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Kaputt não é um livro bom nem mau. É simplesmente colossal. Durante a leitura, acabado de ler ou na memória dele, Kaputt dá a sensação de ser um objecto exterior à esfera da experiência quotidiana como se um outro mundo, belo e cruel, pairasse qual meteoro improvável, todavia, em rota de colisão com as frágeis engrenagens de quem somos. Kaputt coloca-nos perante o desconhecido. Fascina, abala, aterroriza. Fala da II Guerra Mundial, burlesca, brutal, irónica, fala dos algozes e das vítimas, da loucura de quem a viveu por dentro, do lado dos nazis e dos fascistas, numa viagem alucinada, desesperada, porventura, redentora. Porventura, reitero. Mas não se iludam sobre o que aí vem. Este texto não é uma recensão crítica, nem para tal o autor das desconjuntadas linhas que se seguem estaria habilitado. É tão somente a história de uma relação com um livro cuja desmedida se impôs a ponto de, agora, já não haver nada a fazer.
Sei hoje de forma certa que só Curzio Malaparte poderia ter dado corpo a uma obra de tão estranha beleza. Terá sido essa a forma encontrada de exorcizar o mundo dos seus demónios? Não sei. O holandês Jeroen van Aken, aliás, Jeroen Bosch Hertogenbosch, aliás, Hieronymus Bosch, aliás, El Bosco, como é conhecido em Espanha, tê-lo-á feito no Renascimento, pintando a tentação da alma e o prazer da carne num mundo de interditos exposto num tríptico, da Criação à Morte, tendo no centro um fulgurante Jardim das Delícias povoado de objectos transgressores e seres sobrenaturais. Se há poucos dados sobre o pintor flamengo a quem alguns atribuíram, sem prova, filiação no Homines Intelligentiae, bem como na seita dos heréticos Adamitas da salvação pela orgia, sobre o escritor do século XX, que também não era Curzio Malaparte, mas sim Kurt Erich Suckert, de ascendência alemã, nascido na Toscânia, a informação abunda numa teia de segredos, simulacros e enganos habitada pelo enigma de um camaleão sofisticado, ardente de todas as ousadias, consumido por todos os excessos, dependendo do momento ou do ponto de vista, ou de ambos, talvez a hipótese mais plausível. Pelo menos, a minha ligação a Kaputt, simultaneamente precoce e tardia, assim o sugere, todavia, sem explicar.
Sei hoje de forma certa que só Curzio Malaparte poderia ter dado corpo a uma obra de tão estranha beleza. Terá sido essa a forma encontrada de exorcizar o mundo dos seus demónios? Não sei. O holandês Jeroen van Aken, aliás, Jeroen Bosch Hertogenbosch, aliás, Hieronymus Bosch, aliás, El Bosco, como é conhecido em Espanha, tê-lo-á feito no Renascimento, pintando a tentação da alma e o prazer da carne num mundo de interditos exposto num tríptico, da Criação à Morte, tendo no centro um fulgurante Jardim das Delícias povoado de objectos transgressores e seres sobrenaturais. Se há poucos dados sobre o pintor flamengo a quem alguns atribuíram, sem prova, filiação no Homines Intelligentiae, bem como na seita dos heréticos Adamitas da salvação pela orgia, sobre o escritor do século XX, que também não era Curzio Malaparte, mas sim Kurt Erich Suckert, de ascendência alemã, nascido na Toscânia, a informação abunda numa teia de segredos, simulacros e enganos habitada pelo enigma de um camaleão sofisticado, ardente de todas as ousadias, consumido por todos os excessos, dependendo do momento ou do ponto de vista, ou de ambos, talvez a hipótese mais plausível. Pelo menos, a minha ligação a Kaputt, simultaneamente precoce e tardia, assim o sugere, todavia, sem explicar.
