Camille Claudel, com O Abandono, uma visão de rara sensibilidade, tanto artística, como humana, dá-nos a mão: os amantes estão sempre em equilíbrio instável.
Camille Claudel demonstrou, com as obras que restaram incólumes à fúria advinda do desespero que a levou a destruir algumas das suas esculturas, uma sensibilidade aguda, a raiar a dor, acerca do humano. Tal sensibilidade atinge o máximo de intensidade reflexiva nas esculturas em que associa o feminino e o masculino: no par, portanto. Numa actualidade em que se advoga pela igualdade entre os sexos, entretanto diluída na categoria do género que, na minha perspectiva, recobre como um manto mudo a experiência da diferença, afigura-se um exercício de enorme validade, tanto cognitiva, como sensorial, como ainda epistemológica, determo-nos na forma como Camille Claudel apresenta o par feminino/masculino. Cognitiva e sensorialmente, tal exercício permite-nos refinar a atenção, tão necessária às abordagens meticulosas da realidade; epistemologicamente, contribui para adensar as categorias que sustentam o nosso entendimento.
O Abandono trata-se de uma obra de beleza cortante: equilibrada no nódulo interior que é o sustentáculo de qualquer obra de arte, apesar do abraço entre os amantes nos sugerir a queda. Mas é também a queda que potencia o contágio e permite fertilizar o real; se cada um/a de nós permanecesse encerrado/a na sua cápsula dura de intocabilidade, então, ninguém mais nasceria para o mundo, não é verdade? Aqui, com Camille Claudel, vê-se tão bem que o homem, quem aparenta carregar a mulher, é ele próprio sustentado por ela: o seu a/braço supostamente forte é também aquele que lhe pede ajuda. E aqui estamos no cerne do humano: feminino e masculino folheiam o real exactamente com igual parcela, salvam-se mutuamente, porque compartilham uma vulnerabilidade essencial. Neste “abandono” radica a possibilidade de abrirem-se simultaneamente ao comum, apesar da/s diferença/s que albergam.
Cristina Campo, escritora, embora pela minha parte prefira chamar-lhe sintomatologista e buriladora de joias-memória, italiana, afirmou que nada mais se espera dos amantes a não ser que amem e caminhem sobre as águas. O Abandono de Camille Claudel fá-lo: caminha sobre as águas, sem dúvida. Existem umas escadas na cidade de Florença, pertencentes à Biblioteca Medicea Laurenziana e projectadas por Miguel Ângelo, que estão construídas ao contrário, ou seja: quando se sobe temos a sensação de que descemos, e quando descemos a de que estamos a subir; esta é uma imagem poderosa, creio, para qualificar a experiência da humanidade. Na nossa actualidade, que se pauta pela ideia de progresso, questiono-me e convido-vos a acompanharem-me: quantas vezes, sob a capa das corridas mais desenfreadas, em que não se pode perder o lugar no pódio, não se perdem pessoas, coisas, ideias, valores, de que não deveríamos nunca abdicar?
O Abandono, de Camille, parece vir dizer-nos que o masculino não quer, porque não pode, abdicar do feminino, que não quer, porque não pode, que o feminino se prostre, que o homem e a mulher estão em queda relativamente ao/à outro/a, logo, permanecem em abertura face ao tempo, o que também apela a que o construam, a que lhe atribuam um sentido partilhado. Não vejo ali uma mulher nas mãos de um homem que pudesse derradeiramente manipulá-la, que pudesse manejá-la de acordo com a sua tirania; não, ali vejo um homem que vem em auxílio da mulher, mas auxílio esse que é a própria condição de existência desse homem, da sua permanência e, no limite, da sua possibilidade de viver de facto.00
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