Já não sei ao certo onde li isto: que a intimidade mais profunda começa e acaba na pele (qualquer variação disto, mais coisa menos coisa). E essa profundidade – ou a imagem que fazemos do que é a profundidade, o que percebemos como o lado íntimo, esse avesso do corpo onde o segredo supostamente se desvela – tem ocupado um lugar-chave no rosto desde que a arte se diz arte. Daí que, independentemente das imensas modulações e quadrantes históricos, culturais e sociais que pautaram a sua evolução, o retrato enquanto género específico privilegie o rosto como lugar onde se concentra a sua maior e mais explícita razão de ser.
Pensa-se no retrato e espera-se a imagem de um rosto. E dessa expectativa deriva, em boa parte, a força tensa que atravessa o retrato, a ênfase dada ao olhar e a nossa inclinação instintiva para cruzar os nossos olhos com os olhos do retrato. (Basta imaginar um retrato no qual não haja um par de olhos para que nos sintamos, de súbito, sem chão sob os pés. E essa experiência diz muito daquilo que reconhecemos como a nossa humanidade, com essa súbita deflagração do inumano que habita, não tanto em presumíveis abismos insondáveis e inconscientes, mas na mais desabrigada visibilidade do corpo, da cara, dos lábios, dos olhos, de um quase impercetível vinco de pele que, de súbito, ilumina toda uma expressão facial e nos atira para o desassossego.)
O rosto, segundo José Gil, é um “mapa móbil”. Nada é definitivamente objetivo num rosto. Nele tudo se baralha, tudo se adensa. Dá-nos pistas em falso, falsos alarmes, sentidos que nos desorientam. E, por essas e ainda outras razões, fascina-nos, desarma-nos, reinventa os nossos modos de olhar o outro, os outros – e a nós mesmos. Da pintura ao cinema, da performance à escultura, sem esquecer a literatura e a poesia, capturar a intensidade do rosto, o fator-relâmpago de uma emoção, a imediata duplicidade de um olhar, algures entre um instante de calma e outro de irreversível e avassaladora crise – eis o que tem pautado a longa história da arte retratística, agora ampliada pela exposição Fantasmagoriana, composta por sete retratos de Adriana Molder (n. 1975), inaugurada no sábado passado, dia 22 de setembro, na galeria Ala da Frente, em Famalicão.
Quando lhe perguntei se havia alguma razão especial pela escolha do género retrato para dar corpo às suas visões, a resposta foi muito clara: porque é o mais próximo do que é o humano. Entenda-se (entendo-o eu, assim, entenda-se): o que é humano abeira-se daquilo que se percebe como rosto, do rosto como convite à proximidade, ao encontro, o princípio de qualquer (re)conhecimento (é esse, aliás, o princípio-base da filosofia ética de Emmanuel Lévinas: o rosto individual como expressão da condição vulnerável e única do sujeito, de cada indivíduo, não subsumível em idealidades, abstrações ou generalizações). E é, nessa medida, que se torna intrigante a forma como o rosto tem sido percebido e transformado ao longo da arte retratística: no caso de Molder, a familiaridade figurativa dos rostos está toda ali – pelos contornos, pelo desenho das bocas e dos olhos, aceitamos estar convictamente diante rostos –, mas o estilo com que são apresentados, em acrílico sobre tela, acentua neles tensões dramáticas, nuances grotescas, uma certa mania demencial, com movimentos carregados de cor que evocam o expressionismo alemão, com particular ênfase o do cinema. Qualquer coisa que empurra uma personagem – com ênfase nessa questão de persona, da máscara, da pose exacerbada e possuída pela loucura – para uma situação de perigo, um momento de flagelo, a sensação de uma ameaça que, incontrolável, está prestes a cumprir-se e a infligir-se em cada um destes rostos.
É, aliás, a muitos rostos do cinema que Adriana Molder vai repescar imagens para lhes acrescentar as suas. A artista reconhece o imenso fascínio que nutre pela sétima arte, independentemente de se tratar de cinema erudito ou de um qualquer blockbuster de verão: não há nenhuma condição apriorística que impeça um filme com o Schwarzenegger, só por ser o Schwarzenegger, de suscitar uma impressão fortíssima, a partir de um enquadramento, um trejeito de fala, a cor de um tecido (o exemplo do ator foi evocado pela própria Molder, em conversa; e, muito a propósito, o crítico Fernando Guerreiro, nome premente em abordagens transdisciplinares, falava da sua paixão pelas imagens em movimento nestes termos: “Gosto de filmes, interessam-me. Mas os filmes são situações, são experiências. Um filme médio ou mau mesmo pode ter um flash que nos atira para o infinito. E outro ser muito bom e manter-nos sempre num horizonte. Na medida do possível, devemos tentar estar abertos a tudo.”).
Em 2015, entrevistada por Anabela Mota Ribeiro, Adriana Molder expunha o processo de captura das suas imagens da seguinte maneira: “É sempre um conjunto de características, que tanto podem ser físicas como fazerem parte da construção duma certa personagem que me interessa, pelas mais variadas razões. É sempre um mistério aquilo que me leva a querer possuir e traduzir um rosto, mas quando encontro aquilo que quero, é muito claro. É isso, tem de me impressionar.”
Nesta série em particular, a impulsão para os retratos partiu sobretudo da leitura de um conjunto de contos alemães que terão influenciado Mary Shelley a escrever Frankenstein, o célebre clássico de terror que comemora, este ano, os duzentos anos da sua publicação. Ao contacto com esses textos e com as visões que a leitura lhe suscitou – os primeiros volumes do Gespensterbuch de Johann August Apel e Friedrich Laun, incluindo contos de Johann Karl August Musäus e Henrich Clauren –, Molder acrescentou as suas visões, dando-lhes corpo nesta série. E, agora que os retratos estão expostos, o que interessa à artista tem mais que ver com as imagens que cada espectador cria ao contemplar estes retratos, a relação que caberá a cada um fazer, intensificar, interrogar: “Longe vai o tempo em que convivíamos com retratos e estes ou nos estarreciam ou nos protegiam, mas nunca nos deixavam indiferentes. Estes sete retratos são também sete momentos inspirados nos contos que se seguem, aos quais procurei dar aquilo que mais procuro, a intensidade, onde o leitor pode conseguir reconhecer-se em rostos que, tal como os fantasmas, não são mais do que vestígios de emoções passadas.”
Será lançado muito em breve, sob a chancela das edições Documenta, o livro-catálogo referente a este conjunto de trabalhos, que incluirá uma tradução portuguesa dos referidos contos alemães. A exposição Fantasmagoriana poderá ser visitada na galeria municipal Ala da Frente, na rua Adriano Pinto Basto, até 19 de janeiro do próximo ano.
Referências:
Fernando Guerreiro: “Acho que os clássicos são grandes punks”, À pala de Walsh, 26 de fevereiro de 2018, http://www.apaladewalsh.com/2018/02/fernando-guerreiro-acho-que-os-classicos-sao-grandes-punks/.
Entrevista a Adriana Molder concedida a Anabela Mota Ribeiro disponível em https://anabelamotaribeiro.pt/adriana-molder-190391.
Blogue da editora Documenta e das edições Sistema Solar: http://blogue-documenta.blogspot.com/.
Imagens: Diogo Martins
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