Para respeitar o vocábulo do início do texto, o meu tempo de leitura de Kapput é, também ele, colossal, até ver, à volta de 60 anos entre a leitura das primeiras páginas e a sempre incompleta conclusão. Isto porque, de quando em vez, dou comigo a regressar circunstancialmente a uma ou outra passagem ou até a empreender nova leitura, de princípio ao fim, como sucedeu há pouco tempo, no início da guerra na Ucrânia, onde, de resto, em 1941, Curzio Malaparte deu início à empreitada de escrever a fascinante galeria na qual o horror absoluto se instala no dia a dia de uma humanidade à deriva, indefesa face à demência de quem comanda exércitos, ordena execuções e executa ordens. Antes, quando a pandemia se declarou, enfiado em casa, sem vivalma nas ruas, em dias de ameaças latentes e longas noites de silêncio, também retirei das estantes livros nunca lidos, bem como outros já muito lidos, e lá estava Kaputt. Saltando páginas em busca do que a memória retivera em suspenso, do tanto de essencial escrito com o vermelho da morte, encontrei:
“De tempos a tempos ouvia-se um cão ladrar; era uma voz de uma tristeza pura, quase humana, que emprestava à noite clara, sob o céu sereno, esbranquiçado pelo deslumbrante fulgor da neve, um tom quente e sanguíneo. Era a única voz viva e familiar no silêncio glaciar daquela noite fantasmagórica, e o meu coração tremia.”
As guerras têm sempre um lado cínico. Simulacros. Um lado obsceno. Mentira. Não cuidando de fazer as perguntas certas, adiam-se soluções, perpetuam-se atrocidades, alimenta-se o espectáculo da carnificina, estende-se a perder de vista o cortejo sonâmbulo dos inocentes em fuga. As guerras não se ganham nem se perdem só pela força das armas. Que o diga Kaputt. Não há livro semelhante. Como não há filme comparável a Vem e Vê (1985) de Elem Klimov, no qual se assiste, em suspensão, sobre o abismo, ao genocídio perpetrado pelas tropas nazis durante a II Guerra Mundial na Bielorússia. Em Kaputt, a oblíqua viagem de sombras do escritor e repórter do Corriere della Sera Curzio Malaparte começa nas planícies ucranianas que ardem, prossegue até aos confins de Estalinegrado e Leninegrado cobertos por um manto de gelo e de morte, passa pela barbárie de pogroms gigantescos na Polónia e na Roménia, pelo saque das vítimas e dos seus bens, e, até, pela violação de cadáveres. Às vezes, canibalismo. Um dos protagonistas, Axel Munthe, psiquiatra e médico da família real sueca, pergunta a Malaparte se os alemães estão sequiosos de sangue e de destruição. Malaparte, responde:
“Eles têm medo. Têm medo de tudo e de todos. Matam e destroem por medo. Não é que receiem a morte: nenhum alemão, homem, mulher, velho, criança, teme a morte. Também não têm medo do sofrimento. Num certo sentido, podemos dizer que eles amam a dor. Mas têm medo de tudo aquilo que vive, de tudo aquilo que vive para além deles – e também de tudo aquilo que é diferente deles. O mal do que sofrem é misterioso. Têm medo sobretudo dos seres fracos, dos homens desarmados, dos doentes, das mulheres, das crianças. Têm medo dos velhos. O medo deles acordou sempre em mim uma profunda piedade.”
