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Juntar duas pessoas tão diferentes – Mamadou Ba e Paddy Cosgrave – e imaginá-las como companheiros de uma mesma luta pode parecer estranho. Afinal, trata-se de sugerir uma espécie de comunhão entre um homem que vem dedicando a sua vida ao combate ao racismo, denunciando as múltiplas formas que conheceu e conhece ainda, e um outro que criou um produto de elevado potencial mercadológico, que alimenta e é alimentado pela ordem económica e política hegemónica, como a Web Summit. Parecerá estranho, mas é uma estranheza aparente, já que ambos sofreram por estes dias os efeitos de um fenómeno que vem crescendo entre nós: a censura e a vontade de cancelar quem não pensa como nós.
Bem sei que são dois casos muito distintos, mas é justamente essa diferença que os torna bons para pensar. Ambos disseram “coisas de esquerda”, para citar o Nanni Moretti, embora isso seja o menos relevante para o que pretendo dizer. Os dois disseram coisas sensatas e bastante razoáveis, do ponto de vista da factualidade por parte de Ba, no plano do juízo moral por parte de Cosgrave. De facto, a implicação de Mário Machado nos acontecimentos que conduziram à morte de Alcindo Monteiro existiu e foi provada em tribunal, do mesmo modo que se devia esperar que crimes de guerra sejam ajuizados como crimes de guerra independentemente de quem os cometa.
Deixemos as semelhanças e consideremos as diferenças: Mamadou Ba foi censurado e punido por uma entidade instituída e instituinte, o Tribunal, ou seja, pelo órgão de soberania competente na aplicação da lei. No caso de Paddy Cosgrave a censura não implicou punição formal, muito embora tenha conduzido a uma punição de facto, já que o obrigou a demitir-se da liderança de Web Summit para que esta não colapsasse. Se considerarmos que foi o próprio Cosgrave quem tomou a decisão de se demitir, este caso parecerá menos grave ou danoso. Por outro lado, se considerarmos que Ba tem ainda a possibilidade de recorrer da decisão do tribunal e mesmo uma elevada probabilidade de a reverter, é legítimo considerar que a punição de Cosgrave foi mais grave. Para simplificar, podemos dizer que de um lado temos uma decisão errada, que por ter sido lavrada dentro do quadro democrático é passível de revisão, enquanto no outro caso temos uma censura que escapa a qualquer escrutínio, sendo fruto, por isso, de uma arbitrariedade que se sustenta num poder de facto (o da pressão dos estados e das empresas de comunicação), que escapa ao controlo democrático.
Mamadou Ba, com quem simpatizo, foi vítima de uma má aplicação da lei, em razão de uma interpretação estrita do direito à liberdade de expressão por parte de uma juíza, talvez por preconceito ideológico, talvez por incompetência, pouco importa para o caso. É inaceitável e ficamos todos à espera que a condenação seja revertida – e sê-lo-á, por certo, nem que seja nas instâncias europeias. Paddy Cosgrave, por quem não nutro qualquer simpatia, foi «cancelado», como agora se diz. Foi vítima, portanto, de uma figura punitiva muito mais perversa, já que dela não há recurso, fator que fez da prática informal de cancelamento uma arma de extrema importância no arsenal bélico usado tanto à esquerda quanto à direita.
Por estupidez ou por preguiça apenas se toleram as «boas ideias», as «nossas», naturalmente, não se hesitando em cesurar quem as contraria. O cancelamento não se confunde, bem entendido, com a contestação ou a critica das ideias, nem sequer com o protesto em altos brados, todas elas formas de manifestação de desagrado que cabem num espaço público de debate democrático. O que não deve ser permitido é a censura, venha ela da direita ou da esquerda, aqui cabendo a «política de cancelamento», que nada mais é que um dos avatares do ato censório. É isto o mais estranho deste estranho tempo que vivemos: a facilidade com que aceitamos, mais que isso, nos congratulamos, com a censura do que não nos agrada (ideias, livros, autores, estátuas ou memórias), sem nos apercebermos que estamos a tolerar o uso de uma arma cega que, fatalmente, acabará por se virar contra nós.
Imagem: Ivy Son / Pexels
Obs: texto previamente publicado na página facebook de Luís Cunha, tendo sofrido ligeiras adequações na presente edição.
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