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“Há pessoas que mostram os outros / e por isso estão sós. / Na rua, um carro ou outro / prolonga-lhes o abandono […]”. Estas linhas de Rui Nunes, que reli recentemente em A Mão do Oleiro (2011), saltaram-me à vista na sequência de ter assistido ao filme Todo lo demás (Tudo o Resto, 2016, México), de Natalia Almada, no Close-Up – Observatório de Cinema. A par de Viejo Calavera (de Kiro Russo, 2017, Bolívia), La obra del siglo (de Carlos Machado Quintela, 2016, Cuba e Argentina), Atrás hay relámpagos (de Julio Hernández Cordón, 2017, Costa Rica e México), La Soledad (de Jorge Thielen Armand, 2016, Venezuela) e Zama (de Lucrecia Martel, 2017, Argentina), o filme Todo lo demás integra uma secção específica que “[…] procura refletir sobre a criatividade e a diversidade dos cinemas latino-americanos, independentemente das convulsões políticas, económicas e sociais da história recente dessa região”, lê-se no dossiê do Close-Up (e é de salientar, sobretudo para os mais distraídos quanto ao que por Famalicão se vai fazendo com sensibilidade e inteligência, que cinco destes filmes não conheceram outra estreia comercial em Portugal que não a que se deu aqui, na Casa das Artes, entre 13 e 20 deste mês).

Mas retomemos o ponto de partida, a citação de Rui Nunes: “Há pessoas que mostram os outros / e por isso estão sós.” Em Todo lo demás, Dona Flor (Adriana Barraza) dá o corpo, no que este tem de intrínseca e literal veemência (sobretudo, quando dispensa todos os histrionismos e lugares-comuns), a uma mulher só, radicalmente só. Sozinha no trabalho, no metro e em casa, tendo um gato como única companhia. Mesmo quando as circunstâncias do ofício ou dos espaços públicos implicam que ela se cruze e se imiscua com outras pessoas, ela está sempre só. Se “mostra os outros”, é porque Flor detém nas mãos o poder (simbolicamente reconhecido) de lhes mostrar o seu anonimato como condição, exibindo-os, portanto, na sua nudez e fragilidade enquanto peças do puzzle estatal. Isto é, durante o dia, Dona Flor confunde-se eximiamente com a paisagem burocrática na qual trabalha, sentada na sua secretária, atendendo clientes. Pede os documentos, examina-os com olhar de laser, faz as perguntas necessárias, sem nunca levantar a voz, nem mostrar enfado. Detém-se nos detalhes da máquina sistémica que, depois de Kafka, nos transformou a todos em insetos esmagáveis, em risco de iminente invisibilidade (social, política, simbólica): isto passa, isto não passa; isto está a preto, tem que estar a azul; assine aqui, mas não ultrapasse o retângulo. Ultrapassou, não dá. Preencha tudo de novo e volte amanhã.

Por um lado, o triunfo de Adriana Barraza como atriz passa por não esmorecer este retrato na caricatura fácil e simplista. Podemos odiá-la pelo tipo de máquina que lhe compete representar, mas a sua inatacável convicção, o seu metódico escrutínio, o sentido de fidelidade à presença com que ocupa o seu lugar, conferem ao que vemos uma feição reconhecivelmente humana. Não formulaica, mas humana, mesmo naquilo que nos parece impiedoso: o agir como uma profissional. E esse triunfo performativo, por outro lado, é corroborado pelo modo como se dá a passagem entre as supostas duas faces desta mulher, que serviriam de suporte à polaridade estrutural da narrativa: a face profissional, que se apresenta incoercível, e a face íntima, na solidão das paredes domésticas, quando, de gato ao colo, cede à meiguice pueril e às carícias. Uma passagem que não segrega esses dois lados, mas, pelo contrário, que os põe em natural convergência, como se um não fizesse sentido sem o outro.