Há mais ou menos 60 anos
Um dia, em Lourenço Marques, entrei como sempre em casa ao fim da tarde. Ouvindo vozes na sala, fui espreitar. Falava-se de Kaputt – devo ter arqueado as sobrancelhas num ponto de interrogação – e de Curzio Malaparte, idem. Além do meu pai estavam um colega dele, o médico Carlos Barroso, amigo da família dado a leituras, o poeta Rui Knopli, outro amigo, e o escritor Afonso Ribeiro, pioneiro do neo-realismo, há algum tempo em Moçambique condenado a uma espécie de exílio, e de quem o meu então professor de Religião e Moral no Liceu Salazar, um padre, dizia, na sala de aula, ser um bom homem, com talento, infelizmente, não sabendo escolher os melhores temas para os seus livros. O bom homem, só o saberia mais tarde, tinha tentado viver no Brasil, era um dos fundadores do jornal Sol Nascente, em 1937, e publicara diversos livros de manifesto desagrado do regime. Expulso do ensino primário, estava impedido de ensinar em Portugal devido às suas ideias avançadas, leia-se comunistas. Daí inferir-se o risco de poder exercer nefasta influência sobre meninos de tenra idade. Tal como o Knopli, trabalhava como delegado de propaganda médica. Quanto à alusão aos melhores temas julguei ter percebido a ideia. Meio à sorrelfa tinha acabado de ler o terceiro volume da trilogia Maria, oferta do autor ao meu pai, autografado, que ainda hoje conservo, cuja personagem central é uma prostituta. Algumas passagens mais cruas levaram-me erradamente a supor que a elas se referia o padre na missão de não nos deixar cair em tentação. Puro engano. Eu teria quinze, dezasseis anos. Na melhor das hipóteses as minhas ideias políticas seriam confusas. Sobre literatura, comprometida ou não, sabia do que ia apanhando no ar, lendo uma ou outra coisa, ou seja, perto de nada. O padre, percebi depois, é que, apoquentado ou não pelo pecado da carne, tinha ideias bastante conformes quanto ao Estado Novo.
Kaputt entrou, portanto, na minha vida nesse fim de tarde em Loureço Marques. Tê-lo-ia visto lá por casa, se me não falha a memória, numa edição dos Livros do Brasil na colecção Dois Mundos, mas ao contrário, por exemplo, de O Amante de Lady Chatterly, não suscitara em mim qualquer curiosidade de espreitar algumas páginas. A estranha palavra, Kaputt, segundo os mais velhos, seria de origem alemã significando destruído, arruinado, feito em estilhaços, perdido, em suma, acabado. Só muito mais tarde, quando me deixei seduzir por Malaparte, li algures ter ele perguntado na apresentação do livro, em 1946, portanto, no pós-guerra: o que é hoje a Europa? A resposta, dada por ele próprio: um amontoado de detritos. Ou seja, Kaputt.
Mais do que a excelência da obra, sobre a qual me pareceu haver consenso, a conversa era, na verdade, sobre o seu autor. O que ouvi, a juntar à minha ignorância, causou-me perplexidade. Malaparte parecia ser tudo e o seu contrário. Uma personagem de ficção. Combatera na I Guerra Mundial. Fora gaseado. Esteve preso. Seria um sedutor cujas relações acabavam por norma em desastre. Era tão difícil resistir-lhe quanto gostar dele. Dado a jogos de luz e sombra mandara construir uma espécie de castelo num rochedo sobre o mar em Capri, ilha de clima instável, ora solarenga, ora de neblinas. Vestia com elegância, por vezes, de forma estranha, eventualmente, até um tanto bizarra. A dada altura usaria uma máscara. Fazia-se fotografar com um cão. Um fascista, seguramente. Um comunista, por conversão. Um católico, quando tratou de receber a extrema unção num hospital em Roma, em 1957, onde estava internado com um cancro de pulmão, após uma visita à República Popular da China.
Passou-me pela cabeça a imagem de um Drácula da Hammer com Christopher Lee, de um outro Drácula de Ted Browning com Bela Lugosi, mas, em qualquer caso, Drácula, o que me levava às matinés caóticas do Varietá, um cinema em vias de ser demolido, outrora imponente, na Rua Araújo, a rua das putas, cujos filmes, alguns muito antigos, chegavam em bobines sem ordem aparente amontoadas em camiões que vinham da África do Sul para serem exibidos numa sala de calor asfixiante de onde se estava sempre a sair para apanhar ar e a entrar para retomar as pueris aventuras, cheias de saltos, que desfilavam pelo ecrã encardido não sei se pela condensação de suor, se pela exaustão de dar corpo a tamanhas fantasmagorias, se por ambas as razões.
