O negro irregular da ruína: entre Tolstoi e Rui Nunes

O negro irregular da ruína: entre Tolstoi e Rui Nunes

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  1. [ecos]

«O poema ensina a cair / sobre os vários solos […]» (Luiza Neto Jorge, Poesia, p. 141)

«Cai o texto na suavidade da noite _______ cais, e receio então por nós, como uma sombra.» (Maria Gabriela Llansol, O Texto-Catarina, p. 114)

«Sim, o poente há-de achar-se a si mesmo em mim, sem mim.» (Joyce, Ulisses, p. 57)

«[…] ontem, um pouco de greda; amanhã, múmia e um punhado de cinzas» (Marco Aurélio, Pensamentos, pp. 46-7)

«Basta começares. Descreves, descrês. E saberás: tudo está incompleto, mas não consumado.» (Rui Nunes, Irradiante, o negro, p. 71)

  1. [cair]

Talvez não baste teimar que o poema ensina a cair. A dado altura, interrogando a poesia com a ferocidade da vida, exigindo-se o máximo daquela para que, sob o gesso dos versos, não remanesça da vida uma forma pálida de traição, – a dado momento, talvez nos caiba a nós ensinar o poema a cair. Ensiná-lo com a nossa própria queda. Cair de vez: um tombo brutal em pleno chão, os joelhos em sangue, um lanho na face, o abre-te-sésamo de uma intransigente insensatez, que não faça a mais leve cedência ao sentido. «Cumpro a ordem escondida em todas as quedas», escreve Rui Nunes em A Mão do Oleiro. «É uma ordem contra o sentido» (p. 10). Uma ordem que, no mesmo gesto com que a palavra se reifica sobre a página, arrasta consigo uma espécie de vórtice, despenhando sobre a escrita a sua própria latência, um branco caótico que se torna indiscernível do negro mais espesso. «Uma ordem para me perder» (ibidem). Palavras como astros desavindos, chocando umas com as outras, expostas na sua impotência. Como os relógios de Dalí: palavras-tempo expropriadas do seu pendor abstracto, imaterial ou metafísico, palavras que devêm corpos, derretendo ao sol abrasador da mais crua evidência – a de que o sentido não pré-existe à nossa queda no mundo, nas coisas, na proximidade com os outros.

Uma hipótese, um gesto. Deter a mão, cerrar a língua no interior da boca: não escrever nem mais um poema enquanto a sua lição não se tornar tão íntima quanto o silêncio do sangue que, sem nele pensarmos, nos corre nas veias. Não escrever. Deixar escrito que não se escreve mais, cavando na insidiosa transparência da escrita, na sua propulsão comunicante, o vazio e o nada do que permanece opaco, obstrutivo, insensato. O gume com que a solidão nos recorta do falso fundo integrador da paisagem, prostrando aos nossos – e aos olhos dessas evidências cegas que são as palavras na escrita – a certeza severa de que estamos a sós, e apenas, com a fidelidade da sombra ao nosso corpo. Não escrever – e deixar que a escrita nos expulse a todos, que se devore a si mesma numa língua que mais ninguém fala ou entende, «os estilhaços de uma frase sem sentido» (Rui Nunes, Ofício de Vésperas, p. 31). Não escrever: cair. E que a escrita seja, palavra a palavra, linha a linha, o degrau-fantasma que o pé, desatento, procurou pisar. Assim tropeçamos, mas é por dentro que caímos – onde quer que isso seja.

  1. [Ilitch]

«Hoje, na boca dos homens mudou o nome de deus, / os mortos porém continuam, a intervalos regulares, / enquanto anónimas faces investigam o que se perdeu» (Rui Nunes, op. cit., p. 33). Nem os mortos sabem que morreram, nem os vivos conhecem a morte. Se resiste na arte uma voracidade imanente que a incita a existir sob as mais variadas formas, géneros ou expressões, talvez essa resistência se possa afirmar à luz do poeta Roberto Juarroz que, numa entrevista, ponderou esta possibilidade: a de ser a poesia a única experiência humanamente concebível para aceder em vida ao que na morte nos há-de sempre exceder. E por isso se escreve. E quanto maior a exigência perante o ofício da escrita, maior a intimidade com o que nos morre na inapelável circunstância de estarmos vivos e sermos mundo no mundo, nos interstícios das contrariedades mais renhidas: afinal, diz-se que ninguém é de ferro, quando baixar a guarda e ceder livre-trânsito às lágrimas se elevam à dignidade moral da bravura. Assim o tumulto da escrita, o seu «balbuciar» (Celan) ante o terror. E, sobretudo, quando é na ferida da morte que se põe o dedo, nem sempre há estômago que aguente um pragmatismo à Marco Aurélio, por muito que nos fira, e até nos divirta, pensar as coisas assim: «Quanto à morte, de duas uma: ou é uma dispersão, no caso de existirem átomos; ou é uma extinção ou emigração, se o mundo constitui um todo.» (Pensamentos, p. 83).

Um exemplo. Ou melhor: o exemplo, pedra-de-toque dos que, tendo perdido deus e a fé nos seus desígnios, redescobrem nos livros uma outra fé, mais sanguínea, para crer – ou para estar somente – na substância da vida. De Lev Tolstoi (1828-1910), o breve clássico que o gigante russo começara a escrever em 1882 – A Morte de Ivan Ilitch (1986) – desfere um golpe limpo, qual ajuste de contas, sobre a tumultuosa nebulosidade que nos mantém à distância da nossa condição mortal.

O maior flagelo vivido no corpo do protagonista, um importante juiz desembargador, é, justamente, a consciência de que é um corpo, nada mais que um corpo, sem o halo redentor da alma. O absurdo da morte, na sua despudorada intransigência, surge prontamente enunciado no segundo capítulo: «A história passada da vida de Ivan Ilitch fora a mais simples e vulgar e por isso a mais horrível» (A Morte…, p. 21). Tanto mais horrível, quanto mais se acentua a ubiquidade do abismo na luz irradiante das coisas, no comum frugal dos dias, ou nos gestos mais inofensivos: enquanto demonstrava ao estofador como pretendia ver dispostas as tapeçarias da sala, bastou a Ivan Ilitch empoleirar-se num escadote para bater «de flanco contra o fecho de uma janela» (p. 40). O próprio ritmo da narração desvaloriza o incidente, mero fait-divers da vaidade: «A equimose doeu-lhe, mas passou depressa» (ibidem). Porém, o mal estava feito: o que começara por ser, dias depois, «um gosto estranho na boca e um certo desconforto no lado esquerdo do ventre» (p. 47), viria a tornar-se o périplo de Ilitch, 45 anos, contra o destino, a progressiva ruína de um corpo que, até à data, não fora menos que o manequim espelhante das ambições de carreira, do prestígio social em jantares de gala, do gozo de sentir o poder nas suas reputadas mãos de juiz. «Parecia-lhe que a sua boca exalava um cheiro repugnante e sentia cada vez menos apetite e menos forças. Não era possível enganar-se: qualquer coisa de horrível se passava no interior de Ivan Ilitch, qualquer coisa nova e mais importante do que tudo o que antes acontecera na sua vida» (p. 55).

