Não, nada disso, não estou a falar das duas figuras maiores do aconchegado espaço político português. Estou a falar em política e políticos, mas, em concreto, refiro-me a uma figura de ficção – Benedikt Ríkardsson – e a uma outra, que embora parecendo também saída do universo ficcional, é bem real – Javier Milei.
O Primeiro-Ministro a que me refiro é a figura de ficção, tal como aparece retratada numa série televisiva islandesa de 2020, «O Ministro», disponível na plataforma de streaming Filmin. O Presidente, bem real, apesar de parecer um personagem saído da imaginação de um ficcionista bêbado, é o recém-eleito Javier Milei, que em breve tomará posse como Presidente da Argentina.
Ríkardsson e Milei são resposta ao cansaço dos eleitores pelas soluções habituais
A ficção anda frequentemente de mãos dadas com a realidade, já o sabemos. Casos há em que a ficção ilumina a realidade, que é o que sucede aqui. Não digo que as duas personagens, a real e a ficcional, se assemelhem demasiado, já que divergem nuns pontos e convergem noutros. Há, no entanto, um ponto de aproximação que quero sublinhar: ambos são eleitos em resposta ao cansaço dos eleitores por aquilo a que podemos chamar as soluções habituais e de consenso, e ambos ilustram como se estão a modificar os instrumentos e mecanismos de conquista do poder.
Semelhanças: políticos fora da caixa, extravagantes e com habilidade no uso da retórica
A série televisiva islandesa mostra-se a ascensão a Primeiro-Ministro de uma personagem singular, extravagante, completamente “fora da caixa”, uma espécie exótica que floresce e se destaca no habitat da política comum. Um homem grande e volumoso do ponto de vista físico, um político emergente capaz de dizer o que outros calam e de propor o impensável. Nesse aspeto é parecido com Milei, também ele extravagante, desbragado, exótico, avançando com propostas que ninguém antes se atrevera a propor.
São também parecidos na habilidade com que manejam a retórica que lhes garante sucesso político, desde logo conseguirem iludir a sua condição de políticos apresentando-se como antipolíticos. Ou seja, revelam capacidade de construir uma «persona» suficientemente forte para desconstruir a identidade pública que os torna elegíveis: «Apresento-me a eleições, faço propostas e discuto políticas, mas não sou político». Tivemos em Portugal alguns afloramentos desta narrativa, de Cavaco a Ventura, mas nada que fosse tão longe, na eficácia retórica e nos resultados, como na ficção islandesa ou nas presidenciais argentinas. Veremos o que o futuro nos reserva.
Diferenças: esquerda e direita
É talvez ainda mais interessante o que distingue as duas personagens. O Primeiro-Ministro islandês retratado na série é, por assim dizer, um populista de esquerda. Defende a mais ampla participação política, e afirma mesmo que se recusará a tomar posse de não conseguir que 95% de participação eleitoral. Defende e aplica uma governação de proximidade, tomando decisões políticas em função do contacto direto com os cidadãos, não hesitando em impor a sua visão do bem comum, mesmo contrariando outros membros do Governo, o Parlamento ou a Presidente.
Seguindo a mesma lógica, Milei é um populista de direita. As medidas que propõe são ultraliberais, defendendo uma privatização quase integral do Estado, reduzindo todo o funcionamento da sociedade a uma lógica de mercado. Um «homoeconomicus» hiperbólico, entregue à procura incessante do máximo de capital que o distinga dos demais, ou apenas do mínimo de capital que lhe permita sobreviver, se necessário vendendo os órgãos, como defendeu durante a campanha eleitoral.
Populismo será sempre populismo?
Curiosamente, partindo da direita, como Milei, ou da esquerda, como o imaginado Primeiro-Ministro islandês, as duas personagens acabam por se encontrar num ponto chave da política económica. Milei defende a abolição da moeda nacional argentina e a sua substituição pelo dólar, tal como, na série, o Primeiro-Ministro defende a substituição da moeda nacional islandesa pelo Euro. Quererá isto dizer que populismo é populismo, venha da esquerda ou da direita?
“Cansaço” devido à incapacidade de os “políticos do sistema” chegarem às pessoas
Talvez assim seja, mas o ponto principal é ver como estas duas personagens chegam ao poder – e recordo que só uma delas é ficcional, enquanto a outra, bem real, é capaz de ser a ilustração do que nos espera por cá um dia destes. A palavra-chave, tanto na eleição de Milei como na do Primeiro-Ministro ficcional, é «cansaço». Não se trata de um cansaço circunstancial, do tipo «Estou farto deste partido, vou experimentar outro». É muito mais profundo que isso. É até mais profundo que uma questão de regime. Trata-se de uma questão de sistema, entendendo por «sistema» a arquitetura política que emergiu das revoluções liberais e se sustentou no poder incontestado do Estado-nação. É esse sistema que parece agora colapsar, acompanhando o colapso do próprio Estado-nação, cada vez mais enredado em processos de fragmentação interna e de captura dos seus poderes por macroestruturas políticas ou por conglomerados financeiros. O caso argentino mostra-nos isso: a incapacidade cada vez mais evidente de os «políticos do sistema» chegarem às pessoas e de as fazer acreditar que têm poder para fazer coisas boas acontecer.
Nostalgia e promessa de regeneração conduzem-nos a um caminho sem saída
A esta falta de horizonte tende a responder a nostalgia, quer dizer, a fantasia de voltar a um outro tempo e a uma outra condição de ação política. Foi isso que ouvimos a Milei: a promessa de regeneração, de regresso às coisas simples do passado, e foi também isso que vimos na série islandesa, neste caso com a ideia de que a participação política de todos era capaz de garantir um regresso a um outro tempo e condição, a uma espécie de «communitas». Estou convencido que o futuro nos mostrará que é por aí que a narrativa populista vai e nos leva – um caminho sem saída, evidentemente, mas que pode parecer venturoso com a retórica de políticos como Milei.
Profetas, santos e loucos virão a substituir os políticos da velha guarda?
Esqueci-me de dizer: o Primeiro-Ministro islandês, veio a descobrir-se na série, sofria de doença bipolar. Não faço ideia se algo de semelhante se virá a descobrir em Milei, e não quero com esta nota manifestar qualquer estigma em relação à doença mental. Não resisto, ainda assim, a uma pergunta final: será que estamos a entrar numa era em que os profetas, os santos e os loucos serão chamados a ocupar o palco da política, por troca com os políticos da velha guarda, com ou sem monóculo, bengala e cartola?
Obs: texto previamente publicado na página facebook de Luís Cunha, tendo sofrido ligeiras adequações na presente edição.