‘Responder com poesia é um ato de resistência’

‘Responder com poesia é um ato de resistência’

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João Luís Barreto Guimarães é filho da cidade invicta, poeta, tradutor e médico. Tem quinze livros editados, que já lhe valeram, entre outros, o Prémio Criatividade Nações Unidas, o Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa, o Prémio Melhor Livro de Poesia do Ano Bertrand 2018 e o Prémio Willow Run Poetry Book, uma distinção atribuída pela primeira vez a um autor de origem não americana.

O escritor vive poeticamente e tenta encontrar sentidos no quotidiano. Os cafés são o epicentro do (seu) mundo e foi aí que nos encontrámos para falar sobre poesia e resistência.

Trouxe um cartoon, que gostaria de lhe oferecer. É de um ilustrador brasileiro, muito crítico do atual governo…

poesia - cartoon - bertrand livreiros - joão luís barreto guimarães

Conheço e até já o tive como imagem de capa no Facebook (risos). É muito interessante porque dá uma ideia muito forte do que é a poesia. As pessoas associam a poesia a algo frágil, mas responder com as palavras, com poesia, no fundo, é um ato de resistência.

Disse numa entrevista: “A arma mais bonita é a ironia. É dizer do avesso. Isso tem, às vezes, um poder mais forte do que dizer pelo lado do real”. A poesia também pode ser uma arma?

A poesia, se considerada genericamente, não sei… mas a ironia, que é um dos tons que a poesia pode ter, seguramente. Porque a ironia é a vitória possível dos derrotados. Quando já não há mais nada para argumentar ou para arremessar, esse falar do avesso, que constitui a ironia, pode ser muito cirúrgico, muito preciso, como arma de resistência.

Já lhe aconteceu que a sua ironia poética tenha sido incompreendida?

Não sei, porque não sabemos para quem escrevemos. Um poema é uma máquina verbal que é lançada. Na maior parte das vezes, seguramente, sabemos quem escreveu, mas não sabemos quem vai ler e em que circunstânciavai ler. Como a ironia está normalmente associada a fenómenos de humor e sarcasmo, estes abrem portas e permitem que a mensagem seja dita de uma forma mais seca e mais curta do que quando usamos uma linguagem normal, em que teríamos de anteceder a nossa afirmação de “eu peço imensa desculpa por estar a dizer isto, espero não estar a ofender, não leve a mal…”. Se dissermos ao contrário, com ironia e com o poder de síntese da poesia, vamos mais longe, atingimos mais fundo e sentimo-nos mais satisfeitos (risos).

Na sua assinatura de e-mail incluiu uma citação de Tomas Tranströmer: “Cansado de todos los que llegan con palabras, palabras, pero no lenguaje”…

Para mim, esse verso tem dois aspetos importantes: por um lado, chama a atenção para a linguagem quotidiana, em que há muita falta de silêncio, porque toda a gente tem opinião sobre tudo; gastam-se palavras e palavras e mais palavras, muitas vezes desprovidas de um nexo e de um significado que valha a pena reter. Não se dá a devida atenção ao silêncio — que é algo a que a poesia dá imensa atenção, através das pausas, dos espaços em branco, das divisões entre estrofes e do silêncio que sucede a cada um dos versos quando o verso corta. Há uma frase muito bonita do poeta holandês Remco Campert que diz “Listen carefully to what I keep silent about” — “Escutem com atenção aquilo sobre o que faço silêncio”. O poeta polaco Adam Zagajewski tem também um verso muito bonito que diz: “Silence always has the last word” — “A última palavra é sempre do silêncio”. A linguagem é precisamente aquilo que a poesia deve procurar, por mais quotidiana, coloquial ou prosaica que seja, não as palavras atrás das palavras pelas palavras, mas algum tipo de transfiguração em linguagem. O que interessa ao poema é a linguagem.

A partir de setembro, será o regente da cadeira de Introdução à Poesia no curso de Medicina do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, procurando semear o gosto pela poesia nos estudantes. Esta ideia tinha já sido colocada em prática, por exemplo, pela Universidade da Califórnia, Irvine — School of Medicine, que incluiu a poesia no currículo do programa do curso Medical Humanities & Arts, como forma de tentar estimular a empatia e a compaixão dos médicos. Com que espírito parte para esta aventura? Acredita que a poesia pode, de facto, tornar-nos seres humanos mais empáticos?

