Um destes dias fiz uma visita às terras de Sicó. Não me demorei por lá muito tempo, porque o tempo também não era de passeio. Todavia, houve oportunidade para olhar a paisagem, sentir a terra, provar alguns sabores num jantar rápido de regresso e, acima de tudo, viajar no tempo. A viagem levou-me inevitavelmente ao produto que a terra tem de mais tradicional – o queijo do Rabaçal. É claro que também por lá se come a chanfana, o cabrito, os enchidos, e nos últimos anos renasceram os chícharos, muito consumidos pelas classes populares em séculos passados.
Mas é o queijo que por agora me convoca. Não cresci com ele, mas com o sabor forte e intenso do queijo da Serra da Estrela, feito essencialmente do leite de ovelha, cujos rebanhos percorreram a minha meninice. Ainda hoje retenho na memória, e no olfacto, o cheiro e o sabor característicos do queijo curado; o sabor do queijo fresco; a poeira que os rebanhos deixavam nos caminhos, quando passavam; os cães e os pastores que os guardavam…
Queijo do Rabaçal ou “queijo de Coimbra”?
Já a estudar em Coimbra chegou-me o queijo do Rabaçal. Na rua onde morava havia umas vendedeiras que, de vez em quando, subiam a rua a apregoar bolos de Ançã e uns pequenos queijos frescos ou curados. Eram, talvez, das últimas vendedeiras de um tempo longo que findava. E eu gostei daquele sabor suave, tão diferente do que estava habituada, uma preferência que se mantém até hoje. Nesta região, em vez das ovelhas predominam as cabras e é este leite que lhe dá mais suavidade, exactamente o contrário do queijo da Serra da Estrela, onde o leite de cabra quase não se faz presente. Como nos diz Orlando Ribeiro, nas terras de Sicó são as cabras que dominam a paisagem, que se apresenta mais agreste e com menos pastagens verdejantes, mais propícias para este género de gado.
Muitos anos depois, quando estudava os ritmos alimentares dos monges de Tibães no século XVII, volto a encontrar este queijo, agora a ser consumido na festa do Capítulo Geral dos monges beneditinos, que se realizava no Mosteiro de Tibães. Entre 1641 e 1683 localizei vários registo de compra de queijo do Rabaçal fresco e curado. Neste último ano intitulam-nos mesmo “queijos de Coimbra”. Esta denominação fez-me recuar ao meu tempo de estudante e à vendedeira que passava na minha rua a vender os ditos queijos. Conclui, que esta actividade já se devia realizar no século XVII e, tal como eu, também os estudantes beneditinos que frequentavam o Colégio Universitário de São Bento aí existente se deviam ter afeiçoado a este sabor, vendido pelas mulheres do Rabaçal que, de cesto à cabeça, o traziam à cidade dos estudantes.
Na festa do Capítulo Geral, que reunia a elite da Ordem de São Bento, estariam com certeza muitos antigos estudantes de Coimbra, que continuavam a apreciar um bom queijo do Rabaçal. E lá vinham os queijos frescos e curados propositadamente para Tibães, agraciando todos aqueles que faziam deste encontro capitular um local de saudade dos sabores do tempo de estudante.
Queijos “excelentes”, diz-nos o pároco em 1758. Queijos que não ficavam nada atrás dos do Alentejo ou dos da Flandres (flamengo) e de Parma (parmesão), então os mais famosos e que também se serviam na mesa dos beneditinos.
Séculos passados continuamos com o mesmo sabor e com as mesmas saudades!
Imagem: Aprorabaçal
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