A noite passada conheci o Quim Zé. Foi numa esplanada com as devidas distâncias, que mais tarde se tornariam físicas apenas.
Um grupo de jovens amigos, a um dos cantos, recordava histórias de acidentes de carro, de mota e até de bicicleta, não faltando relatos de muros caídos, carros espatifados, ou volantes na mão e dentes partidos. Mas a nenhum deles faltava uma perna como ao Quim Zé, que numa mesa, mais afastado, ouviu como eu os relatos, até resolver participar na conversa.
– Vocês estão a falar de acidentes, mas deixem-me que lhes conte o que é um acidente a sério…
Pareceu-me que todos engoliram em seco por um momento, preparados já para ouvir uma história dolorosa de vida, não fosse a surpresa e o riso a todos tomar de assalto nos momentos que se seguiram.
E o Quim Zé, que assim se apresentou, contou como um carro que não respeitou a sinalização num cruzamento o colheu na sua moto pesada, levando-lhe, segundo ele, “um pé para junto de uma orelha”.
Foram 8 meses num hospital para tentarem consertar uma perna completamente desfeita, com enxertos sucessivos e rejeições, até, segundo o próprio, se ter apercebido, que aquilo era uma cambada de “mamões” a alimentarem-se como sanguessugas do dinheiro do seguro…
Disse-lhes: – chega! Cortem-me a porra da perna. Não tenho mais pachorra para vos aturar.
E cortaram.
Todo este relato era acompanhado de um fino humor, que metia enfermeiras jeitosas, aparadeiras, banhinhos dados, até, ainda segundo o cada vez mais peculiar narrador, “a coisa ter começado a levantar”, e aí as enfermeiras nunca mais por ali apareceram. Foi a pior parte, lamentava-se.
Sempre que alguém ousava fazer uma interjeição do género “deve ter sido lixado”, o Quim Zé, do alto dos seus 50 anos bem cuidados, logo dizia: – qual quê, foi a melhor coisa que me aconteceu. Corta uma perna e tu vais ver…
Repetiu a frase várias vezes, e se alguém argumentava que a perna lhe faria muita falta, ele respondia: – pronto, se achas que a perna te faz falta, corta um braço, uma mão talvez…
E explicava: – Não pode ser propositado, senão não recebes do seguro… pedes a um amigo que te passe por cima, ou vais cortar lenha com ele de motosserra…
Os risos eram constantes, e o meu juntava-se aos demais.
Era inacreditável como alguém era capaz de brincar com uma situação tão dramática, com a sua própria condição.
– Lixado mesmo é um gajo não ter noção, nos tempos seguintes, que lhe falta a perna. Bati com os queixos várias vezes no armário, sempre que saía da cama pelo lado errado…
Contou depois o que fez com a indemnização que recebeu do seguro: – Comprei uma casa naquele cruzamento e uma moto pesada adaptada, que está ali…
O Quim Zé, a única vez que tomou um ar mais sério, foi para dizer que a perna que perdeu lhe trouxe uma coisa fundamental: mudou a sua forma de estar na vida, fez dele um homem melhor, pois antes do acidente era um bom “car*lho”.
A certa altura, continuando em tom jocoso, referiu que já tinha pensado escrever um livro, mas para quê, a malta não lê a ponta de um corno…
Foi quando intervim pela primeira e última vez naquela conversa.
– Concordo em absoluto consigo, até porque sou escritor. Mas não se preocupe, eu escrevo por si…
Ele achou piada e eu também.
Paguei, despedi-me de todos, montei na minha moto e saí.
Confesso que, ao entrar na estrada, pensei:
– E se agora viesse um carro e me atirasse “um pé para junto de uma orelha”?
Seria eu capaz de me tornar um homem melhor como o Quim Zé?
Cheguei são e salvo a casa e escrevi, tal como lhe prometi.
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