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A decadência irreversível, o cheiro a podre, o olhar sem brilho de um moribundo. Tolstoi contempla ainda a náusea dos que, aproximando-se de Ivan e do seu «aflitivo torpor» (p. 93), conseguem apenas reagir por esquivas e eufemismos, com o sentimento de uma felicidade mesquinha por se saberem ainda de pulso firme em face de um cadáver adiado. Ao invés de se estender em profusos enredamentos metafísicos, ou de fazer a narrativa derrapar para um exotismo delirante de inspiração neogótica, com espectros arrastando cavernosos suspiros e névoas sepulcrais, o dilema filosófico sobre a morte nesta novela de Tolstoi é reconduzido à mais estrita imanência: não à morte, esse grande enigma, mas ao morto, a evidência corporal de um corpo que jaz e apodrece. Conduz-nos, assim, a repensar a enigmaticidade mesma dos fenómenos visíveis, a treva agonizante da carne, qual segredo enovelado na sua própria transparência insurgente: «Parecia-lhe que ele e a sua dor eram enfiados num saco preto estreito e profundo, e que o empurravam cada vez mais sem conseguir chegar ao fim.» (p. 93).

  1. [corpo]

Um desvio. «Havia luz, e agora há escuridão. Ainda há pouco estava aqui e agora vou para além. Para onde?» – e repare-se: assim que o protagonista expõe estas aflições segundo o arcaísmo conflituante entre luz e sombra, expondo-se ao medo do desconhecido, o narrador inclina a verve metafísica deste drama pessoal para o terror fisiológico do corpo, o plano vertiginoso do real sensível: «Sentiu um arrepio de frio, faltou-lhe o ar. Só ouvia as batidas do coração» (p. 63). À luz da tradição do romance realista, o gesto de Tolstoi acabaria por tornar contemporaneamente intempestivas as iluminuras de De humani corporis fabrica (1543), o primeiro grande atlas anatómico, pelo médico renascentista Andreas Vesalius (1514-1564). Dissecando um cadáver, expondo as vísceras, os órgãos e a estrutura óssea que a pele resguarda, Vesalius acabaria por desalojar a alma dos esconsos interiores do corpo humano. A interioridade fisiológica não abriga, afinal, qualquer reduto inefável do que possa ser a anima divinamente insuflada – há apenas o corpo, e o corpo apenas, como um resto sem equívoco, onde esplende o que há de anónimo e universal em cada identidade singular.

Se, por um lado, a contrapelo de uma mais óbvia morbidade jacente, as ilustrações de Vesalius optam por mostrar esqueletos e escorchados em efusivas danças, com os nervos e os tendões à mostra como quem exibe derradeiros triunfos, cantando glórias a uma vida secreta – a vida interior da ossatura sob o disfarce da carne –, por outro, seguindo a pista lançada por Peter Sloterdijk, esse vitalismo ósseo representado em De humani corporis fabrica acompanha a suspeita antropológica de que o humano, na verdade, pressente nunca ser apenas o que julga ser. A partir do momento em que vem ao mundo, o ser humano fica imediatamente votado a uma radical excentricidade ontológica: jamais coincidirá consigo mesmo, se este «consigo mesmo» permanece incapturável e irredutível a um centro fixo.

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A este nível, o teatro anatómico deverá ser autopsiado à letra, como se contemplado pelo génio de Shakespeare: o corpo, essa fabrica, é um portentoso e obscuro palco, tenha ou não tenha uma alma que engendre as suas próprias representações e conduza autonomamente a sua vida. Por muito que se milite na mais renhida imanência, no lado avesso das superstições, como não entrever nos esqueletos de Vesalius a existência inquietante de um «androide interior» ou de uma «estátua viva» dentro de nós (Sloterdijk, Tens de Mudar de Vida, pp. 442-3)? A identidade torna-se inseparável do seu carrossel de máscaras: «O que se designa por ‘identidade’ é a autoilusão do ator, que também gostaria de ser fora do palco o que representa»; contudo, «[f]ora de cena é algo que não existe» (Sloterdijk, Depois de Deus, p. 35).

Quando Tolstoi introduz o âmago narrativo de A Morte de Ivan Ilitch, descreve em traços tão cruamente objectivos a única realidade sensível que a morte nos dá a conhecer: «O morto jazia como sempre jazem os mortos, de um modo especialmente pesado, defunto, com os membros hirtos afundados no acolchoado da urna, a cabeça para sempre inclinada na almofada, e mostrando, como sempre mostram os mortos, a sua testa amarela como cera com entradas nas têmporas fundas e o nariz saliente, que parecia comprimir o lábio superior.» (p. 12). Eis o corpo defunto de Ivan Ilitch visto pelos olhos de familiares e colegas de trabalho. No entanto, mantendo aceso o posicionamento excêntrico do ser humano, como não entrever na presença hirta da finitude, nesse corpo metido no caixão, aquela «inelutável modalidade do visível» que Joyce perquire nas primeiras páginas de Ulisses? O mesmo Joyce que, nessa instigante passagem, faz o convite: «Fecha os olhos e vê»?

Isto é: como não pressentir que até os mortos nos olham, que através deles, no seu mutismo de coisa inerte, a célebre frase de Nietzsche «Deus morreu» desperta para paradoxos infernais e sentidos insuspeitos, como se o ser-morto de Deus continuasse a espiar-nos, precisamente, do ângulo morto da nossa vigília? A «testa amarela» e o «nariz saliente» do rosto de Ilitch permanecem inatingíveis, expulsam quem os observa de quaisquer projecções fantasistas de simetria ou reconhecimento. Quer dizer: o morto fixa no olhar alheio um vazio impreenchível, a ferida exponencialmente aberta que cinde esse olhar, que torna impura toda a opticalidade que se julgue objectiva (não há, não pode haver, um ver puro ou abstracto das coisas). Segundo Didi-Huberman, comentando a referida passagem de Ulisses, «ver é sentir que alguma coisa nos escapa inelutavelmente», «ver é perder» (O que nós vemos, O que nos olha, p. 15).

Em suma: eis um morto que, enquanto morto, continua a ser a solidão inviolável de um outro, na sua radical alteridade, ao mesmo tempo que acentua em mim, na qualidade de espectador, o que há de impenetrável na minha solidão, este abandono a que me entrego, no silêncio atulhado de vozes que é a minha consciência, por entre as várias sombras que permeiam a luz. Isso, o que sobra de uma existência viva, não é ainda a morte; um morto é tão-só a transformação da vida numa outra forma, num outro enigma. Numa sociedade pós-secular ou pós-cristã, entende Sloterdijk, em Depois de Deus (pp. 282-3), que a força irradiante desse enigma continua a ter «estatuto evangélico» entre nós: com ou sem uma comunidade formalizada de crentes, dentro ou fora do perímetro das igrejas, não cessamos de produzir conteúdos para um «Novíssimo Testamento» – arte, poesia, ciência, questionamento filosófico, … –, todo esse «arquivo da Modernidade» que nos protege, amiúde (com ou sem valiums à mistura), da mais desesperante das noites sem fundo.