Assim foi a minha iniciação a Kaputt. Não tanto por causa dele, do livro, como se perceberá, antes pela súbita notoriedade adquirida pelo autor junto do adolescente de poucas letras alimentada por quem de Malaparte falava de forma cúmplice, não descurando, porém, o maligno espectáculo da guerra, sendo o destinatário óbvio, eu.
Kaputt 1. A primeira tentativa de leitura correu mal. Por um lado, cedeu a outras solicitações, mais prementes, às quais me dispenso de fazer referência em nome das chamadas coisas próprias da idade. Por outro lado, logo no início, bati de frente com Os Cavalos de Gelo, texto de tal modo asfixiante, tão cruelmente belo, que fui confrontado com a inultrapassável insignificância, a minha, sinal de que talvez só mais lá para diante seria capaz de levar Kaputt a bom porto. Talvez. Fosse como fosse, recordei sempre, de modo difuso, o modo como Malaparte descreve o Lago Ládoga, na República da Carélia, próximo da floresta de Ràikkola onde finlandeses e russos travaram batalhas sem quartel. Recupero da versão do livro traduzido para portugês por Amândio César uma breve imagem das que tanto me amedrontaram do espelho embaciado do grande lago:
“O lago era como uma imensa placa de mármore branco, na qual estavam pousadas centenas e centenas de cabeças de cavalos. As cabeças pareciam cortadas rentes, a cutelo. Só eles emergiam da crosta de gelo. Todas as cabeças estava voltadas para a margem. Nos olhos esbugalhados via-se ainda brilhar o terror, como uma chama branca. Perto da margem, um grupo de cavalos ferozmente curvados emergia da prisão do gelo.”
Kaputt ficou, assim, momentaneamente, sem seguimento; depois, foi estando cada vez menos presente, diluído na vertigem de experiências acumuladas onde, a par de tantas viagens, experiências e aventuras, a morte iria surgir sem aviso prévio empunhando a fatídica foice que quase em simultâneo ceifou precocemente a vida dos meus entes mais queridos, pai e mãe. O livro entrou num limbo. Pelo meio cumpri um outro tipo de guerra, diferente da de Malaparte, mas, em todo caso, uma guerra, num quartel isolado na lonjura de um lugar de Moçambique. Li muito. Também vi olhos espantados. Mas não mais me lembrei ou quis lembrar de Kaputt.
Há mais de 30 anos
Portugal teve uma Revolução na qual, como tantos outros, eu mergulhara de corpo inteiro. Durou pouco. Dez anos volvidos, sobravam apenas vestígios. Uma utopia europeia, alguns chamavam-lhe projeto, outros miragem, tomara o seu lugar. A dada altura, raro era o dia em que se não fizesse a inauguração de um troço de auto-estrada. Construiu-se muito. Coisas necessárias, outras nem tanto. A palavra-chave desses dias passou a ser fundos europeus. Um futuro radioso, ainda por chegar mas já perfilado ao virar da esquina, anunciava uma Nova Europa de paz, progresso e harmonia. Entretanto, iam aparecendo insidiosos indícios daquela caspa feita de sujidade e gordura, habitualmente associada à história das mentalidades, que, embora possa não parecer, sempre pesa muito nas almas, mais do que nos ombros. Sobretudo de quem tem de tratar da vida. Pela minha parte, talvez à procura de algum do tempo perdido, voltei a ir com frequência aos cinemas do Porto aproveitando para ver o que havia, rever filmes há muito vistos ou procurando simplesmente ver alguns, bastantes, que me tinham escapado.
