Etiqueta social: o ritual do chá em tempos de declínio da política e do Estado

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Caríssimos, cabe-me dizer uma curta palavra sobre as polémicas em torno das medidas da pandemia. Compreendo que quem acompanha se sinta amargo quando lê artigos e caixas de comentários que recorrem ao insulto. A ideia do insulto é essa – silenciar o oponente, impedir que este exprima ideias, ou incutir-lhe temor, fazendo-o recorrer à auto censura. A questão é que isso vai continuar e, se eu estiver certa, vai aumentar muito. A perda de argumentos vai levar a mais e não menos insultos. Não creio que as redes sociais sejam culpadas, a culpa é que vivemos tempos de declínio da política e do Estado, e nestas alturas, deixem-me citar Gramsci, o que é bizarro ganha muita força. A questão é como se responde ao que é bizarro. Não tenham dúvidas que o bizarro mal começou, a questão não é como parar esse fenómeno, é como quem tem um pensamento racional e a ele responde.
O ritual do chá e o bom uso de etiqueta social
Os meus conselhos são milenares e remontam ao ritual do chá. O chá é um ritual de gentileza e delicadeza, na forma de preparar, servir, beber. Exige tempo e educação, no sentido de uma prática. Não se bebe à velocidade de um café, exige um treino, uma prática de saber estar. Creio que daí vem a expressão “ter falta de chá”. A sociedade portuguesa caminha para a sua maior crise de sempre. Nada semelhante do ponto de vista económico-social foi vivido por quem está vivo. Rapidamente vamos atingir mais de 1 milhão de desempregados, temo que se chegue ao 1 milhão meio – estamos nos 800 mil, números reais – e uma onda de falências massiva. A bazuca europeia é um nó na garganta, um empréstimo do Luxemburgo e outras fórmulas, parte das quais a União Europeia (UE) lavou as mãos, e que vai fazer disparar o endividamento público, o que vai levar a cortar mais serviços públicos.
Necessidade de estabelecer regras ao debate público
A TAP é o laboratório para o que aí vem para os outros sectores: cortar salários até aos 900 euros para todos os trabalhadores com a chantagem de que se não aceitam ficarão desempregados – e despedir os que ganham mais para depois os contratar por menos. Nenhuma sociedade vai ficar em paz social depois disto. Todos os nossos “nervos e músculos”, isto é, paciência, coragem, pensamento racional, como cidadãos, serão chamados nos anos vindouros na esfera pública, que serão de grandes conflitos sociais. As redes sociais podem ser um palco de excelentes debates, ou podem ser o contrário. Cabe-nos decidir. É por isso fundamental que criemos regras para fazer parte do debate público e deixemos que outros não as cumpram, mas jamais se pode responder olho por olho, dente por dente a quem não quer debater. Silenciar a nossa opinião (esse é o objectivo do bizarro) ou responder no mesmo nível é garantir que nenhum debate terá lugar, e será suplantado pelos insultos, o escárnio, e quando damos por ela é um circo romano, onde assistimos a linchamentos semanais.
Essas regras são (mas podem e devem acrescentar outras):
- Debater ideias e não pessoas, quem escreve o quê é irrelevante.
- Insultar – se achamos inevitável -, as pessoas na banheira, sozinhos. Mas não em público. Isso acaba por ferir tanto quem insulta como quem recebe o insulto. Os mais capazes afastam-se e ficamos com uma arena de cães raivosos a lutar pelo insulto, o escárnio, mais poderoso. Não podemos deixar isso acontecer se queremos promover o pensamento na esfera pública.
- Centrar-se nos melhores argumentos; devemos escolher quem tem os melhores argumentos com os quais discordamos e ignorar a “espuma”, não temos tempo nem podemos cair na distracção de responder a argumentos que não são importantes.
- Não agir de forma infantil porque nos sentimos ofendidos. É preciso escolher o que se debate e com quem, ignorar tudo o resto, porque grande parte do “resto” ocupa um espaço que não pode ocupar. Pode parecer fraqueza não responder a insultos mas assim ajudamos a elevar o debate.