Não se trata, portanto, de um óbvio dissídio interior: nem óbvio para nós, como espectadores, nem óbvio para Flor, que várias vezes se olha ao espelho e parece perder-se nesse olhar, como se fosse mais real a imagem embaciada nos espelhos do que o rosto que neles se mira, ou se procura. O que o seu olhar vê nunca se deixa apanhar totalmente, nunca se desnuda por inteiro – paira na atmosfera do filme ou, se quisermos, flutua, naquilo que seria o desejo consumado da protagonista: superar a sua fobia à água da piscina municipal. Porquê esse medo, o que é que explica D. Flor paralisar diante a água? Não sabemos. Apenas desconfiamos, ou imaginamos, ou cedemos ao ritmo desacelerado de D. Flor, ao tempo vivido segundo a segundo, e permanecemos aí, com ela, habitando o coração do silêncio, a agonia indizível de estar no mundo e sentir que não lhe pertencemos, que não estamos realmente nele, aqui e agora.

A discreta veemência de Adriana Barraza (que recordamos, provavelmente, de Babel, filme de 2006, com o qual foi nomeada ao Óscar de melhor atriz secundária) passa pelo modo como nos dá a ver a solidão, desdobrando-se aos nossos olhos, fazendo-se carne, silêncio, respiração. Mas não a solidão nos seus traços mais comuns (embora não menos devastadores); antes a solidão no seu absoluto. “Solidão”, escreveria o terrível Jean Genet, “não designa estatuto de miséria mas secreta soberania, nem profunda incomunicabilidade mas conhecimento mais ou menos obscuro de uma singularidade intocável” (in O Estúdio de Alberto Giacometti, p. 35). Diria que Adriana Barraza expõe essa singularidade intocável – “invariavelmente uma ferida”, acrescenta Genet no mesmo texto –, até ao momento (sobretudo, um momento-chave no regresso a casa depois de mais um dia de trabalho) em que sente não poder continuar mais assim. Muito subtilmente, começamos a ver despontar, aqui e ali, pequenos sinais de uma transformação em curso (de notar o corpo da atriz enquanto jaz na cama, a luz em sucessivo crescendo e decrescendo, como em estado larvar, seja para aquiescer a alienação em que vive, de que as noites insones seriam sintoma, seja para anunciar que algo mais está para vir, como um pressentimento). Nesses momentos em que captamos súbitas diferenças no ethos de Dona Flor, vemo-la tentando ceder um pouco mais ao mundo e às pessoas que se sentam à sua frente, após duas horas na fila de espera, na vaga esperança de, pelo menos, e sem ademais constrangimentos, verem resolvida uma mera formalidade burocrática. E tudo o resto é a vida.

Mas tudo o quê? Que resto (lo demás) é esse que vem assinalado no título? Note-se que a condição feminina não é um dado despiciendo no filme. A dado momento, há um ritual que se cristaliza no espectador: D. Flor abre a bolsa, retira um pequeno estojo florido e, deste, retira um espelho, com o qual retoca a maquiagem. À parte um jogo de olhares silencioso com um taxista, nada mais há no filme que nos incite a pensar a personagem num contexto de sedução, com a vaidade ao serviço do gozo alheio. Mas a insistência na imagem e nesses significantes (espelho, batom) inscrevem aquele corpo específico numa realidade mais ampla, a da mulher no México, que o filme nos mostra quase sempre em diferido, ou como se de um cenário envolvente se tratasse – e que, fingindo passar despercebido, grita silenciosamente pelo direito a ter voz e a ser visível. Refiro-me, por exemplo, às viagens que D. Flor faz de metro, onde os corpos se amontoam e se comprimem, anónimos e sem expressão; e o contraste que se abre entre a absorção de Flor nos seus afazeres em casa (o fetiche pelas listas contendo os nomes de todas as pessoas atendidas na repartição pública) e a voz da televisão na sala, qual ruído de fundo, noticiando atrocidades cometidas contra as mulheres do seu país.

