Sobre a matematização das questões sociais um leitor deixou-me este comentário: “A palavra matemática tem origem na palavra grega “mathema”, que significa ciência, conhecimento, aprendizagem. Um matemático é, na sua essência, um pensador, um filósofo. Não somos engenheiros tecnocratas”. Deixe-me agradecer e responder com algumas notas.
Em geral a ciência foi toda ela transformada numa técnica, espartilhada da vida social. É funcional ao mercado. Com a automação e a IA os desejos delirantes de que a sociedade se pode explicar por algoritmos levam a uma crise que deixa a nu as situações mais ridículas, como as que vimos na pandemia, em que se faziam as mesma contas para a Quinta da Marinha e a Amadora. Isto resulta da perigosa desvalorização das ciências sociais. A título de exemplo, recentemente, sobre França, apressaram-se a responder-me que o país tem um bom Estado social, pelo que os jovens nada têm do que se queixar.
Não, tão importante quanto a sobrevivência é a perspetiva de futuro, e aqui entra a psicanálise e a filosofia do trabalho.
Matemática, filosofia, português e história deveriam ser estudadas em todo o ensino obrigatório
O inverso também é verdade. Há imensa gente que acredita que os cientistas sociais podem ter umas vagas noções de “matemática aplicada às ciências sociais” quando deixaram de estudar matemática com 14 anos. Trabalho muito com estatística, e sei criticá-la, acho que com algum saber, mas não me passa pela cabeça achar que posso fazer contas ou dados. Os meus colegas de matemática ficam loucos com as parvoíces que ouvem, e estão cheios de razão. O que se tem que fazer é pensar junto – e isso a Universidade e o Mercado obstaculizam, porque a avaliação é individual e a concorrência é total.
As épocas de maior progresso científico e artístico são os períodos de revolução social, porque se pensa junto. Andamos há décadas com os mesmos tratamentos de cancro, os mesmo motores, apesar de termos agora uma sucessão de aplicações novas. Desde a II Guerra estamos muito mais parados porque trabalhamos em concorrência e não em cooperação.
Nós não podemos deixar de ter matemática, filosofia, português e história aos 14 anos, é um absurdo. Até ao 12º ano pelo menos estas disciplinas têm que ser exigentes e obrigatórias para todos.
Para compreender a realidade é preciso acabar com a disseminação da ignorância
Dito isto, há um problema de fundo que é também uma batalha minha no que se refere ao ensino e à escolaridade. É preciso ler, ler os clássicos, ou seja, conhecer a teoria e não apenas a técnica. Por isso as mães de todas as ciências são a filosofia e a história, porque elas nos ensinam como pensaram as pessoas que viveram antes de nós. Se queremos dar saltos de compreensão da realidade, é necessário que as pessoas voltem a estudar a sério não o que se aplica, faz, constrói, mas como se pensa. É preciso não fazer só o caminho, mas conhecer o caminho e não rejeitar os gigantes antes de nós.
Sou filha de dois Engenheiros. Em minha casa debatia-se história, filosofia e literatura tanto ou mais do que engenharia florestal. Há uma geração ou duas em que as pessoas acham que não é necessário ler, conhecer e compreender profundamente a sociedade para opinar. Se for física quântica calam-se, mas sobre ciências sociais dizem qualquer coisa. Isso foi passado pelos governos que aligeiraram os saberes e convenceram a sociedade que economia é contas, que história são factos, que filosofia é impenetrável, que a literatura é um hobby. O resultado da matematização excessiva na escolaridade é a disseminação da ignorância. Mais, ninguém tem vergonha de falar do que não sabe, não lê, não conhece, e quando se diz que são ignorantes ficam ofendidos, não com o facto de serem ignorantes nem com as políticas educativas nem a sociedade que temos e em que vivemos.
Imagem: Saad Ahmed / Unsplash
Obs: texto previamente publicado no blogue Raquel Varela | historiadora, tendo sofrido ligeiras adequações na presente edição.
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