A Capela de Nossa Senhora do Loreto e a catedral românica do bispo D. Pedro de Braga
Pub
Quem visitar a Sé de Braga, deparar-se-á com um absidíolo românico à direita da Capela de S. Geraldo, que é conhecida desde finais da Idade Média como Capela de Nossa Senhora do Loreto.
Este monumento de finais do século XI, com uma pintura mural do século XV representando a “Maiestas Mariae”, é um dos poucos restos da primeira Sé românica em Braga, consagrada há exactamente 929 anos atrás, a 28 de Agosto de 1089, e destruída pelos maiorinos de D. Teresa em 1109-1110.
Antes de continuar, queria recapitular um pouco o contexto do (arce)bispado de Braga na viragem do século XI para o XII. Esta diocese, tal como muitas outras na região, tinha ficado vacante ao longo dos séculos anteriores em virtude das vicissitudes políticas do Noroeste Peninsular nos séculos IX-XI e era administrada durante a maior parte do tempo pelos bispos de Lugo, que eram um obstáculo à restauração da diocese metropolitana por interesses próprios. Para resolver essa situação, e talvez respondendo a pressões locais, o rei Garcia começou a preparar a restauração do bispado, mas entretanto foi deposto em 1071 e a restauração seria efectuada nesse ano por Sancho II de Castela. À sua frente ficou D. Pedro, que almejava não só a restauração da sua diocese e a submissão dos bispados tradicionalmente dependentes de Braga, mas também a primazia da sua Sé no quadro peninsular por ser o único bispado metropolitano em poder cristão na época. Contudo, a conquista de Toledo, em 1085, acabou por arruinar os seus planos e o bispo acabou deposto por Afonso VI após apoiar o antipapa Clemente III em 1091, numa tentativa falhada de obter os direitos de arcebispado para Braga. O bispado ficou consequentemente outra vez vacante por uns anos, até que provavelmente já em finais de 1097 Geraldo de Moissac foi nomeado para o seu lugar por iniciativa do conde D. Henrique e do arcebispo toletano. Esta nomeação deve ser vista tanto no quadro da Reforma Gregoriana e das redes de influência do arcebispo de Toledo na hierarquia eclesiástica peninsular, como também no quadro da reorganização da igreja portucalense de modo a corresponder ao novo poder político condal, numa estratégia política dos condes de identificação da estrutura eclesiástica em construção com o seu senhorio. Apesar do enorme revés com o “pio latrocínio” das relíquias bracarenses pelo bispo compostelano Diogo Gelmires, em 1102, S. Geraldo conseguiu elevar Braga a arcebispado em 1100 e não só reclamar os direitos metropolíticos sobre a Galécia, mas também a subordinação do bispo de Coimbra e das dioceses administradas por ele (Viseu e Lamego), em 1103. Após a sua morte, em 1108, foi substituído pelo bispo de Coimbra, Maurício Burdino, um dos protagonistas da nossa história.
Com esta introdução feita, voltemos à nossa história. A actividade “restauradora” do bispo Pedro também se evidenciou materialmente na sua diocese com a introdução do chamado Românico Condal, numa clara ruptura de cariz europeizante com as formas artísticas alto-medievais da região. Este frenesim construtor, apesar das voragens do tempo, é visível em igrejas como Lomar ou na capela-mor de Cedofeita (Porto), mas também se repercutiu em Braga: algures entre 1071 e 1080, a construção de uma nova catedral começou, substituindo uma imponente igreja pré-românica similar à de Compostela destruída por Almançor em 997. Com base na famosa basílica de S. Foy de Conques, esta nova igreja românica assumia a forma de santuário de peregrinação, com 3 naves e um deambulatório com capelas radiantes.
