensk, Galícia-Volínia, Chernigiv ou… Moscovo.

A conquista de Kiev, a mãe das cidades dos Rus’

Algum tempo depois, dois Rus’ que tinham acompanhado Rurik, de seus nomes Askold e Dir, pediram-lhe permissão para organizar uma expedição a Tsargrad (Constantinopla, ou “cidade do imperador”).

Nessa viagem, enquanto navegavam para sul ao longo do rio Dniepre, deparam-se com “uma pequena cidade no topo de uma colina” (1953: p. 8 ). Conquistam-na, então, bem como à região em redor, derrotando os Cazares que lhe eram tributários. Essa cidade, à qual chegariam depois mais escandinavos para se juntar aos habitantes eslavos locais, dá pelo nome de Kiev.

Rurik governaria a terra dos Rus’ até à sua morte em 879, deixando o seu filho Igor (Ingvar) como príncipe herdeiro e um dos seus nobres, Oleg (Helgar), como regente até à maioridade do primeiro. Oleg expandiria a terra dos Rus’, juntando normandos, eslavos e fino-bálticos em campanhas militares, navegando pelos rios da região e conquistando as cidades de Smolensk, Lyubech e também Kiev, matando Askold e Dir, proclamando-se como “príncipe e rei de Kiev” em 882 e declarando a cidade como “a mãe de todas as cidades dos Rus” (1953: pp. 8-9). Este acontecimento, que os historiadores “normanistas” colocam como episódio fundacional do reino dos Rus’, tem a oposição dos “anti-normanistas”, que consideram que a tribo eslava dos Polianos já estava a começar um processo de formação de um estado próprio. Mas, na verdade, estes eslavos seriam tributários dos cazares e a própria cidade de Kiev terá sido provavelmente fundada como uma fortaleza Cazar.

A expansão dos Rus’ a partir de Kiev

Entretanto, Oleg continuaria a expansão dos Rus’ submetendo cada vez mais tribos eslavas vizinhas: os Drevlianos em 883, e os Severianos, Viatiches e Radimiches em 885, proibindo-os de continuarem a pagar tributo aos Cazares.

Esta nova união, ou confederação, de eslavos sob liderança normanda começou então a prosperar devido ao controlo das rotas comerciais entre a Europa do norte e o Império Romano, estabelecendo tráfego fluvial desde Novgorod, passando por Kiev e terminado em Constantinopla, ou descendo o Volga até ao Cáucaso e daí até Bagdade. A abundante exportação de matérias-primas como peles de castor, cera de abelhas e mel, a que se juntava a compra e venda de escravos, enriqueceu os Rus’ e fez de Kiev uma cidade central no comércio entre as estepes da Ásia Central e o coração da Europa, favorecendo a construção de novas igrejas, palácios e castelos, e até de novas cidades criando uma verdadeira rede de feitorias.

Rus’

Notas

* Varangianos (ou Varegues) é a tradução do nome de origem nórdica ‘væringr’ que significa “companheiro que faz juramento”, isto é, alguém que assume um serviço a um senhor prestando-lhe lealdade. Os romanos acabaram por associar o termo, de forma geral, aos mercenários escandinavos (‘váragi’ / ‘váriagi’) que lutavam ao serviço dos imperadores em Constantinopla, chegando alguns a servir na sua guarda pessoal.

** Os Cazares eram um povo semi-nómada das estepes da Ásia Central, de origem Turcomana, que formaram um estado (‘Caganato’) nas regiões costeiras entre os Mares Negro e Cáspio, e ao longo do rio Volga, nos séculos VII a X, acabando por ser derrotados pelos Rus’ durante a época de Volodimir (980-1015).

Fontes manuscritas

– “The Russian Primary Chronicle, Laurentian Text”. Traduzido e editado por Samuel Hazzard Cross e Olgerd P. Sherbowitz-Wetzor. Cambridge, MA: The Mediaeval Academy of America, 1953.

– “Anales Bertiniani” ou “Anais de Saint Bertin”. Traduzido e editado por Janet L. Nelson. Manchester University Press, 1991.

– “Ibn Fadlan’s Journey to Russia”, traduzido por Richard Frey. Princeton, NJ: Markus Wiener Publishers, 2005.

– “Rusios, quos alio nos nomine Nordmannos apellamus”, por Liutprando de Cremona. Traduzido por Henryk Paszkiewicz, Kraków: Wzrost potęgi Moskwy, 2000.

Fontes bibliográficas

– Dolukhanov, Pavel M., “The Early Slavs – Eastern Europe from the Initial Settlement to the Kievan Rus”, 2ª Ed., London: Routldege, 2013.

– Duczko, W., “Viking Rus – Studies on the Presence of Scandinavians in Eastern Europe”, Boston: Brill, 2004.

– Franklin, S. & Shepard, J., “The Emergence of Rus 750-1200”, New York: Longman Publishing, 1996.

– Golden, Peter B., “Nomads and their Neighbours in the Russian Steppe – Turks, Khazars and Qipchaqs”, London: Ashgate, 2003.

– Raffensperger, C, “The Kingdom of Rus”, Medieval Institute Publications, Croydon: Arc Humanities Press, 2017.

– Sullivan, D. & Talbot, Alice-M., “Leo the Deacon, The History of Leo the Deacon: Byzantine Military Expansion in the Tenth Century”, eds., 2005, pp. 193–94.

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Obs: texto previamente publicado na página facebook Repensando a Idade Média, tendo sofrido ligeiras adequações na presente edição.

Imagens:

0) “O Convite aos Varengues” (nórdicos), pintura da autoria de Viktor Vasnetsov de inícios do século XX que retrata a chegada dos irmãos Rurik, Sineus e Truvor à terra dos eslavos por volta do ano de 860;

1) Territórios do leste europeu habitados pelas tribos eslavas nos séculos VIII e IX e principais rotas de expansão dos nórdicos, Búlgaros do Volga, Alanos e Húngaros;

2) Sítio original da urbe de Veliki Novgorod nos séculos IX a XI. A cidade actual, com o seu ‘kremlin’ de pedra, situa-se um pouco mais a norte.

3) ‘Kremlin’ de Novgorod nos dias actuais.

4) Vista aérea de Staraia Ladoga, o primeiro assentamento escandinavo conhecido em terras eslavas, nas margens do rio Volkhov. Em primeiro plano a igreja de São Jorge e os muros da sua fortaleza, construída no século XVI, quase completamente reedificada após a Segunda Guerra Mundial devido aos graves danos sofridos;

5) Ataque dos Rus, liderados por Askold e Dir, a Constantinopla em 860. Este primeiro raide à cidade imperial foi provocado pelo apoio romano à construção da fortaleza Cazar de Sarkel, no delta do rio Don. Os Cazares eram rivais dos Rus pelo controlo das rotas comerciais da região.

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