Kaputt 2. Em Le Mépris (1963) de Jean-Luc Godard, Fritz Lang (ele mesmo) está a rodar uma adaptação de A Odisseia de Homero. O produtor americano quer filmar muita acção, sereias e em cinemascope. Em Homero, mesmo sendo os deuses gregos dados a caprichos e desavenças, prevalece a ideia da viagem que dá sentido à vida. Em Le Mépris, a viagem, ou melhor, o filme pretendido por Hollywood, inscreve-se num quadro de subversão de valores simbólicos no qual as relações humanas estão subordinadas ao dinheiro, à prostituição capitalista, tema grato a Godard.Numa cena do filme, após ter visto alguns rushes da obra em curso, o produtor Prokosh – notável desempenho de Jack Palance – exige alterações, tal como o faria o mais mesquinho dos deuses: “Quando ouço falar de cultura puxo do livro de cheques.”
O bestiário de Malaparte começa na aldeia ucraniana de Pestcianka, na frente leste, em casa de um camponês onde encontrara abrigo: “Sentava-me todas as manhãs no seu jardim, debaixo de uma acácia, para trabalhar, enquanto o camponês, sentado no chão, perto da pocilga, afiava as foices ou cortava as beterrabas e os rabanetes para os porcos.” Depois da Ucrânia, as sucessivas vinhetas de Kaputt passam por Varsóvia, correm toda a frente de Smolensk, embrenham-se na Finlândia, desaguam em Nápoles, cidade já ocupada pelo exército americano, em ruínas, demente, ponto de partida para outro livro assombroso, A Pele, do qual talvez um dia sinta necessidade de falar. Quanto a Kaputt, em qualquer lado, a toda a hora, onde quer que fosse, a guerra. Citação aleatória:
“Quando os judeus começaram a rarear, começaram a enforcar os camponeses. Penduravam-nos pelo pescoço ou pelos pés nos ramos das árvores, nas pracetas das aldeias, em redor do pedestal vazio onde, alguns dias antes, se elevava a estátua de gesso de Lenine ou de Estaline, penduravam-nos ao lado dos corpos dos judeus desbotados pela chuva, os quais oscilavam no céu negro há dias e dias, perto os cães dos judeus pendurados no mesmo ramo dos donos.”
Artífice da revelação de um mundo aterrador, todavia, miseravelmente, obra dos próprios homens, Malaparte organizou Kaputt em seis partes: Os Cavalos; Os Ratos; Os Cães; Os Pássaros; As Renas; As Moscas. Tal como sucede na terceira parte do tríptico de Hieronymus Bosch alusivo ao Jardim das Delícias, certamente não devido ao pecado original mas pela consumação de todos os pecados capitais, em Kaputt a punição resulta em inimagináveis metamorfoses que transformam homens em monstros de si mesmos, dando lugar a um fresco de horrores, um mundo fantástico cuja matriz é simplesmente a malignidade da suástica, o insondável da natureza humana, a patologia do fascismo. Mas, tal como em Bosch, também o mundo de Malaparte induz o maravilhoso, fascina, subjuga pela beleza. Quer num caso quer no outro, a linguagem solta a imaginação, impõe o labirinto do jogo e propõe a chama da revelação, assim queiram expor-se ao risco os subterrâneos da pele. Não: Cavalos, Ratos, Cães, Pássaros, Renas e Moscas não são apenas cavalos, ratos, cães, pássaros, renas e moscas. São isso e outras coisas mais.