  1. [morte]

«O que é isto? Será na verdade a morte? E a voz interior respondia: sim, é verdade. Porquê estes sofrimentos? E a voz respondia: por nada, é assim. E para além disto não havia mais nada.» (A Morte de Ivan Ilitch, p. 99). O verismo que toma de assalto a intensidade desta personagem terá bebido inspiração nos últimos dias de Ivan Ilyich Mechnikov, juiz-procurador no Tribunal de Toula, cujo quadro clínico – uma neoplasia abdominal – Tolstoi recolhera a partir do irmão do falecido. Sabe-se que, depois de escrever este pequeno livro, Tolstoi sucumbira às agruras de uma crise espiritual, quando ainda tinha pouco mais de 50 anos. E são também conhecidas certas contingências biográficas que terão moldado a sensibilidade de Tolstoi em relação à morte e ao destino da carne. A começar, o autor de Guerra e Paz cresceu sem mãe, que falecera quando ele tinha apenas 2 anos de idade. Combateu na guerra da Crimeia, entre 1854-5, assistindo com os próprios olhos ao empilhar dos corpos massacrados e à crueldade homicida do xadrez militar. Mais: viu um homem ser guilhotinado em Paris, em 1857, tornando-se desde então um pioneiro abolicionista da pena de morte; perdeu um irmão, Nicolas Tolstoi, ceifado pela tuberculose, em 1860; e dos treze filhos que teve com Sonya, pelo menos cinco morreram sem completarem dois lustros de vida. Segundo George Steiner, perante este rol acerbo de experiências, Tolstoi acabaria por sofrer «de um desespero da razão ante o pensamento de que as vidas dos homens estavam condenadas, pela doença, pela violência ou pela voracidade do tempo à extinção irremediável, àquele desaparecimento gradual para dentro do ‘saco escuro’ que Ivan Iliitch recorda nos seus últimos momentos de agonia» (Tolstoi ou Dostoievski, p. 240).

A metafísica de Tolstoi aprendera a sobreviver sem o escudo beatífico de realidades transcendentes. Em matéria de milagres, as hierofanias de Tolstoi são clarões baços da razão moral. Na óptica deste reformista visionário, o verdadeiro reino dos céus só pode acontecer aqui, nesta terra calcada por pés mortais, tomando nas mãos humanas o baluarte para um mundo justo, à luz de um «cristianismo sem Cristo» (Steiner). Recusou por isso liturgias institucionais, censurou a hipocrisia eclesiástica, porque ao serviço do poder governativo, e a insolência das contradições nos evangelhos, que acomodam nos crentes uma anuência face aos infernos da vida em nome de uma fraude celestial que estará para vir após a morte (e refira-se que esta insurreição pessoal o levaria a ser excomungado em 1901). Com a severidade intrínseca ao mais renhido ascetismo, Tolstoi propunha que amássemos a Terra, esse evangelho natural, plasmado na multiplicidade viva das coisas existentes e nos dilemas éticos em que se funda o mais elementar senso comum. Nenhum deus que se preze vive ensimesmado no mistério sublime da sua existência; sem humanos, sem a carnalidade irredutível da nossa plenitude breve na Terra, a ideia de deus torna-se simplesmente indigna de existir.

Num tom secamente lapidar, como que saído de um sermão revivalista, Tolstoi escreveu uma «Carta a um suboficial» (1899) acerca da única salvação possível: «[…] não precisamos nem de ícones, nem de relíquias, nem de serviços de igreja, nem de sacerdotes, nem de catecismos, nem de governos, mas, pelo contrário, precisamos de uma total libertação de tudo isso; porque fazer aos outros aquilo que desejamos que eles nos façam só é possível quando um homem está livre das fábulas que os padres apresentam como a única verdade, e quando não está limitado por promessas de agir como outras pessoas lhe possam ordenar. Só um homem assim será capaz de cumprir – não a sua própria vontade nem a de outros homens – a vontade de Deus» (Os Últimos Escritos, p. 51). O único trabalho a ser feito: «destruir o cristianismo pervertido e estabelecer uma verdadeira religião cristã» (op. cit., p. 283).

Um olhar assim tão pragmático, tão imbuído de um fervor humanitarista, parece destinar-se a ser apressadamente julgado como ingénuo, idealista e de um maniqueísmo confrangedor. É demasiado incompatível com a cegueira funcionalmente cínica, o distanciamento irónico ou o relativismo pós-nietzschiano que, para lá do bem e do mal, nos permitem perseverar na Terra, criando herdeiros da devastação em curso, escrevendo textos para o ázimo do algoritmo, aldrabando pulsões suicidas com um fio de insónias e uma luz de presença. Mas talvez possamos ver as coisas à Tolstoi sob outro ângulo. Com ou sem um deus tutelar, tenhamos ou não o viço subterrâneo de uma fé, se desejamos estar à altura daquilo que nos acontece e nos movemos por um sentido irredutível, ferozmente humano, de dignidade, de equidade e de justiça – como um horizonte que, estando sempre à distância, não deixa de ser a abstracta linha sondada pelo nosso desejo –, então citamos Tolstoi sem aspas, lemo-lo mesmo que ainda não tenhamos desfolhado, página a página, a crónica imensa de Guerra e Paz. Dizendo-o com o júbilo hermenêutico de Steiner (op. cit., p. 301): acreditamos nele.

Entramos em igrejas repletas de santos que não nos dizem nada, onde ardem velas e se ajeitam flores que exacerbam, somente, o abandono espúrio dos nossos joelhos nas lajes, em face do enorme poço sem fundo que é a face inexistente de deus. Não creio em nada do que me pregam – muito menos se o amor ao próximo, enquanto lídima verdade, requer a vociferação e o açaime do medo. Contudo, toco o azulejo frio das paredes, imagino os santos desfeitos em cacos, observo os arranjos florais e comovo-me com a beleza inexpressiva de tudo isto. Tudo existe, numa imobilidade e numa pobreza extremas. Justamente o que torna inexcedível, quase alucinante, a intimidade do real. Sei que não me basta descrever a exterioridade rudimentar das coisas para que elas, de súbito, possam esplender como mónadas. De nada me serve a mansidão literal com que as palavras mais simples fingem aderir aos objectos do mundo. Afinal, dizer pedra ou vela não é coincidir com a quintessência das pedras ou velas; é reencenar o mesmo drama de Platão ao pé de Crátilo, fazendo dançar uma sombra entre sombras. Seja como for, nem por isso me calo. Não há fuga possível ao vespeiro da língua, à cilada em que os nomes das coisas nos levam às coisas dos nomes. E, entretanto, existe o meu ponto de partida: há um lugar, há uma igreja, há gente que está dentro dela, há cânticos e velas e flores. Há o que sobra do real quando deixamos de crer na realidade à nossa volta. No limite, a presença extraordinária de elementos ordinários, o mutismo surreal da própria substancialidade da matéria: a inexistência de deus, qual poalha invisível de nadas subatómicos. O véu de Verónica, a bruteza da cruz, o Kyrie eleison – outros nomes para a pequena face que trazemos. A pequena face que adia o extremo detonante de um crânio.