Há aqui dois objetivos: em primeiro lugar, pretende-se pôr os alunos em contacto com a poesia enquanto linguagem e, depois, tentar que, além dos poemas escritos por médicos poetas, lhes sejam apresentados também poemas escritos por poetas não médicos, mas que, de alguma maneira, abordem o tema da doença, da vida, da morte, da medicina — sendo que não será exclusivamente esse o cânone dos temas da cadeira. Os poemas são, muitas vezes, janelas diretas para a alma de quem os escreveu, numa situação de sofrimento pessoal ou do sofrimento de alguém que lhes era próximo. Estes alunos, durante o curso de Medicina, vão ter inúmeras oportunidades para se relacionarem com doentes, através do exercício da anamnese, interrogando-os acerca de sinais, sintomas ou queixas, para construir diagnósticos e síndromes, propor determinados tratamentos e chegar, desejavelmente, a uma cura. Estes poemas vão dar-lhes uma visão subjetiva, que é a do eu que escreve o poema, seja encarnando uma persona, seja falando de si próprio, e não apenas sob uma perspetiva fria e objetiva, que consta dos compêndios de medicina e cirurgia. Se isto vai contribuir para gerar compaixão, empatia e humanismo, não o saberemos para já: só o desenvolver das suas vidas profissionais o dirá. Mas que tem potencial para lançar sementes, tem.

Aventurou-se pela banda desenhada, pelo cartoon, pela música, pela pintura e pela escrita. Na ficção, confessou, por um lado, que lhe “falhava o fôlego”: “Até fazia uns bons primeiros capítulos mas depois entediava-me da história, queria uma coisa mais rápida. Por isso é que me entendo com a crónica e, provavelmente, também me entenderia com o conto”. Por outro lado, quando descreve o seu processo criativo, a escrita persistente, o corte dos excessos do verso, a filigrana que resulta da revisão metódica, fica-se com a ideia de que o nascimento dos seus livros de poesia é tudo menos um processo rápido.

O processo de construção de um livro é lento, mas eu pretendo que resulte em poemas rápidos. O processo parte de uma palavra, de um verso ou, se eu tiver sorte, de um esquiço que, normalmente, não gosto de que ultrapasse o espaço de uma página. Gosto de ter a minha máquina verbal concentrada numa página. Quero imprimir-lhe uma certa velocidade, uma certa ansiedade, que julgo que é característica dos tempos contemporâneos, e isso é expresso pela rapidez com que os versos cortam, pela lógica com que o poema evolui para uma explosão eufórica ou disfórica final. Faço questão de que o poema se concentre numa só página, de que esteja emoldurado pelo tal espaço em branco a que há pouco chamámos silêncio.

Há aí uma forte componente visual, também.

Sim, há muito de visual porque, no fundo, o poema resulta numa escultura de som, qualquer coisa que representa uma intervenção sobre a página. Esse processo de construção, desde o esquiço até ao produto final, é realmente muito demorado, porque é sujeito a demoradas revisões, mas resulta para o leitor numa ideia concentrada, elíptica e concisa, que se lê quase como se fosse uma micronarrativa ou uma curta-metragem. Portanto, a sua afirmação é verdadeira nos dois aspetos, porque nos estamos a referir, por um lado, à lentidão do processo criativo e, por outro, à rapidez de leitura de cada poema. Este modelo permite-me trabalhar a originalidade dos versos e, de jornada em jornada, de dia para dia, sentir a evolução no processo final, que é mais compatível com o tempo que eu tenho disponível, que me sobra da minha vida profissional. Para já, não sou um escritor com fôlego de romance com 200 ou 300 páginas… Ainda me falta fazer algumas coisas na poesia, antes de me dispersar por outros géneros literários.

Shelley, no seu Defesa da Poesia, diz que “os poetas são os legisladores, não reconhecidos, do mundo”. Como vê o papel da poesia e dos poetas na sociedade contemporânea?