Os trabalhos da capela-mor já deveriam estar praticamente concluídos em 1088, quando a condessa Gontroda Nunes ofereceu uma cortina com 8 côvados (5,24m) de altura, correspondente a metade da altura da igreja, e o comprimento do edifício. Pensa-se que esta cortina serviria para resguardar a capela-mor dos elementos e permitir a celebração do culto enquanto as obras prosseguiam. Finalmente, no ano seguinte, a 28 de Agosto de 1089, a igreja era consagrada pelo arcebispo Bernardo de Toledo, na presença do bispo Pedro e dos seus homólogos de Dume, Tui e Ourense, o que reforça a ideia de que a capela-mor já estivesse concluída (e, diga-se de passagem, de forma muito rápida para um edifício destas dimensões). Também o claustro primitivo da Sé pode ser pelo menos parcialmente desta fase, como uma inscrição descrita por Mário Barroca e alguns indícios (nomeadamente restos de um tímpano e capitéis) parecem indicar, embora a primeira referência documental seja já de 1110.
Após a deposição de D. Pedro e uma certa estagnação nas obras, um novo impulso construtivo foi dado por S. Geraldo. A capela de S. Geraldo, conhecida inicialmente como igrejinha de S. Nicolau, foi uma das construções associadas ao santo e é mais uma das indicações sobre a ambição bracarense de se tornar um centro de peregrinação rivalizando com Compostela, pois este santo está muito associado a romeiros, que lhe agradeciam quando faziam paragens durante as suas romarias. Para além disso, boa parte do transepto já estaria terminado por voltas da altura de Geraldo, como parecem revelar os pilares e muros ainda existentes dessa fase na igreja.
Todo este esforço construtivo seria porém olvidado no contexto das lutas de sucessão após a morte de Afonso VI em 1109. Sabe-se que o arcebispo Maurício Burdino assinou dois documentos nesse mesmo ano, o que foi provavelmente interpretado pela corte condal de D. Teresa e D. Henrique como um desafio à sua autoridade e pretensões à monarquia leonesa. Em resposta, D. Teresa enviou os seus maiorinos para retaliar sobre o arcebispo e estes atacaram a catedral e o claustro bracarenses, resultando num incêndio que destruiu a Sé em construção. Este sucesso, ocorrido algures entre 10 de Dezembro de 1109 (data da primeira carta de couto da diocese) e 25 de Março de 1110, deixou as suas marcas arqueológicas: 1000 anos e muitas obras depois, ainda existe uma camada de demolição com 0,70m de altura por baixo da actual catedral! Esta atitude da infanta Teresa pode parecer estranha aos olhos modernos e até bastante contraproducente, todavia, seria difícil a D. Teresa tolerar o mínimo sinal de desalinhamento entre a política condal e a arcebispal num quadro de intensa interdependência entre os dois poderes, como notámos acima. Um exemplo muito semelhante hispânico é o saque da catedral de Compostela por D. Urraca, em 1117, num contexto de rebelião do bispo compostelano à rainha leonesa. Aliás, este tipo de práticas seria continuado ao longo dos séculos XII e XIII em conflitos entre a monarquia e a igreja, quer em Portugal quer noutros reinos peninsulares. De qualquer maneira, depois do desastre estar feito, a condessa portucalense tentou reconciliar-se com o arcebispo bracarense (o que era a longo prazo desejável para ambos os lados), o que parece ter conseguido mais ou menos em Julho de 1110, e renegociou a carta de couto doada em finais de 1109. Assim, em Outubro desse ano confirmou uma suposta carta de doação de Afonso V à Sé muito mais vantajosa, mas como o marido estava fora do condado e os termos eram demasiado proveitosos para a igreja bracarense, o documento não parece ter passado da minuta oficiosa, i.e., do rascunho. Mesmo assim, a 24 de Abril de 1112 os arcebispos bracarenses conseguiram uma carta de couto bastante proveitosa e definitiva, inaugurando assim o domínio senhorial dos arcebispos sobre a cidade, que com uma curta excepção durante o século XV, duraria até 1832.