A força de Tolstoi residirá algures aí, nos intervalos desta minúcia infatigável – uma «arte […] impregnada da realidade dos sentidos», segundo Steiner, ou, nas palavras de D. H. Lawrence, uma «sabedoria do sangue» (Steiner, op. cit., p. 249). É também desse fundo sem fundo que somos olhados, por exemplo, pela escrita de Rui Nunes. Esse fundo sem fundo, nestes dois autores, hostiliza a literatura, faz recair sobre as belles lettres a amarga suspeita de que, ao mínimo deslize, à mais leve distracção, nos tornamos reféns da cadência das frases, escravos da harmonia do seu ritmo, enchendo páginas vazias de mundo, sem vestígios do que há de inacabado na vida, porque inacabável. Por isso Tolstoi admirava a «poesia dos contos, dos acontecimentos reais da vida», e a «arte da beleza dos animais, dos produtos do trabalho, das persianas e dos cataventos, das canções e das danças» (Os Últimos Escritos, pp. 279-80). Por isso Rui Nunes sente repulsa pela «transparência» dos «textos que não dizem nada, rigorosamente nada, porque não têm atrás a história de um olhar», nem «o peso da realidade que faz ancorar um indivíduo» (Dizer o Mundo, p. 18).

  1. [Homero]

Semelhantes quedas na imanência, «na terrível sobriedade» que, segundo Steiner, caracteriza exemplarmente A Morte de Ivan Ilitch, explicam por que razão o mesmo crítico literário captou em Tolstoi essa «intuição poética» que, na esteira de Platão, Shakespeare ou Dostoievski, permitiu ao «pensamento ocidental [dar] um salto em frente nas trevas» (op. cit., p. 26). Com um máximo de contenção na intriga, um controlado virtuosismo técnico e o domínio omnisciente do narrador, sem, no entanto, drenar a mundanidade da narração com doses esmagadoras de naturalismo oitocentista, Tolstoi revelou-se «profundamente homérico» no seu modo de escrever – e, como realça Steiner, o homerismo tolstoiano não implica necessariamente que se considere apenas os livros de maior fôlego do autor, como o incontornável Guerra e Paz, com as suas 1300 páginas. A pulsação homérica é exemplarmente pressentível num livro de dimensões tão modestas como A Morte de Ivan Ilitch – se atentarmos na vitalidade atribuída aos objectos físicos do quotidiano: por exemplo, «[…] os vestidos de Anna Karénina, os óculos de Bezukhov, a cama de Ivan Iliitch […] retiram a sua raison d’être e solidez do contexto humano» (Steiner, op. cit., p. 64). À representação das coisas, como já sucedia nas epopeias homéricas, não subjaz um distanciamento ontológico em relação aos agentes humanos, tornando aquelas inertes, manipuláveis ou simplesmente secundárias. De acordo com a visão hegeliana, essas coisas homéricas – a espada que o guerreiro braceja, a vasilha que se quebra – «irradiavam uma vitalidade que a literatura moderna não igualava» por ser contemporânea de uma crescente alienação «entre a linguagem e as coisas imediatas do mundo material» (p. 64), num contexto histórico gradualmente intensificado pelos modos industriais de produção. Acontece, porém, que o titanismo de Tolstoi reverbera com intensidade afim às epê pteroenta, ou «palavras aladas», da Odisseia e da Ilíada – e, como tal, no mundo dos seus romances, «os bonés dos homens devem o seu significado e a sua inclusão nas obras de arte ao facto de cobrirem as cabeças dos homens» (ibidem). «Como Adão», acrescenta Steiner, «Tolstoi nomeou as coisas que passavam diante de si; elas vivem ainda para nós porque a sua própria imaginação não podia pensá-las sem vida» (p. 108).

Mas há ainda um outro aspecto relevante quanto a esta sobrevivência homérica em Tolstoi, com inegáveis repercussões na escrita de Rui Nunes. Atente-se nesta sequência aparentemente anódina de acções: «Entrou, despiu-se e pegou num romance de Zola, mas não o leu, ficou a pensar» (A Morte de Ivan Ilitch, p. 62). Porquê o súbito desinteresse pelo livro de Zola, nome maior das incursões literárias pelo verismo naturalista? Desconhecemos ao certo que romance aqui se trata; e é irrelevante, no fundo, saber se a atenção de Ilitch esmorecera perante as páginas de Germinal ou de Nana. Mas podemos sondar, por sua vez, a primazia dada por Ilitch ao enlevo meditativo, em detrimento do estrito ócio da leitura, intersectando o plano emocional da personagem – o drama crescente da sua angústia face ao absurdo da morte – com o plano de uma textualidade pensante que mediatizaria a atitude de Tolstoi perante a circunstância da vida, isto é, perante o que na vida é permeável à sua transformação em matéria literária, por um lado, contra o que na vida é puro excesso a-semiótico, por outro, reduzindo os Zolas deste mundo (e, quiçá, o próprio Tolstoi…) à inanidade da cinza.

Voltemos, por isso, a George Steiner: «Na moldura de cada quadro, na imobilidade de cada estátua, na capa de cada livro, há uma medida de derrota e uma admissão de que, ao imitar a vida, fragmentamo-la. Mas estamos menos conscientes desse facto em Tolstoi do que, porventura, em qualquer outro romancista» (op. cit., p. 117). Eis a incontornável falibilidade da arte, seja ela um livro, um poema ou um gesto performativo: a sua evidência assume a forma de um objecto temporal e historicamente determinado; a sua constituição enquanto forma terá forçosamente que ser menor do que a intempestividade da vida, que subverte e atravessa todas as formas, reais e imaginárias. É essa, no fundo, a grande traição que subjaz ao ponto final no remate das frases: termina-se no texto o que é infindável na vida. E daí, portanto, «a convicção tolstoiana de que uma forma narrativa se deve esforçar por rivalizar com a infinidade – literalmente, o inacabamento – da experiência real» (p. 118). Neste sentido, como é que os olhos impacientes de Ilitch/Tolstoi poderiam tolerar a confiança abusiva nos pontos finais das frases de Zola? 