Platão não gostava deles (risos), não gostava do mundo irreal que os poetas traziam para a República. Aliás, o poder não se dá bem com a poesia. Quando estive em Nova Iorque, em dezembro de 2001, adquiri muitos livros de poesia e tive de comprar uma mala adicional para os trazer para Portugal. Quando cheguei ao aeroporto Francisco Sá Carneiro, mandaram-me para uma sala, para inspecionar as malas. Abriram a principal, onde trazia a roupa, e depois quiseram saber o que vinha na outra mala. Abri-a e mostrei os livros. Perguntaram “O que é isto?”, e respondi “Ó senhor guarda, são livros”; replicaram “Tantos livros?” e eu esclareci: “Ó senhor guarda, são todos diferentes….” (risos); insistiram “Livros de quê?”“De poesia”, respondi, e, logo de seguida, dizem eles: “Feche isso, feche isso!” (gargalhada).

Era um traficante de palavras (risos)?

Exatamente. Por um lado, o poder reconhece a fragilidade da palavra e da linguagem, mas, por outro lado, como o poema apela, normalmente, a uma ética e a uma deontologia, sentem-se incomodados com o poder de observação que inflige a boa ética e a boa deontologia que eles possam não estar a ter. Safo dizia que os poemas eram “apenas ar, mas deliciosos de ouvir”. Apenas ar, mas com uma força ética e deontológica muito forte. Voltando ao cartoon: eles não suportam a poesia, não suportam a literatura, porque daí vem uma voz que chama a atenção e incomoda.

Por que motivo haverá (ainda) tão poucos leitores de poesia?

Eu não acho que haja poucos leitores de poesia. Eu não me queixo (risos). Acredito que os leitores de poesia são os mesmos leitores de prosa, só que estes ainda não o sabem (risos).

Wislawa Szymborska, uma das suas poetas de eleição, em 1996, na cerimónia de entrega do Nobel da Literatura, refere, no seu belíssimo discurso “The Poet and the World”, a importância da linguagem da poesia. O João Luís disse numa entrevista: “A poesia é uma arte mais pura e difícil do que qualquer outra. Em última instância, tudo se decide na linguagem” . A poesia é uma espécie de arte das palavras certas?

Eu tento que a poesia que escrevo seja assim, porque, sendo o poema um acontecimento tão concentrado, tão económico, conciso e elíptico, é fundamental que a escolha das palavras seja exata. Deve ter a sequência certa, como diziam os Românticos ingleses, exatamente porque um poema é uma oportunidade. A possibilidade de termos leitores é uma coisa extraordinária…

Pensa neles quando escreve?

Primeiro, escrevo para mim. Depois, pergunto-me o que diriam daquele poema duas ou três pessoas que me foram muito próximas, como o Manuel António Pina e o Egito Gonçalves… e outras pessoas que estão comigo, como o Francisco José Viegas, meu editor, e o Jorge Sousa Braga. Não penso propriamente num leitor ideal. Desde o meu primeiro livro, tive a perceção de que esta era uma poesia que pretendia comunicar e estabelecer com o leitor uma relação mais racional do que emocional. Sei que o sentimento e a emoção também estão presentes, na dose certa, nestes poemas, mas aquilo que eu tento estabelecer com o leitor é uma relação de sedução por via da inteligência, do raciocínio, da crítica. A vontade de ser lido e de comunicar é uma das razões pelas quais escrevo. Wislawa tem uma justificação muito engraçada: fala da arte de preservar e da vingança da mão mortal. A mão, sendo mortal, vinga-se através da escrita que ela própria produz. Ruy Belo tem um verso em que diz: “É terrível ter o destino da onda anónima morta na praia”. Ou seja: escrever-se-ia para perdurar, para a eternidade. Diz Tomas Tranströmer: “Eu escrevo para esquecer”. O poema funciona, assim, meramente como um arquivo biográfico, um álbum fotográfico que imortalizou um momento, e pode libertar o cérebro para novas palavras, novo conhecimento e novas ideias. Não sei onde é que me situo… há de ser algures no meio de tudo isto (risos).

Esta importância da linguagem leva-me à questão da tradução. Além de autor, com livros traduzidos noutras línguas, é também tradutor. No filme Paterson, de Jim Jarmusch…

Vi e gosto muito…

A certa altura o protagonista diz: “Poetry in translation is like taking a shower with a raincoat on”. Voltando à ideia do poema enquanto escultura de som, como o descreve, quando traduzido, é perante uma escultura diferente que estamos?

