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‘O Nosso Homem’ de Pedro Costa desprende a força irredutível do amor

 

 

O Nosso Homem (2010) encerra mais uma fase bastante especial da obra do cineasta Pedro Costa, composta por várias curtas-metragens em remontagem de sentidos. Este ciclo do realizador acontece depois das durações, amplitudes e respirações largas de No Quarto da Vanda (2002) e Juventude em Marcha (2006), e prepara Cavalo Dinheiro (2014), imenso fresco estilhaçado pelas memórias cada vez mais longínquas dos seus protagonistas, calibrado num ritmo seco e duro. Pedro Costa começou na realização em 1989, com O Sangue, conto de irmãos largados ao mundo, onde as questões eternas do Pai, do amor e da descoberta nascem de novo num preto e branco lancinante, que acentua os horrores e o lado fantástico dessa demanda iniciática entre sonos convulsos e vigílias fundas, “longa noite da infância que abraça tantos filmes e tantos livros americanos”, nas palavras do próprio.

Ilha de(o) Fogo, Cabo Verde

Pagas as dívidas sentimentais da juventude, Pedro Costa partiu alguns anos depois para Cabo Verde, no intuito de lá forjar uma espécie de remake de I Walked with a Zombie, demencial pesadelo de Jacques Tourneur passado nos venenosos trópicos, a remeter para Jane Eyre de Charlotte Brontë. Nessa Ilha do Fogo, onde se instalou e que irrompe a um tempo sufocante, desmesurada e fechada em si, o argumento e a planificação típica deixaram de fazer sentido, as grandes equipas técnicas também, e o que se filmou foram grandes-planos de mulheres e deambulações, sussurros e uma paisagem impossível de domar. Ou seja, Pedro Costa perdeu-se para se reencontrar, pois tudo o que fará depois começou em Casa de Lava.

Filmar pessoas-personagens de vidas romanceadas

Regressado a Portugal o realizador viu-se em mãos com um sem número de cartas e de produtos naturais da terra, confiados a si para entrega aos familiares de Lisboa. Encontrou um universo humano e estético em bruto e riquíssimo do qual nunca mais quis sair. Cheiros, cores e sensações inebriantes, dessas a que o cinema costuma fugir. Ossos (1997) marca então a sua instalação num território, as Fontainhas e os seus bairros circundantes, habitados pela comunidade Cabo-verdiana aí sobrevivente. Se Costa ainda começou por jogar à defesa, utilizando por exemplo o grande director de fotografia que o acompanhou na aventura anterior, Emmanuel Machuel, bem como uma aparatosa aparelhagem luminosa, logo se apercebeu do choque e do contra-senso imoral entre o que se filma e como se filma. Ossos foi no seu processo de “aprendizagem” tomado por uma escuridão, um poder de sugestão e um despojamento que escavou a revolução que se seguiria.

Com No Quarto da Vanda dispensou-se definitivamente as grandes equipas e meios do cinema dito industrial, para com os recentes e leves apetrechos digitais se aproximar realmente das pessoas, estando com elas todo o tempo necessário. Desse tempo, dessa disponibilidade incondicional para escutar as histórias de vida únicas e o quotidiano de um bairro, aboliu-se qualquer tipo de género ou fronteira cinematográfica, registando-se pessoas em vez de personagens, o seu movimento e por consequência o movimento do seu mundo, nunca deixando de lado um romanesco fortíssimo que brota da lembrança e do coração de cada um desses seres que vivem e habitam intensamente.

Em Juventude em Marcha aparece Ventura, figura capital e representativa de todo um povo e da sua condição, do passado e de uma altivez inerente, tão imenso como antes Vanda tinha sido íntima e resistente, construindo-se o todo numa grandeza que se explanou para lá dos quartos e do pequeno bairro em destruição, numa batalha épica entre o negrume das ruínas e o branco cegante de um novo mundo, em choques imprevisíveis pelo ecrã. No plano final convivem em equilíbrio cósmico o velho e sabido Ventura com a criança nova, numa suspensão que as curtas-metragens seguintes esclareceriam pelos interstícios dos mais cerrados segredos.

“Não há luz que ilumine tamanha escuridão” em O Nosso Homem

O Nosso Homem partilha então vários planos e mesmo sequências de Tarrafal e de Caça ao Coelho com Pau, os seus antecessores. O filme abre com um quadro de conjunto que ocupa uma boa parte dos seus vinte e cinco minutos, imóvel, duro e no escuro como o que é dito, onde uma Mãe e um filho, aglutinando as promessas da infância e a desilusão adulta, vislumbram um passado na sua terra natal, fazem uma cartografia familiar e afectiva, um estado das coisas político e uma denúncia feroz que, na sua extrema crueza e realidade, ostenta laivos feéricos. “Não há luz que ilumine tamanha escuridão”, diz a Mãe ambiguamente, pois tal escuridão já está lá e cá, de onde fugiram e onde fogem. A composição e fundo reenviam directamente para Casa de Lava.

Presença fantasmática de Ventura, Alfredo e José Alberto Tavares Silva

A partir daí andaremos com Ventura e com Alfredo por becos e baldios, vãos de escada e saídas de emergência, contando o segundo ao primeiro a sua derrocada, ainda pasmado e não percebendo como lhe aconteceu. Da sopa clandestina aos coelhos caçados com pau, a narrativa do velho torna-se a narrativa prometida a José Alberto Tavares Silva, o filho da abertura, tal como a história contada da refeição não paga e das consequências trágicas faz parte de Alfredo e de Ventura, os dois já mortos vezes demais por entidades tão abstractas como brutalmente corpóreas. Entidades que à semelhança do coelho nunca veremos, e que vão ostentando dimensões do mal em forma absoluta e fantasmática, imemorial e contemporânea, máquina fria e inimigo sem rosto responsável por todas as perseguições, misérias e genocídios a uma raça que como tantas outras corre o risco de ficar sem pátria, futuro ou dignidade. Mal que surge inteiro na rememoração comum. Para o punhal e a expulsão final fazerem ainda mais sentido agora, depois de Cavalo Dinheiro terminar com facas, cantos e promessas de justiça, pacificado e grave, avisando agora Ventura e todos os seus da mesma maneira como antes foram avisados e agredidos.

Para lá do caos, a força irredutível do amor e das formas cinematográficas

O Nosso Homem fala em muitos que são um só e só fala das coisas da nossa actualidade informativa, ou seja, de desemprego, de dinheiro, de medo ou de gente sem rei nem roque fugida de casa, mas ao invés de preferir a denúncia pela denúncia prefere trabalhar isso em correspondência formal, apelando a toda a luz da beleza e a todo o resguardado humanismo, longe do audiovisual pueril ou das parangonas demagógicas construídas pelo poder mascarado. O Nosso Homem transmite o poder das formas cinematográficas e a força irredutível do amor, para lá do caos que nos incutem à força. Poder, força e amor, que no percurso de Pedro Costa podemos ainda encontrar em Onde Jaz o Teu Sorriso? (2001), numa partilha e reforçar de convicções com Danièle Huillet e Jean-Marie Straub; ou em Ne change rien (2009), carta de amizade e protecção a Jeanne Balibar.

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Obs: este texto teve publicação original em LuckyStar – Cineclube de Braga, tendo sofrido ligeiras adequações editoriais na presente publicação.

Imagens: DR

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