Se o sentimento de pertença pode gerar confrontos obsoletos entre grupos rivais – que a extrema-direita explora até à exaustão – o desejo de conhecimento pelo aparente espaço do outro levou a um crescimento exponencial do viajante, o viajante mundial. As economias dos destinos exuberaram, os empregos subiram em flecha, as ruas ecoaram a poética beleza babélica, o turismo surgiu como uma rede pacífica entre povos. Mas logo surgiram vozes que abdicavam do mapa-múndi sem fronteiras para se confinarem aos marcos regionais do bairro, da aldeia, como se a presença do estrangeiro representasse em si uma estranha violência a uma existência que queriam apenas conhecer. Como se o outro não tivesse o mesmo direito que eu tenho ao conhecimento e ao entendimento do leque colorido das diferenças que nos estimulam a curiosidade pacífica de saber.
Já muito se falou da legitimidade serena da viagem, sem o arcaico espírito de conquista que a modernidade nos consagra, mundializando-nos no espírito de cada lugar. Por outro lado, esta mesma modernidade oferece uma nova possibilidade à reconstrução de vidas quase perdidas nos terrenos sangrentos dos senhores da guerra, levando correntes migratórias a procurar fora da sua tradição, ou seja, na diferença, as condições necessárias para uma existência humana digna. Os movimentos humanistas logo se organizaram sob a bandeira da solidariedade internacional para criarem condições de recepção aos que fogem da barbárie, mas as lógicas economicistas e as visões castradoras dos senhores do Ocidente não hesitaram em levantar obstáculos quase intransponíveis ao acolhimento fraterno de seres humanos em dificuldade.
Se por um lado o turismo promove o movimento de populações, gerando receitas que alimentam o crescimento económico de todas as regiões, por outro, a partilha desses recursos com aqueles que mais precisam, vindos de geografias dilaceradas pela guerra, é imediatamente rechaçada por todos aqueles que gastam fortunas em campanhas publicitárias na promoção das suas terras. Neste sentido, o meu país torna-se paradoxalmente o céu para uns e o inferno para outros. Ou seja, há lugar para os que gastam e não há espaço para os que necessitam. Isto é tenebroso. E se observarmos com atenção, verificamos que este acto criminoso está pejado com as impressões digitais da direita, da extrema-direita, e daqueles que renunciaram, por conveniência bancária, aos princípios ideológicos que nortearam a sua formação. O que é assustador.
Esta prática escabrosa que leva a atrair uns e a depreciar outros também se verifica no seio da mesma tribo. Em Portugal, por exemplo, a indústria turística, perante a avalanche vinda do exterior, tratou imediatamente de excluir os conterrâneos do desfrute da oferta pela inacessibilidade dos custos inerentes, privilegiando o poder de compra de um produto inflacionado a quem nos visitava. Ora o fenómeno pandémico exibiu sem pudor a nudez do rei. E a quem recorre a majestade para cobrir do gelo o seu corpo tiritante? Exactamente àqueles que desprezou por simples avareza, convocando agora o espírito da solidariedade nacional e exibindo despudoradamente o recheado cardápio da hipocrisia.
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Obs: texto previamente publicado em «Rouge-observation», 2020, tendo sofrido ligeiras adequações na presente edição.
Imagem: José Lorvão