  1. [inacabável]

Ora, é a Rui Nunes que pertence o seguinte repto, no já remoto livro Sauromaquia, publicado originalmente em 1976: «é com uma vírgula que acabo, sempre para poder recomeçar sem problemas» (p. 86). Rui Nunes escreve como escreve porque pensa a sua escrita à luz extenuante desse inacabamento de tudo. Nenhum dos seus livros perfaz, no sentido lato do termo, uma obra, ou aspira a ser parte constituinte de uma bibliografia autoral. Todos os textos são «metamorfoses da aproximação», a aprendizagem de «um único gesto» (A Mão do Oleiro, p. 59), como sucessivas notas à margem de um texto principal a que nunca se chega, ao qual não se deseja nunca chegar. À imagem de uma «mão cansada / que não sabe fechar um parêntesis» (No íntimo de uma gramática morta, p. 11), esta escrita procura. É ela mesma uma procura, o movimento caligráfico do desejo que, de intermitência em intermitência, de deriva em deriva, rompe com todas as formas de doutrinação, com as convenções engessadas do que quer que se designe por literatura, História, poder, o sentido do sentido, o alibi da condição humana.

«Começa. Ou continua? Ou não teve início esta corrida?», lê-se no mais recente movimento desta aproximação: Irradiante, o negro (Relógio D’Água, 2022, p. 60). Como um gago que sofre, uma a uma, as palavras que é incapaz de dizer fluentemente, sendo esse sofrimento a medida exacta do seu amor, «este homem vê uma palavra e escava, diz uma palavra e escava, e encontra, e no que encontra descobre uma pequena falha, e continua a escavar enquanto vai morrendo» (p. 17).

Eis como se desdobra em hesitações, na violência de uma repetição obstinada, o olhar de Rui Nunes sobre o inacabamento ou a incompletude da vida. Também Marco Aurélio aconselhava: «Escava o teu íntimo» – mas a leitura integral deste preceito estóico, à luz (ou à sombra…) do que intuo ser o olhar de Rui Nunes, talvez pareça exibir-se com duvidosa petulância: «Escava o teu íntimo. Lá dentro é que está a fonte do bem, e pode manar sempre se sempre a fores escavando» (Pensamentos, p. 87). Este íntimo aureliano, com uma fé cega nessa «fonte do bem» interior, não é a intimidade das pequenas falhas que Rui Nunes encontra no que escava. Dizer uma palavra, escavar: coalescência do corpo e do texto, mútua sujidade de um e outro. Palavra, terra, fundura, este movimento inconcludente, incomplacente, de perseguição. Cavar a própria palavra: mostrar a fenda no seu interior, a sua zona silenciada (escondida sob a máscara silenciosa), a sua imperceptível (e dolorosa, porque trágica) autenticidade.

«[…] e continua a escavar enquanto vai morrendo» (op. cit.). Enquanto vai morrendo, e não: até morrer. O detalhe importa, os pormenores contam – sobretudo para o olhar de Rui Nunes, que nunca conheceu do mundo outra coisa senão bocados, detritos, pormenores, essas «lupas para ver o futuro»: «Você olha para uma das peles mais belas que há, aproxima o olho e vê o futuro daquela pele. Tudo, está lá tudo» (Dizer o Mundo, p. 23). Enquanto vai morrendo. Porque é morrendo que tudo está, que todos estamos, desde sempre, a cada instante, humanos e não-humanos; «é o gerúndio de uma matança» em curso, como terrivelmente (d)enuncia em Nocturno Europeu (p. 14). Sabê-lo desta forma, agudizar de tal maneira o pathos desta clarividência maligna, não tem deixado de levar muitos homens e mulheres à loucura, ao desespero suicida, a desistir de tudo; ou, num gesto contraproducente, a fazer arte pela arte, sem espessura, edulcorante. Mas o amor é exactamente isto: não interrogar o porquê de se escrever, de se escavar assim, porque aí mesmo se explana o sentimento de urgência, a necessidade visceral de fazer acontecer o que tem de ser feito. A Real-literatur, segundo Deleuze, não é menos do que «uma carta de amor» – uma escrita-desejo na infância grega da língua, a manhã núbil de festa irradiando entre Spinoza, Hölderlin, Whitman, Llansol, o rumor das águas em Heraclito. Ou um vento árido, imemorial, que sopra sem origem, desalinhando tudo, erguendo no ar a fuligem de tantos prédios desfeitos em pó.

Este modo testemunhal de dizer o mundo só pode advir de uma imensa coragem: a coragem da parte de quem escreve, pinta, filma ou simplesmente está, na sua solidão, em presença das coisas, sem maquilhar a tensão que anima todo e qualquer acontecimento. A coragem de ver a desagregação, a desarmonia e a dissonância, não como defeitos ou acidentes remediáveis, mas enquanto provas elementares de que se está vivo e de que é neste, e não noutro, mundo que se vive. Sem procurar trair esta intimidade, nem por instinto de sobrevivência, em jeito de mecanismo defensivo, nem sob o impulso de antepor ao mundo os códigos e as convenções que esteticamente o modelizam, criando arte para fugir à vida, desvitalizando-a nesse processo. A coragem para escrever, escavar, assim. E reconhecer que, de outra forma – mais mansa, mais legível, mais literária –, jamais se escreveria uma linha, jamais a terra ficaria este arrazoado de tocas, buracos, esconderijos, guardando para sempre os seus segredos, as feridas da História por dizer.

«Basta começares. Descreves, descrês. E saberás: tudo está incompleto, mas não consumado.» (Irradiante, o negro, p. 71). 

  1. [bode]

A particularidade de Irradiante, o negro – particularidade insólita, se pensarmos no conjunto dos livros de Rui Nunes – é a sua aparente redução a um núcleo duro narrativo. Melhor: é o que nos parece abrir caminho para chegar a esse núcleo, uma espécie de moldura formal que sustenta o esquisso de uma história, a partir de dois eixos narrativos que se infiltram e se contaminam mutuamente. (Num aparte comparatista, embora longe de ser exaustivo, o que mais se aproxima em Rui Nunes deste aparente emoldurar narrativo incluirá, porventura, a figura velhaca de Salazar no livro Enredos, os vários membros da família em Álbum de Retratos e o par de anões em A Boca na Cinza.)

Tomemos a seguinte passagem: «O inacabamento do mundo. […] por vezes o miúdo sentava-se numa pedra no meio da charneca e ouvia o mundo crescer: o restolhar de uma cobra, o levantar voo de uma perdiz, ainda hoje o mundo continua a crescer: pensa o velho deitado na cama: entra a enfermeira e o mundo cresce, move-se o gráfico no ecrã e o mundo cresce, as vozes no corredor fazem crescer o mundo, o nome escrito nas costas é um dos nomes do mundo, tantos anos depois reencontrara, reencontrara-o, a corrida na charneca» (op. cit., p. 83).