Sim, mas a arte do tradutor é exatamente a de tentar criar um sistema, na língua de chegada, que possa equivaler ao sistema criado na língua de origem. Robert Frost dizia “Poetry is what is lost in translation”, temendo que a beleza do poema inicial, na linguagem original, dada pelos vocábulos, pelo som e pelas imagens, fosse exatamente o que se perdia na língua de chegada. Quem faz tradução sabe que o tradutor é um traidor. Traduzir dentro das línguas românicas não é um problema, porque há uma aproximação muito grande entre as palavras. Também é possível traduzir com muita qualidade a poesia que é feita mais à base de imagens, e menos à base de símbolos e de sons. Já há uma dificuldade maior na passagem do português para o inglês e para o alemão. É preciso uma excelência de tradução muito grande para que os poemas, quando são transpostos do português para o inglês, não resultem em algo muito banal e demasiado pobre. A tradução é um mundo. Mas, como disse José Saramago, os tradutores são quem verdadeiramente divulga os autores fora do seu espaço de origem, no mundo.

Que conselho daria a um jovem poeta?

Ler. Ler o máximo possível, ter uma clara noção do que foi feito e tentar fazer diferente. Os grandes poemas resultam sempre de uma mistura muito fina de tradiçã com oficina. É fundamental ler para perceber como se faz. Basho tem um verso muito bonito em que diz: “Aprende sobre pinheiros com pinheiros e sobre bambu com bambu”. É importante aprender sobre poesia com poemas. Quem lê e conhece a tradição tem a vantagem de partir para os seus próprios poemas evitando erros iniciais e com um ponto de observação mais elevado, como se fosse um anão aos ombros de gigantes. É necessário conhecer a oficina da poesia para a seguir ou para a subverter. E, com isso, procurar aquilo que Ezra Pound preconizava: “Make it new”. Subtilmente, estava a dizer-nos: se não vais fazer diferente, não publiques, deixa ficar na gaveta. A primeira pessoa a quem o poema tem de surpreender é ao próprio autor. Por isso é que é tão importante rever o poema alguns dias ou algumas semanas depois de o ter escrito, para poder aceder ao poema já não com o olhar do criador, mas com um possível olhar de leitor, abordando a própria produção com sentido crítico para perceber se aquele poema merece ou não o livro.

O que tem lido? O que lhe tem provocado espanto?

Tenho andado a reler todos os meus poetas de eleição, como ponto de partida para alguma coisa que eu não sei o que é. Philip Larkin, Adam Zagajewski, Charles Simic, Agi Mishol e muitos outros.


FAQS

Acontece-te
acordares antes do teu braço acordar?
Alguma vez te ligaram para vender silêncio?
Para onde vão as palavras
assim que as soltas no ar? Retiras a crosta à ferida
para manter a
dor acesa? Por quanto mais tempo haverá
ignorantes
no poder? O amor é vermelho ou
também existe em preto? A rotina que satura é
a mesma que protege? Comprar tempo
num parquímetro
permite viver mais tempo? Se o gato te arranha
aproveitas para ler a
glicemia? Ao terminares a viagem há
uma placa com o teu nome? Se Deus fosse mulher
teria descansado
ao domingo? Pensa bem: se Deus fosse
uma mulher teria descansado
ao domingo?

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Obs: entrevista original previamente publicada na revista Somos Livros, da Bertrand, tendo sofrido ligeiras adequações na presente edição.

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Categorias: Cultura, Literatura, Poesia

Acerca do Autor

Marisa Sousa

Marisa, 30 anos, vegana desde os 25 anos e agora ativista a tempo inteiro. O veganismo surgiu na minha vida numa fase de grandes mudanças, quando tentava alinhar as minhas ações com os meus princípios e percebi que, enquanto alguém que sempre disse gostar de animais, não podia continuar a comê-los. Sendo já ativista por outras causas sociais, a luta pelos direitos dos animais acabou por acontecer naturalmente até se tornar uma grande parte da minha vida. Hoje sou, entre outras coisas, co-organizadora do Porto Animal Save e Braga Animal Save, dois grupos de ativistas veganos que realizam vigílias pacíficas junto aos matadouros.

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