Agora: mais adiante se verá
Bonaparte, de Napoleão, seria algo como boa sorte. Malaparte, de Curzio, seria o contrário, má sorte. Agora, quando dele me lembro, sei muitas coisas não sabendo ao certo aquelas que, na realidade, estão certas. Pouco importa. É um escritor imenso. Vejo a foto desbotada de um jovem de camisa negra e punhal à cintura, esguio, apoiado a uma parede caiada de branco, os olhos semicerrados devido ao sol, atentos, um discípulo dos arditi de Mussolini, cultores da violência, condecorado com as mais altas honrarias militares por bravura em combate, aos 16 anos, quando se juntou às tropas francesas na I Guerra Mundial. Vejo um fascista puro cujo vitalismo tenderia a preencher os interstícios da vida em busca de uma ordem superior, revolucionária. Vejo um intelectual – propagandista, escritor e jornalista – admirador do excêntrico Gabriele d’Annunzio, aliado de Marinetti com quem assinou o manifesto dos intelectuais na sequência da criação do Partido Fascista Italiano, em 1921. Vejo um herdeiro desse outro manifesto, o futurista, publicado no Le Figaro, em 1909, onde se podia ler no ponto sete: Não há mais beleza, a não ser na luta. Nenhuma obra que não tenha um carácter agressivo pode ser uma obra-prima; ou, no infame ponto nove: queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo –, o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos libertários, as belas ideias pelas quais se morre e o desprezo pela mulher. Vejo o homem convicto de um novo início para a Itália na Marcha sobre Roma de 1922 encabeçada por Bono, Balbo e Vecchi, todos eles vestindo o traje da ordem negra e, vá lá saber-se porquê, Mussolini, de fraque. Depois, o baile de máscaras faz-se cada vez mais em registo de vertigem.
Kaputt 3. De cada vez que regresso a Kaputt, sabendo embora da contraditória mundividência do escritor, bem como da rede impressionante dos seus contactos e conhecimentos, mais se me enraiza a convicção de que muito do que lá está é produto de uma prodigiosa imaginação. Ainda bem, pois só assim, pela sensibilidade estética, poderíamos aceder aos aposentos de Himmler, o assassino em série encontrado por mero acaso no elevador de um hotel; à visão apocalíptica de campos ucranianos semeados de espantalhos feitos de cadáveres de soldados soviéticos destinados a aterrorizar a resistência; aos jantares opíparos com Frank, o governador de Hitler na Polónia, um demente erudito, caçador de judeus, rodeado de colaboracionistas vestidos a rigor para a encenação da tragédia; às ruínas de Nápoles, arrasada pelos bombardeiros aliados, com a multidão de famélicos, estropiados, sujos e moribundos, escondida em grutas repugnantes num fétido corpo a corpo pela sobrevivência; aos salões da decadente aristocracia de Mussolini pejados de damas e cavalheiros tratando saber de quem é amante de quem entre comentários cínicos sobre a incompetência militar italiana, com total indiferença pelos mortos, disputando favores por um lugar, uma mordomia, uma nomeação.
Isto é Kaputt: a guerra. Um fresco terrível, belíssimo, visto do lado dos nazis, dos fascistas, dos colaboracionistas, dos vencidos, nos antípodas do mencionado ponto nove do Manifesto Futurista: queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo –, o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos libertários, as belas ideias pelas quais se morre e o desprezo pela mulher. Kaputt é o contrário de tudo isto, por vezes ambíguo, por vezes provocador, sempre rigorosamente coerente com uma arquitectura construída com parcimónia a partir do registo pobre do jornalismo para se espraiar numa prosa cruel que convoca de forma esplendorosa a exactidão da beleza para o confronto com o conforto da cegueira:“Julga que há no mundo alguma coisa mais simpática que um cego? Sim, talvez haja alguma coisa mais simpática: são os homens que têm um olho de vidro. E, no entanto, vi na Polónia, no último inverno, homens ainda mais simpáticos do que os cegos e do que as pessoas que têm um olho de vidro. Estava eu em Varsóvia, no Café Europeiski.(…) Na mesa próxima da minha estavam sentados soldados alemães de olhos arregalados e rosto parado. No centro do seu olhar fixo eu via a pupila dilatar-se e contrair-se de forma bizarra. Notei que não pestanejavam. (…) De súbito notei com horror que não tinham pálpebras. (…) Queimadas pelo frio, as pálpebras desprendiam-se como um pedaço de pele morta.”
Reitero: Kaputt é colossal.
Malaparte na Grande Muralha da China. Recebido com pompa e circunstância por Mao.
Imagens: DR
Obs: texto previamente publicado no blogue Narrativas do Real, de Jorge Campos, tendo sofrido ligeiras adequações na presente edição.
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