Com base neste excerto de Irradiante, o negro, depreende-se haver, por um lado, um menino e o mundo da sua infância, errando por entre a indómita inquietude das coisas em seu redor (animais, plantas, vozes, movimentos, encontros); por outro lado, um velho estendido numa qualquer cama de hospital, com o corpo ligado às máquinas, perfurado por tubos e adesivos na pele. Este sujeito, sem nome, torna-se indiscernível de toda a envolvência hirta do espaço; dizer «corpo» é torná-lo equivalente àquele «lugar sem morte. Sem vida. Um depósito» (p. 65). Cercam-no enfermeiros, entrando e saindo do quarto com «uma viseira brilhante e uma máscara» (p. 16), reduzidos a gestos práticos, puramente funcionais, como máquinas perfeitas. Sabendo-se «prisioneiro da sua vida», este homem terá na memória involuntária o último reduto de libertação. Deixa-se apanhar, assim, por súbitos clarões da infância, a pobreza doméstica, a resistência íntima de fugazes instâncias materiais: «a janela da cozinha, um ramo de macieira que roça o vidro, o atear do lume, o estalar da lenha, uma mulher de costas» (p. 76).

E no centro disto tudo, como a imagem dialéctica por excelência: «Incandescente, o negro rodeia o bode» (p. 21). Animal de potentíssima carga mítica, impregnado de simbologia pagã, remanescente de sátiros, de Pã, totem da bestialidade sexual, figura demoníaca no imaginário cristão. O bode eclode no texto com uma força intempestiva: centrípeto, é em torno do vórtice aberto pela sua enigmática presença que o menino e o velho se enredam, simultaneamente unidos e deslaçados pela «fome um do outro» (p. 75); centrífugo, porque no mesmo movimento em que menino e velho são atravessados por feixes dessubjectivizantes (o texto expulsa a redução biografista, os jogos de espelhos e de identificação narcísica), o bode faz o texto explodir, escoiceia-o continuamente, disseminando-o entre as concentrações verbais assimétricas que corporizam a escrita de Rui Nunes.

Mas há algo mais a dizer sobre isto: «Este bode inventou-me até à minúcia mais extrema. E o meu passado foi essa invenção: o curral, os muros de granito, o empedrado irregular da quelha, a porta gateira. / O bode que nunca existiu ligou tudo isto / à noite que eu não sabia que era como a descrevo. / O bode inventou a minha infância. / E ofereceu-ma.» (p. 41).

Recordar o passado da infância não é, simplesmente, reviver o passado. Nem tão-pouco investir sobre ele um resgate ou uma salvação. Agora que o éden das ilusões fora espoliado pela nossa condição de deserdados espirituais, pesa sobre os movimentos retrospectivos uma clarividência amarga: a infância em estado de graça, a poalha dourada e mitificante da nostalgia, o heroísmo incandescente dos Gamas e Albuquerques, ou o passado como o grande museu onde nos pomos em bicos de pés e nos sonhamos egrégios – perante tudo isto, dizemos: «Não encontro. / Nada. / A memória é o assassino meticuloso do presente.» (O choro é um lugar incerto, p. 82).

Por sua vez, e logo em primeira instância, seria peremptório confirmar se o passado existe mesmo, a ponto de se tornar, na suposta flecha em voo do tempo, essa totalidade minimamente coesa que, por lances de nostalgia, se dispõe de imediato a acolher-nos. Se há um mito que a literatura fez por destronar da sua irradiação dogmática, é o mito do tempo: o tempo como uma coordenada existencial que se estenderia, linearmente, do enigma imperscrutável das suas origens até ao enigma de um futuro cifrado nos seus confins. Mesmo as investigações mais recentes no ramo da física (ocorre-me de repente o nome de Carlo Rovelli) propõem que arrisquemos pensar a aventura humana no universo destituindo-a do factor tempo, como se o tempo não existisse. É neste como se que a literatura – e não exclusivamente a fatia genológica que se designa por ficção – espraia a substância do tempo, quer dizer, torna-nos contemporâneos de tudo o que alguma vez tivera lugar ou existência no mundo. Torna-nos contemporâneos de Gilgamesh, cúmplices de Aquiles e Antígona, testemunhas do intestemunhável: Treblinka, Hiroshima, Sarajevo, Alepo, Lampedusa. Como se o tempo não existisse, somos bebés na noite funesta de Herodes, somos pagãos inocentes da decadência, somos Blimunda envelhecida roubando Baltasar às estrelas. E por isso, a este ritmo, «contemplar a vida humana quarenta ou dez mil anos é uma e a mesma coisa» (Marco Aurélio, Pensamentos, p. 85).

A imagem do bode construiu, «inventou», todo um cenário povoado por elementos da infância. Delineou em seu redor, qual desenho enfeitiçante (e não é isso uma imagem: um feitiço visual que impele a que creiamos nela?), este menino errando pelas moitas e este velho numa cama de hospital. E para que o passado acontecesse, foi preciso escrevê-lo, inventando-se uma língua capaz de dizer o que, até então, permanecia sem nome: «O bode que nunca existiu ligou tudo isto / à noite que eu não sabia que era como a descrevo.» (ibidem). Não era precisamente assim que T. S. Eliot falava dos poetas, que nunca sabem o que têm a dizer até ao momento em que, de facto, o dizem?

«O bode inventou a minha infância. / E ofereceu-ma.» (ibidem). Não há memória, portanto, não há esse sulco na história individual onde possamos encravar uma alavanca e interpor um desfalque entre o que somos, ou quem achamos ser, e essa exterioridade porosa, acolhedora (mesmo que traumática), que dizemos ser o nosso passado. Há, ao invés, a fome imemorial do esquecimento, o progressivo espaçamento dessa cesura que tudo apaga, o evento irredutível da entropia. Só o esquecimento acontece: é dele que irrompem o bode, o passado, a infância, no que há de irrefutável na dádiva. Tudo o que foge à nossa vigília, a bala perdida que nos espera quando estamos mais desvalidos.

Mas insistamos: porquê o bode? Porquê este e não outro animal? Que condições tornaram propícias a sua irrupção no texto, arrastando consigo toda esta constelação de elementos, a infância e a velhice? Há, na verdade, uma resposta. Melhor: uma reacção pessoal a um elemento muito concreto que terá «inventado», por assim dizer, não uma origem para este livro, mas uma passagem, uma dobra num «novo ciclo» da sua escrita. E esse elemento foi uma fotografia de Paulo Nozolino, pertencente a um conjunto inédito de trabalhos seus: «A sua primeira fotografia foi tirada na Grécia Antiga, no Pártenon [em 1972], e este conjunto de fotografias é uma espécie de volta ao início, ao Mediterrâneo e à Grécia que era a Grande Grécia, a Sicília. Nada é exatamente por acaso. Não fotografa muitos animais e está aqui um. Um bode. Logo um bode, que é um símbolo fortíssimo na cultura grega. Sou muito fascinado pelos ciclos. O bode está ligado a um certo renascimento na medida em que aparece associado à atividade sexual, aos ritos dionisíacos. Este animal abre outro ciclo.» (Dizer o Mundo, p. 9).