Este resultado favorável aos interesses bracarenses não de foi de grande ajuda para a igreja, contudo. Como resultado desta destruição e das circunstâncias difíceis de Braga a partir da deposição de Maurício Burdino em 1118, a igreja só começou a ser reedificada em finais da década de 1120 ou inícios da de 1130 e teve de assumir um aspecto mais modesto e tradicional, renunciando de certo modo à rivalidade com Compostela no que à magnificência da igreja e fluxo de peregrinos dizia respeito, até pela falha da arquidiocese em arranjar relíquias minimamente à altura das da compostelana. Felizmente, apesar da sua História conturbada, o visitante pode visualizar alguns vestígios da fase petrina reutilizados na actual catedral. Em primeiro lugar, destaquemos o absidíolo mencionado no primeiro parágrafo, hoje a capela de Nossa Senhora do Loreto. Para além disso, também são dignos de nota os arcossólios na Capela dos Reis, por baixo dos cenotáfios de D. Henrique e D. Teresa, e o friso presente atrás, que ainda são de uma capela dedicada a São Lucas existente antes das obras de construção da actual capela em finais do século XIV. Para além disso, e para terminar as características mais importantes, alguns dos capitéis acabaram por ser reutilizados em áreas como o claustro e há certas “anomalias” resultantes desses reaproveitamentos, no transepto da catedral, como o uso de certos pilares para reforçar as suas paredes ou um falso contraforte na parede sul do transepto, que seria originalmente a parede leste do monumento. Apesar de nunca ter chegado a ver completamente a luz do dia, ainda é capaz de surpreender visitantes e historiadores pela sua precocidade e dimensão.
Imagens: DR
Fontes:
Barroca, Mário Jorge; Amaral, Luís Carlos (2012). “A condessa-rainha Teresa”. Círculo de Leitores, Lisboa, pp. 127-149, 270-281 e 333-334.
Barroca, Mário Jorge (2000). “Epigrafia Medieval Portuguesa (862-1422)”, vol. II, “Corpus Epigráfico Medieval Português”, Tomo I. FCT / Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, pp. 112-113.
Real, Manuel Luís (1990). “O projecto da catedral de Braga, nos finais do século XI, e as origens do românico português” in “Actas do Congresso Internacional Comemorativo do IX Centenário da Dedicação da Sé de Braga”, vol. I, “O Bispo D. Pedro e o Ambiente Político-Religioso do Século XI”, pp. 435-487.
Rosas, Lúcia; Botelho, Maria (2010). “Sé de Braga” in “Arte Românica em Portugal”. Fundación Santa María la Real, Aguilar de Campoo, pp. 41-50.
1ª Página. Clique aqui e veja tudo o que temos para lhe oferecer.
Obs: texto originalmente publicado em Repensando a Idade Média, tendo sofrido ligeiras adequações na presente edição.
VILA NOVA, o seu diário digital. Conte connosco, nós contamos consigo.
Se chegou até aqui é porque provavelmente aprecia o trabalho que estamos a desenvolver.
A VILA NOVA é cidadania e serviço público.
Diário digital generalista de âmbito regional, a VILA NOVA é gratuita para os leitores e sempre será.
No entanto, a VILA NOVA tem custos, entre os quais a manutenção e renovação de equipamento, despesas de representação, transportes e telecomunicações, alojamento de páginas na rede, taxas específicas da atividade, entre outros.
Para lá disso, a VILA NOVA pretende produzir e distribuir cada vez mais e melhor informação, com independência e com a diversidade de opiniões própria de uma sociedade aberta. A melhor forma de o fazermos é dispormos de independência financeira.
Como contribuir e apoiar a VILA NOVA?
Se considera válido o trabalho realizado, não deixe de efetuar o seu simbólico contributo sob a forma de donativo através de mbway, netbanking, multibanco ou paypal.
MBWay: 919983484
NiB: 0065 0922 00017890002 91
IBAN: PT 50 0065 0922 00017890002 91
BIC/SWIFT: BESZ PT PL
Paypal: [email protected]
Envie-nos os seus dados e na volta do correio receberá o respetivo recibo para efeitos fiscais ou outros.
Gratos pela sua colaboração.
Pub
Acerca do Autor
Artigos Relacionados
Comente este artigo
Only registered users can comment.