- Responder com tempo, tudo hoje parece frenético, mas não é. As dinâmicas sociais exigem tempo para se compreenderem. Uma boa resposta, sólida, tarde, é muito melhor do que uma resposta a quente. A credibilidade dos argumentos não vive ao ritmo das redes, não se ganha nem se perde consoante as claques, sejam os “likes” favoráveis ou não. Ganha-se com o pensamento crítico e a médio e longo prazo porque é preciso tempo para verificar na realidade se os efeitos de uma ou outra medida se revelaram eficazes ou nocivos.
- Rejeitar todo o tipo de manipulação emocional. Gente que apela a dramas pessoais, ameaças, medo, presta-se a ser a vítima de serviço, etc. Não quer convencer pelas ideias, quer que tenham pena dela ou da situação. Que a considerem coitadinha ou fofinha, lindinha ou pobrezinha, é coisa que nunca deve fazer parte de um argumentário.
- Usar argumentos de autoridade. É mais difícil esta parte, mais ambígua. Citar alguém não nos faz ganhar um debate mas cada um tem uma história – hoje coloca-se ao mesmo nível, em grande medida porque os jornais não vendem sem isto, num debate público, pessoas com prova dadas de anos nas suas áreas de estudo e gente que ajuda a vender porque são vendáveis como influencers.
- Não endeusar as pessoas – não há Deuses – não significa que todas as opiniões têm o mesmo valor. Isso não é democracia. Democracia é ouvir todos não é dar o mesmo valor a todos. As opiniões não são como os votos, que valem todos o mesmo. Há opiniões que valem mais do que outras. Nem todas as pessoas que existem, logo pensam, parafraseando Descartes. E os jornais nem sempre nos dão essa garantia, nem as redes sociais. Cabe a cada um de nós avaliar quem decidimos ler, e para isso temos que responder se queremos pão e circo, a mórbida leitura de insultos e argumentos vazios, ou escuta atentiva que nos provoca a curiosidade.
- Responder ao que é importante, e não ao que nos perguntam. Uma boa resposta não pode depender de uma má pergunta.
A troca de ideias nas redes sociais
As redes sociais estão cheias de perfis falsos, não sei bem como são criados nem por quem. Mas são fáceis de identificar – são murais com fotos de cães e gatos ou carros ou pinturas, e o mural é vazio, sem vida na timeline. Deve-se bloquear não só os perfis falsos mas de todos os que recorrem ao insulto, à calúnia, à suspeição, a tentativas de assassinatos de carácter, a cortes de frases fora do contexto, mentiras, etc. Isso permitirá que em vez de uma selva floresça no mural de cada um uma esfera pública de debate, que só existe porque há opiniões contrárias e que, ao contrário dos insultos, devem ser estimuladas, acarinhadas. Se alguém pensa diferente, mas sabe colocar os seus argumentos como um ritual de chá deve ser muito respeitado porque debates públicos não são jogos dicotómicos de poder. Ouvir quem pensa diferente é não só um acto democrático, implica pensar que o argumento dessa pessoa pode na parte ou no todo nos ensinar e até nos levar a mudar de ideias.
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Acerca do Autor
Raquel Varela
Raquel Varela é Historiadora, Investigadora e professora universitária da FCSH da Universidade Nova de Lisboa / IHC / Socialdata Nova4Globe, Fellow do International Institute for Social History (Amsterdam) e membro do Observatório para as Condições de Vida e Trabalho. Foi Professora-visitante internacional da Universidade Federal Fluminense. É coordenadora do projeto internacional de história global do trabalho In The Same Boat? Shipbuilding industry, a global labour history no ISSH Amsterdam / Holanda. Autora e coordenadora de mais de 2 dezenas de livros sobre história do trabalho, do movimento operário, história global. Publicou como autora mais de 5 dezenas de artigos em revistas com arbitragem científica, na área da sociologia, história, serviço social e ciência política. Foi responsável científica das comemorações oficiais dos 40 anos do 25 de Abril (2014). Em 2013 recebeu o Santander Prize for Internationalization of Scientific Production. É editora convidada da Editora de História do Movimento Operário Pluto Press/London e comentadora residente do programa semanal de debate público O Último Apaga a Luz na RTP. Entre outros, autora do livro Breve História da Europa (Bertrand, 2018).
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