Neste dia, meu caro poeta, bem podes andar com os cabelos ao vento.
Nas praças, nas praias, ao dobrar uma esquina, ao subir à plataforma do castelo na torre arruinada, essa impressão do ar em movimento traz coisas no ar, folhagem, poeira, o coro da basílica, a ladainha dos pobres.
Continuas para oeste, para onde vai o sol, de onde vêm as nuvens. A exaltação é assunto muito local, inventa-se o mundo nesta terra que nada tem de especial.
Quando passavas as mãos pelos cabelos eras quase feliz. O olho das coisas via-te com esse ar levantado, o rosto virado ao mar, olhos de barco, socorro dos náufragos e depois sentavas-te numa pedra. Os poetas sempre gostaram de parar um pouco a meio do caminho em nossas vidas. Tempo de melancolia e alguma reflexão. A viagem demora.
Agora a chuva deve parar e o poeta sentado recolhe nas mãos um pouco de broa e de chouriço e bebe vinho e água se houver. A chuva deixava espelhos pelo caminho. Via-se o céu misturado com as pedras, as nuvens traziam altas figuras de deuses e animais e no caminho o poeta embrulhava o seu dia, imaginava acenos às janelas e vinham estorninhos a dançar desenhos que não se podiam dizer.
O poeta vai pensando nos modelos, nos colegas do laboratório, nos prisioneiros do regime, nos internados da sapiência e nessa altura olha para trás. Pode ser perseguido pela polícia, como nos poemas antigos, ou subir à tona do vulcão, como faria um filósofo.
Agora vem o lusco-fusco – era bom se houvesse pirilampos – e passam coisas aéreas, tremendos abalos no sossego dos campos, automóveis, trotinetes, mais lá em cima drones e avionetas e ele sente uma comichão nos ossos, nos músculos, no sangue. Deve ser o coração, um estado geral de versificação e o resto que se foda.
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Imagem: Marcelo Marques
Obs: texto previamente publicado na página de facebook de José Miguel Braga, tendo sofrido ligeiras adequações na presente edição.