O realizador de cinema Sério Fernandes, tal como José Saramago revelou certa vez, tem uma visão total e desempoeirada da sua obra artística e do seu legado cinematográficoe, assim, sabe que, passado o reino dos humanos nesta terra, o cosmos não saberá que Homero escreveu A Odisseia.
‘Mestre!? Jamais Mestre. Isto é Filosofia Prática.’
Também como os novíssimos e primitivos realizadores Glauber Rocha, Werner Herzog ou Rainer Werner Fassbinder, Sério Fernandes acredita que o processo, a vivência e a comunhão durante a feitura de uma obra de arte é o fulcro, jamais o resultado final. Como esses e não muitos mais, só dialoga com limites e abismos, sem meias verdades, uma questão existencial: uma coisa é uma coisa e não outra coisa: ou é arte ou é cultura: ou é Apolíneo ou é Dionisíaco: ou é vida ou é morte.
A obra de arte, questão (cinematográfica) de vida ou de morte
Limpar a merda toda de mais de cem anos de confusão entre a arte do cinema e o negócio do cinema; limpar a datação e os atavios argumentistas; limpar todos os acessórios, todos os efeitos, todos os filtros, todas a leis vãs, económicas e castradoras de uma invenção e de um meio gigantesco (o cinematógrafo) constantemente violado pelo pecado original do lucro, da ganância e do ego: eis a demanda de Sério Fernandes. Um meio incomensurável como o cinematógrafo não pode somente servir para contar «historinhas», tem de agarrar a eternidade, eis a moral. Como esses realizadores – Glauber, Herzog, Fassbinder – e não muitos mais, se a feitura de uma obra de arte é questão de vida ou de morte, tudo é permitido: roubos, empréstimos, mentiras, falsificações, amor; e em última ou primeira instância, a destruição do produto final; justiça poética: enterrar as latas de película de cinema num buraco do Porto, na terra Portuense, gesto matricial, será o acto derradeiro. Limpar (e libertar) a obra de arte e o criador da potência maléfica do Tema, do compromisso, da utilidade, da responsabilidade.
O olhar de Sério Fernandes, síntese cósmica da criação cinematográfica
Convocar os irmãos Auguste e Louis Lumière, Aurélio Paz dos Reis, e ficar-se nessa modernidade definitiva, para tudo ser revolucionário, como na primeira vez, como na invenção, de olhar limpo. Uma síntese cósmica onde um único Quadro Artístico Cinematográfico (fixo, de câmara na mão ou no ombro, plano sequência de um minuto – eis uma tentativa de definição impossível) tem de comportar todos os milhões de planos cinematográficos que sonhamos e rejeitamos, todo o cinema e não-cinema. Nesse quadro cinematográfico estão todas as paralelas de D. W. Griffith, todas as dialécticas de Serguei Eisenstein, toda a montagem; todas as gestas e toda a música de Luís de Camões («Camões, o que vale a pena ler na cadeira de “realização cinematográfica”, a par de Charles Baudelaire e de Pier Paolo Pasolini, é isto que tenho para vocês lerem», S.F); nesse quadro cinematográfico tem de estar obrigatoriamente a experiência do brilho e da publicidade e do espectáculo em fora-de-campo que ele (e muitos) praticou antes da morte e da ressurreição. No quadro cinematográfico concebido por Sério Fernandes – e oferecido de mãos vazias à irmandade dos seus alunos, essa comunhão e coro grego – deseja-se alcançar o princípio do universo, límpido, claro, intacto; e que não sirva para nada senão para esse fim, o da criação cinematográfica.
‘O Mestre da Escola [de cinema] do Porto’ sem problemas de consciência
Em Sério Fernandes – O Mestre da Escola do Porto, de Rui Garrido, tudo isso nos é provado e legado com a única das certezas definitivas e lúcidas: a paixão. Quem assim, no universo do cinema, se expressa e ama, só pode estar certo. Ao mesmo tempo que se assume o absoluto, assume-se a morte, a consonância dos vivos com a consonância dos mortos, numa rotação perfeita. Sério Fernandes ama a lua, o sol, os animais vivos, os animais mortos, o aluno mais interessado, o aluno mais desprezado; o épico, os humilhados, os ofendidos, o complexo, o invisível: de igual para igual. Sério Fernandes – O Mestre da Escola do Porto traça o mesmo percurso ascendente da fabulosa vida de Sério Fernandes: da via-crúcis e da escuridão até aos altos e à claridade solar sem problemas de consciência.
Sem problemas de consciência: entre tantas vidas dentro de vidas e filmes dentro de filmes, é por isso que a existência de Sério Fernandes – O Mestre da Escola do Porto é essencial; mesmo ou pela contradição ao mestre, mesmo ou pelo forçar do registo e da confissão para lá da memória ou do mito a que Sério Fernandes estaria sujeito caso esta obra cinematográfica não estreasse comercialmente. No entanto, sem problemas de consciência.
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