E daí, de novo, a premência destas palavras: “Há pessoas que mostram os outros / e por isso estão sós. / Na rua, um carro ou outro / prolonga-lhes o abandono […]”. Esse abandono que já não se veste, porque passou a integrar a própria (in)visibilidade do corpo (primeiro, feminino, mas depois universal e humano), o seu modo de se ausentar no meio dos outros. É contra esse destino que, gradualmente, Flor parece prometer rebelar-se. Ou, pelo menos, erguer-se pouco a pouco do fundo resignado que converteu em rotina. E se não é capaz de o fazer sozinha, consigo mesma, no final do filme alguém trata de lhe mostrar, ostensivamente, que o abandono de cada um(a), prolongando-se, acaba por tocar noutro abandono, e por ser tocado, cada qual criando as suas réplicas, contagiando-se mutuamente.

É essa a força do encontro inesperado que assoma à superfície da tela, num incomensurável momento de ternura (e que, assim de repente, a uma escala mais tímida mas não menos poderosa, me recorda uma cena do romance Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, que o realizador brasileiro Fernando Meirelles adaptaria depois ao cinema): no balneário, após mais uma tentativa gorada de mergulhar nas águas da piscina, Flor é surpreendida por uma mulher que, aproximando-se, assim, sem qualquer aviso, decide esfregar-lhe as costas. Não trocam uma única palavra, percebe-se não ser preciso – “[…] e aí temos a comoção a subir irresistível à superfície da pele e dos olhos, a estalar a compostura dos sentimentos, às vezes são os nervos que não podem aguentar mais, suportaram muito, suportaram tudo, era como se levassem uma armadura” (Saramago, p. 267). O silêncio entre as duas mulheres chega-nos cheio, preenchido pelas vozes de fundo, pela espessura do vapor, pelas outras mulheres que se lavam sob os chuveiros. Num só gesto, é toda uma solidão coletiva, geracional, que se redime: como se um pequeno clã se formasse ali, solidário e compassivo, pronto para sarar as feridas e ajudar com tudo o resto.

 

*

(coda)

“há nas casas uma pobreza tão grande que por mais que as enchamos de mesas, quadros, livros, cadeiras, tapetes, estão sempre vazias. Aquilo que vejo, ao entrar numa sala, é o vazio a espreitar por entre os móveis, recortado nas paredes pelos quadros, camuflado nas janelas pelas cortinas, o vazio das portas fechadas e o vazio das portas abertas: o vazio que esconde um vazio, e o vazio que mostra um vazio, também as pessoas carregam essa falta, logo atrás dos olhos, ou nos olhos, nas pupilas, e que se expande quando nos aproximamos delas e vemos a desaparecer tudo o que chamamos humanidade, até surgir a abertura de um poço, ou um furo de sovela, é por isso que os carrascos matam, porque das vítimas conhecem unicamente esses buracos circulares, como eu das casas só conheço o vazio que as habita, talvez eu nada mais tenha aprendido a ver” (Rui Nunes, A Mão do Oleiro, p. 42).

“Não podem imaginar que estão além três mulheres nuas, nuas como vieram ao mundo, parecem loucas, devem de estar loucas, pessoas em seu perfeito juízo não se vão pôr a lavar numa varanda exposta aos reparos da vizinhança, menos ainda naquela figura, que importa que todos estejamos cegos, são coisas que não se devem fazer, meu Deus, como vai escorrendo a chuva por elas abaixo, como desce entre os seios, como se demora e perde na escuridão do púbis, como enfim alaga e rodeia as coxas, talvez tenhamos pensado mal delas injustamente, talvez não sejamos é capazes de ver o que de mais belo e glorioso aconteceu alguma vez na história da cidade, cai do chão da varanda uma toalha de espuma, quem me dera ir com ela, caindo interminavelmente, limpo, purificado, nu.” (José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira, p. 266).

 

Referências:

 

Trailer do filme Todo lo demás: https://www.youtube.com/watch?v=s7hHbKxwNJg

Rui Nunes, A Mão do Oleiro, Relógio D’Água, Lisboa, 2011.

Jean Genet, O Estúdio de Alberto Giacometti, trad. Paulo da Costa Domingos, Lisboa, Assírio & Alvim, 1988.

José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira, 10.ª ed., Lisboa, Caminho, 2006.

Página oficial do Close-Up: http://closeup.pt/

(Imagens: fotogramas do filme Todo lo demás)

 

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