De um modo algo convulso, cavalgando o próprio turbilhão de ideias e associações que uma imagem potencia, podemos entrever nesta fotografia de Nozolino, por um lado, o traço que singulariza o seu modo de ver o mundo e, por outro, o que há nesse traço que exerce sobre Rui Nunes um fascínio tremendo, actuando, por vezes, como uma legenda visual da sua escrita – não no sentido de uma transposição mimética e intermedial, mas antes como o grafo de uma impotência, esse assinalar de uma distância intransponível entre um olhar e o mundo. Cada qual, ou com uma caneta entre os dedos, ou munido de máquina fotográfica, inscreve a sua impotência – «a exasperação do irremediável», como disse Rui Nunes a respeito do trabalho de Nozolino, mas também como diria Nozolino se comentasse a escrita de Rui Nunes (Paulo Nozolino, Ph.02, p. 127). Um admitirá que, não tendo queda para as palavras, se socorre do rapto fotográfico; outro, quase cego, consegue apenas aceder a um olhar no confronto com as palavras (aliás, de Rui Nunes se poderia dizer o que Didi-Huberman notou sobre Rilke: «É fazendo das suas palavras olhos que o poeta […] cria imagens», Falenas, p. 164). De resto, falar da fotografia de um ou da escrita de outro desagua numa certa indiscernibilidade, como dois afluentes de um rio: o olhar cerrado no chão, a impureza das coisas ínfimas, a consciência absolutamente despojada dos grandes desígnios da arte ou do sublime. «Decadência é o nosso caixote do lixo todos os dias», assinala Nozolino, em entrevista; «é a patine, é o bolor, é a ruína. São essas coisas que são fascinantes» (Electra, n.º 15, p. 138).

Tanto o golpe do flash fotográfico quanto a quebra na linearidade sintáctica escovam a realidade de trás para frente, «a contrapelo», como exigia Walter Benjamin do historiador, assim como do artista. De certo modo – o modo possível, o modo mais próximo de quem nunca alcança o que procura para que nunca cesse de procurar –, fazem eclodir súbitas irrupções de violência para que a violência do real não se desrealize num bálsamo de justificações, numa legendagem acomodatícia, numa forma anestética de impostura (chamar os bois pelos nomes: a transparência, a clareza da linguagem informativa, a moral da fábula, a catequese do romance; na esteira de Deleuze, é urgente «arrancar uma imagem aos clichés e virá-la contra eles», apud Didi-Huberman, op. cit., p. 310). O que desejam, se desejo é: que a violência da imagem e a violência da escrita continuem a irradiar o mal, a destruição, o «abismo da história» (Valéry). O anónimo nas vozes silenciadas e nos cadáveres sem rosto, ainda por vingar, contra «a iníqua alegria dos sacanas» (Rui Nunes, Nocturno Europeu, p. 28).

A nitidez obscura deste bode: corpo branco do animal contra o fundo negro do chão, pedregoso e sujo. Mas só a luz existe; o resto é anestesia, a teia equívoca dos nomes onde a vida se enreda para apaziguar o medo do que não conhece: «[…] o negro das coisas são metástases das trevas? ou as trevas são metástases do negro das coisas? Não sei.» (Irradiante, o negro, p. 8). Existe a luz, o disparo do flash, essa quase inocência: clarão matutino cuja brevidade contém, ou imagina, todas as manhãs do mundo, o gesto inicial da criação, o Big Bang. Existe o bode, a reactividade instintiva do animal, o elo indivisível entre o imprevisto, o acidental e a violência. Esse halo arcaico do bode, que Rui Nunes entende como uma sobrevivência da Antiga Grécia, emana uma espécie de alegria malévola, de risada daninha: de repente, o animal ergue-se com as patas dianteiras, devém um sátiro, convida à dança e a uma orgia negra. De repente, algo absolutamente extraordinário interrompe a mais banal das rotinas. E é sempre assim: por entre o refugo da imanência, na moagem dos dias, alguma coisa acontece de repente, fulgurante e banal.

Dizer o óbvio: não foi, de certeza, a primeira imagem de um bode vista pelos parcos olhos de Rui Nunes em 76 anos de vida. Mas foi esta fotografia que o moveu, foi este o bode que abriu no coração da imagem o que há de fulgurante numa evidência, a malícia de um curto-circuito, a sua força clandestina. Como se houvesse na imagem qualquer proibição sagrada, qualquer coisa que não devêssemos olhar. E daí: «A alegria de ir, há quanto tempo não se lembrava da palavra alegria, surgiu como objecto roubado, por ele? por quem?, manchado de outras mãos, todas as mãos dos outros, […]» (idem, p. 64). E daí: «Há fotografias que têm de ser roubadas. Porque às vezes acontecem tão depressa que não temos alternativa» (Nozolino, Electra, n.º 15, p. 146).

Foi esse bode, foi o seu aparecer não premeditado, que apanhou desprevenido o olhar de Rui Nunes, o pensador-criador-poeta Rui Nunes, respigador insensato, sismógrafo inveterado do negro irregular da ruína. Apanhou-o desprevenido – a ele e a um passado, a um menino na infância, ao gonzo rangente de um portão, ao som quebradiço de um galho. Esquecido de si, nesses vagos momentos de alegria que, de tão breves, parecem roubados à eternidade. Vagos instantes em que não vivemos: somos vividos. 

  1. [pontas soltas]

«Sobrevivemos assim, quando nos tornamos personagens de todos os livros que lemos, quando entramos no palácio da duquesa de Guermantes, quando olhamos o nosso corpo transformado numa espécie monstruosa de barata, quando atravessamos, ao lado de Raskolnikov, uma ponte de São Petersburgo, quando nos aproximamos da morte com o terror de Ivan Illich, quando percebemos a linha subtil que separa aquilo que podemos daquilo que não podemos conhecer, quando pressentimos que a dor é intransponível, identifica-nos como uma impressão digital. E nunca poderá ser partilhada.» (Rui Nunes, Suíte e Fúria, p. 87)

«Fotografar tem de ser muito rápido, não pode haver conversas. É um trabalho de silêncio, de paciência, de introspecção. […] Porque atravessamos o mundo como uma sombra. Atravessamos o mundo, ficamos só nalguns pedaços dele. Ficam fotografias, ficam estas coisas que são tão fantásticas, por isso é que é maravilhoso continuar a fazê-las. Porque não possuímos nada. Nós captamos para depois dar a ver. A fotografia é uma arte muito generosa. É uma arte que está muito ligada ao conhecimento, que mostrou muitas coisas a muita gente que não podia chegar lá. Foi a arte que fez o retrato de homens que antigamente não podiam ser retratados. Foi uma arte democrática, a arte que fez do retrato uma coisa acessível a todos.» (Paulo Nozolino, Electra, n.º 15, p. 148)

«Hoje pensei: o que devo eu fazer, um homem velho? Tenho poucas forças, que me vão faltando de maneira notável. Várias vezes na minha vida achei que estava perto da morte. E, coisa tola, esquecia, procurava esquecer isso – esquecer o quê? […] Já está provado que morrerei. Essa é agora, e sempre foi, a minha tarefa. E é preciso cumprir essa tarefa o melhor possível: morrer, e morrer bem. A tarefa está à tua frente, nobre e inevitável, e tu à procura de uma tarefa. Isto foi para mim uma grande alegria. Começo a habituar-me a olhar a morte, a agonia, não como o fim da tarefa, mas como a própria tarefa.» (Lev Tolstoi, 18 de Janeiro de 1906, Os Últimos Escritos, p. 286)

