Uma das coisas boas de se viver numa cidade como Famalicão passa pela proximidade que mantemos com as pessoas com quem lidamos nos afazeres da vida quotidiana. Cumprimentamos as meninas na caixa do supermercado, falamos sobre futebol, agricultura e religião com o dono da frutaria, pedimos ao carteiro que facilite nas entregas registadas, espreitamos na florista as plantas que parecem feitas para a nossa casa. E vamos mantendo, com o passar dos anos, uma teia de laços comunitários, mais ou menos fortes, que vai enriquecendo as nossas vidas. Quando damos por ela, vamos à mesma cabeleireira há vinte anos e temos a mesma pessoa a conhecer todas as fases capilares das diferentes fases da nossa vida, desde os longos cabelos da adolescência até às versões mais curtas quando deixamos de ter direito a cartão jovem.
Simultaneamente, vamos notando o que muda na dinâmica dos pequenos negócios, em especial daqueles que estão mais sujeitos à inovação tecnológica. Esses viram-se, quase repentinamente, engolidos por uma lógica de mercado globalizado que não lhes dá descanso. Como as mudanças técnicas se sucedem rapidamente, têm de estar constantemente a acompanhar as inovações mais recentes. E é por isso que uma esteticista que apenas precisava de um simples aparelho para aquecer a cera, uma espátula e papel passou a necessitar de uma considerável panóplia de equipamentos. A exigência de espaço aumentou e de duas a três trabalhadoras se passa a quatro, seis, oito em poucos anos.
O pequeno negócio assumiu, com isso, uma dinâmica muito diferente: a introdução contínua de novas tecnologias obriga a grandes investimentos, pelo que se tem de fazer o negócio crescer por forma a ter capacidade para investir. O dinheiro que entra por uma porta sai rapidamente por outra e não se pode parar. O que fica é uma sensação de falta de controlo, coletiva e individual, por estarmos sujeitos a um ritmo que determina os momentos e os objetivos das nossas vidas e que não temos capacidade de condicionar. Como nota Yuval Noah Harari, a pessoa comum sente-se cada vez mais irrelevante – uma sensação que a língua inglesa talvez capte melhor com a palavra powerless.
De algum modo, essa ideia de termos controlo sobre a nossa vida está intimamente ligada à ideia de dignidade humana. Pensemos naquele que é o princípio basilar do domínio médico: a necessidade do consentimento do doente para a intervenção médica em respeito pela dignidade humana. Quando se exige a um médico que comunique todas as informações relevantes para que o doente possa tomar uma decisão informada e consciente, não se espera exatamente que o doente compreenda tudo o que está em causa. De que valeriam tantos anos de formação, dedicação e sacrifício dos jovens médicos se isso bastasse? Mas é esperado que, com essa transmissão, o doente sinta que detém algum controlo sobre a situação. Não passando de uma ficção percetiva, produzem-se efeitos psicológicos reais. A perceção de controlo resulta numa sensação de respeito e dignidade.
E aqui reside um dos impactos mais negativos do desenvolvimento tecnológico que marca os nossos dias. A constante evolução tecnológica acelera o tempo, modifica as necessidades, condiciona continuamente o modo como vivemos e vemos o mundo à nossa volta. Chama-nos à mobilização total, de que fala o filósofo italiano Maurizio Ferraris a partir do conceito de Ernst Jünger, fazendo com que nos sintamos em falta quando não respondemos à ordem. Com isso, perturba a nossa sensação de controlo, o que se traduz fisicamente em manifestações de ansiedade. O admirável mundo novo apresenta, por isso, níveis alarmantes de ataques de pânico, diagnósticos de depressão, consumo de tranquilizantes, ansiolíticos e antidepressivos. Em todo o mundo morrem mais pessoas hoje de suicídio do que por guerras e ataques terroristas.
Parece ser esta a razão da procura e popularidade de soluções alternativas, como as técnicas orientais de yoga, mindfulness, reiki ou meditação, para lidar com a atual crise de sentido. O segredo destas sabedorias ancestrais é simples: ensinando-nos a focar a mente na respiração e no presente, liberta-nos dos lamentos passados e das pré-ocupações futuras. Dá-nos aquilo de que sentimos falta ao permitir uma sensação de controlo sobre o aqui e o agora. Ao mesmo tempo que o tempo dilata, ganhamos distanciamento sobre o fluxo de acontecimentos que dão ritmo à realidade e mais consciência sobre a experiência real. E de um ponto de vista ocidental, não deixa de ser curioso como a longa caminhada moderna nos levou de volta às sabedorias mais tradicionais.
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