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Hoje, pedi tempo emprestado ao impossível para me poder recostar, com a tranquilidade que se exige, na juventude e penetrar com a magia da demora no centro das utopias, para atingir com o olhar e compreender a inocência que rejeitei nesse período de flores e de música, de palavras e corpos sentidos, de cinema e de ocupação festiva das ruas. Um centro tão longínquo e tão real que me centra ainda na combustão das ideias.
O que foi a dúvida do mistério de então, hoje já não o é. Admiti, contra todos os avisos, que os caminhos sinuosos da literatura seriam os meus porque entendi que em si seriam o meu ofício. Acreditei – e ainda acredito – no poder oculto da ilusão que me faz viajar às entranhas do pensamento em busca do inominável. Sentia-me em processo de completude e o facto de me sobressaltar com todas as perplexidades que os dias consumidos me apresentavam davam razão ao investimento consciente no absurdo das palavras na construção operária do texto.
Foi esse o caminho porque era esse o caminho. E não outro onde correria o risco de estancar num funcionalismo que me levaria à morte desta existência e à vivência brumosa de uma outra tão impensável naquele jovem acusado de marginal cujo futuro se inscreveria na miséria. Efeito doloso de todos aqueles que se mostravam incapacitados para educar num tempo que já não lhes pertencia. Restava-me sair deste novelo de impedimentos e entrar no centro de uma nova realidade que me pertencia na sua plena autenticidade. Era o resultado em cheio na criação que me construía enquanto ser poético e artístico, produto de inexplicáveis sensações que a linguagem traduziria em textos matraqueados dentro da noite em máquinas que marcavam o ritmo das orações.
Quando me conceberam não poderiam ter feito melhor. Não se trata nem de crença nem de destino. Trata-se da descoberta de um pequeno invólucro que nos institui a individualidade. E essa é a diferença entre a cobardia de sermos o que os outros querem que sejamos e a coragem de existirmos segundo a nossa própria ousadia e resolução. Não podia ser outro porque este é o melhor de mim que foi engendrado. Fui o exemplo utópico dos impotentes. E cá estou observando o seu próprio esquecimento. E vivi, como um dia disse Rilke, num permanente encantamento de instantes.
Do choque subtil e violento das bocas que se comiam com a verdade da paixão até à tradução de todos esses êxtases no poema como testemunho e testamento da plena liberdade de ser em mim e no outro a consolidação da criação e da cumplicidade. Actos de amor e, consequentemente, de crueza. De sacrifícios suspeitos na opção de um caminho que se sabe de antemão que é o melhor e o que melhor nos edifica.
Desde esses tempos, que agora peço emprestados ao impossível, que os meus textos me chegaram das origens mais remotas da existência. Fecho os olhos. Saboreio-os. E não me deixo concluir porque ainda pertenço ao infinito.
Obs: pré-publicação de ‘Rouge – Utopie’, 2020.
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