«Procurava o seu habitual medo, o anterior medo da morte e não o encontrava. Onde está ela? Qual morte? Não tinha medo nenhum, porque também não havia morte. / Em lugar da morte havia uma luz.» (Lev Tolstoi, A Morte de Ivan Ilitch, p. 111)

«Qual o sentido desta pergunta? o caminho de se perder ou de não se perder é o mesmo, saber que se perdeu ou que não se perdeu: eis a esperança: estou perdido, e procuro, não estou perdido, e continuo, […]» (Rui Nunes, Irradiante, o negro, p. 83)

  1. [entretanto]

(Passo por um bando de adolescentes, na típica idade da parvalheira, o ruidoso festim das galhofas por tudo e por nada. Ouço de longe o estrelar das risadas, percebo de longe o rugir dos amassos. Há em tudo aquilo uma tão alegre quanto furiosa displicência, talvez o retrato mais fiel da vida se acaso a vida, nas nossas costas, se desenhasse a si mesma, distraída de si. Adiante. No preciso momento em que me cruzo com eles, escuto isto numa voz enrouquecida, amarfanhando a máscara na boca: «O tesão de mijo da manhã ‘inda não me passou!» Não é só o pícaro da graçola em si, nem o calão sexual, nem sequer a formulação «tesão de mijo da manhã» que, de repente, agora que escrevo, tem assim uns ares de sobrevivência poética à la Fernando Assis Pacheco. A beleza disto é proporcional ao desafogo espontâneo com que a frase foi dita e, em simultâneo, à absoluta contingência de eu ter estado no sítio xis e na hora agá para ser o ouvinte afortunado de semelhante demonstração de afecto. É que não tenhamos dúvidas: a galhofa, o desmazelo lírico de tiradas afins, o à-vontade sem caução, os corpos a monte pela rua acima, a amizade assim a quente, a circunstância de ser domingo, tudo isto, tudo junto – é belo, é comovente, e acredito que faça mais pela paz do que qualquer «Imagine» de um John Lennon na boca dos nossos ilustres burocratas, debaixo de circunspectos holofotes, cortando fitas, lambendo cus. Cinco ou seis miúdos, embrulhados em kispos, num retalho de som e fúria, irradiando nada menos que a vida. De falcão no punho, entram no real abrindo caminho a outros, ao que há de inegociável na paz. Uma paz menos abstracta, menos cínica, menos alcoviteira da falsa consciência. Qualquer coisa assim, de uma outra substância: o que fica intacto na amizade quando já não se crê em nada.)

Referências bibliográficas

 AA.VV., Série PH. 02 – Paulo Nozolino, textos de Sérgio Mah e Rui Nunes, Lisboa, INCM, 2018.

João Lobo Antunes, «Relendo a Morte de Ivan Iliitch», Um Modo de Ser, 6.ª ed., Lisboa, Gradiva, 1997, pp. 113-29.

Marco Aurélio, Pensamentos, tradução, prefácio e notas de João Maia, col. Biblioteca Editores Independentes, Lisboa, Relógio D’Água, 2008.

Alexandra Carita, Dizer o Mundo. Conversas com Rui Nunes e Paulo Nozolino, Lisboa, Relógio D’Água, 2021.

«Atravessamos o mundo como uma sombra», Paulo Nozolino, entrevista por João Pacheco, Electra, n.º 15, Inverno 2021-22, pp. 128-158.

Gilles Deleuze & Claire Parnet, Diálogos, tradução de José Gabriel Cunha, Lisboa, Relógio d’Água, 2004.

Georges Didi-Huberman, Falenas. Ensaios sobre a aparição, 2, tradução de António Preto, Eduardo Brito, Maria Pinto dos Santos, Rui Pires Cabral, Vanessa Brito, Lisboa, KKYM, 2015.

______, O que nós vemos, O que nos olha, tradução de Golgona Anghel e João Pedro Cachopo, Lisboa, Dafne, 2011.

Maria Gabriela Llansol, O Texto-Catarina, Lisboa, Sr Teste, 2020.

Luiza Neto Jorge, Poesia, organização e prefácio de Fernando Cabral Martins, Lisboa, Assírio & Alvim, 1993.

James Joyce, Ulisses, tradução de Jorge Vaz de Carvalho, Lisboa, Relógio D’Água, 2015 [1922].

Rui Nunes, Sauromaquia, 2.ª ed., Lisboa, Relógio D’Água, 1986 [1976].

______, O Choro É Um Lugar Incerto, Lisboa, Relógio D’Água, 2005.

______, Ofício de Vésperas, Lisboa, Relógio D’Água, 2007.

______, A Mão do Oleiro, Lisboa, Relógio D’Água, 2011.

______, Nocturno Europeu, Lisboa, Relógio D’Água, 2014.

______, Suíte e Fúria, Lisboa, Relógio D’Água, 2018.

______, No íntimo de uma gramática morta, Porto, Officium Lectionis, 2021.

______, Irradiante, o negro, Lisboa, Relógio D’Água, 2022.

Michel Schneider, «A morte de Lev Nicolaïevitch», Mortes Imaginárias, tradução de Bénédicte Houart, Lisboa, Cotovia, 2011, pp. 201-3.

Peter Sloterdijk, Tens de Mudar de Vida. Sobre Antropotécnica, tradução de Carlos Leite, Lisboa, Relógio D’Água, 2018.

______, Depois de Deus, tradução de Ana Falcão Bastos, Lisboa, Relógio D’Água, 2021.

George Steiner, Tolstoi ou Dostoievski. Um Ensaio sobre Crítica Antiga, tradução de Jorge Vaz de Carvalho, Lisboa, Relógio D’Água, 2015.

Lev Tolstoi, A Morte de Ivan Ilitch, tradução de António Pescada, Lisboa, D. Quixote/Booket, 2008.

______, Os Últimos Escritos, tradução de António Pescada, Lisboa, Relógio D’Água, 2018.

 

Imagem de fundo: detalhe de São Francisco em oração (c. 1602-1604), de Caravaggio.

Fotografia final: Diogo Martins.

 

A escrita deste texto foi financiada por fundos nacionais do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito do projecto de pós-doutoramento «Ousar corromper: (o)caso retratístico em Rui Nunes» (referência: SFRH/BPD/114849/2016).

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Categorias: Cultura, Ensaio, Literatura

Acerca do Autor

Diogo Martins

Diogo Martins nasceu em 1986 e é natural de Nine, do concelho de Vila Nova de Famalicão. Doutorado em Teoria da Literatura pela Universidade do Minho, iniciou em 2017 um projeto de pós-doutoramento intitulado "Ousar corromper: (o)caso retratístico em Rui Nunes". Interessa-se por poesia, literatura, cinema e fotografia, e mais ainda pelas relações entre estas e outras artes.

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