Silêncio, isolamento e meditação. A pequena cabana tem uma esteira para ocupar o sono e um lugar para se sentar, ouvindo alguns pensamentos, lembrando as iluminações. Não há tempo para sofrer por lembranças de uma antiga vida mais agitada. Há passagens no céu, vento e o que dos animais é. Em Hojoki, de Kamo no Chömei, existe o lento caminho do fim.
Um homem velho precisa de pouca coisa. Uma casa pequena como um divertimento de criança e um viver solto e livre de compromissos, a dor do mundo. De nada precisar, viver o desapego das coisas como um campo livre dos ventos e do canto quase cerimonioso de algumas aves. Esta é também a lei e por vezes chegam notícias do além e tudo parece escrito na montanha de silêncio. “(…) à medida que a velhice chega, a minha casa é cada vez mais pequena”. Sim, a minha casa é pequena e posso desmontá-la e levá-la para outro sítio. “A cabana toda cabe em duas carroças. Não é necessário mais nada, a não ser pagar o magro salário aos carroceiros.”
A aproximação da morte vem acompanhada pelos sinais da vida
Preparo-me para concluir a leitura de Hojoki e também eu me sinto viver um pouco “nas profundezas sumptuosas do monte Hino”. Posso procurar a lenha de que preciso num pequeno alpendre que acrescentei à casa. Construí também “uma cerca de bambu e a oeste um altar para as oferendas de água e flores a Amida”. A sua imagem está “disposta de forma a que o sol nascente brilhe entre as suas sobrancelhas, como se ele mesmo emitisse esses raios de luz”.
“Tenho alguns poemas e músicas nos estojos de couro e o Sutra do Lótus”. Em nota explicativa, o tradutor de Hojoki, Jorge Sousa Braga, esclarece: “O Sutra do Lótus é um dos sutras mais importantes do budismo. A sua mensagem é que todos os seres conscientes possuem a natureza de Buda e, portanto, a capacidade para alcançar o estado de Buda”. Medito para Oeste “sobre a luz que desce do céu” e às vezes lembro a harpa e o alaúde, o koto e a biwa. A aproximação da morte vem acompanhada pelos sinais da vida.
Leitura de Hojoki devolve uma espécie de silêncio pensativo
Os últimos textos do Hojoki são um cântico de beleza e doce apagamento. Virá o tempo das “glicínias (…) como ondas e as suas flores parecem nuvens cor de púrpura, nas quais o Buda Amida vem dar as boas-vindas aos eleitos”. Virá o cuco guiando com o “seu canto” a viagem “para além das montanhas da morte”. Virão “as cigarras estridentes” e mais tarde a neve “em sinal de expiação”. As glicínias, o cuco, as cigarras e a neve compõem o concerto das quatro estações.
Komei aprendeu a saber “não fazer nada”. Não há ninguém para o culpar ou envergonhar: “Não vivo obcecado em obedecer aos preceitos religiosos porque são poucas as ocasiões para transgredi-los”.
Vou pensando, entretanto, que a leitura do Hojoki me devolve uma espécie de silêncio pensativo. Regresso às primeiras imagens e à branca espuma que pode ver-se um instante sobre a água. Passou muito tempo, vieram os desastres e o homem subiu a montanha. Agora é possível ver “os barcos a passarem perto de Okanoya, posso citar um verso do monge Manshami e comparar esta vida fugaz à espuma branca que deixam no seu rastro”.
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Obs: texto original publicado na página facebook de José Miguel Braga, tendo sofrido ligeiras adequações editoriais na presente edição.