Perturbar a ordem, corrigir o destino: era uma vez Tarantino

 

 

“Tenho de matar uns canalhas”, diz amiúde a viúva negra de Kill Bill, no primeiro de dois filmes de Quentin Tarantino, refulgindo de humorosa vingança nas várias poças de sangue, corpos decepados e demais coreografias marciais que a personagem de Uma Thurman enjeita na sua pessoalíssima catarse. E se esse propósito de matar os canalhas um a um parece manifestamente rude no vernáculo, na verdade, é o que mais se ajusta a uma homilia nimbada de reverência, com cada morte talhada ao milímetro como se de uma obra de arte se tratasse. A personagem, qual anjo vingador, vai com o seu sabre em punho honrar cada um desses canalhas com um desfecho típico de um deus menor. E é aí que se muscula a linguagem de Tarantino, o seu estilo de cinema: faz-nos rir com a desgraça alheia, numa espécie de maniqueísmo fácil e portátil, que nos permite cindir a vida entre os bons e os maus, mesmo quando os bons são heróis invertidos pela imensa sanha da sua perversão.

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Contudo, que se destaque essa perversão só faz sentido se a olharmos dentro da teia complexa com que Tarantino monta as suas longas-metragens: narrativas não lineares, diálogos morosos, nos quais a superficialidade da matéria nos apanha sempre desprevenidos (as pontas soltas do discurso, a aparente falta de gravitas do que se diz), gestos suspensos, sem ligação, como se no seio da suposta intriga se abrisse um súbito buraco ou um alçapão que, no meio do nada, arrancasse as personagens do seu destino temporário – e, pelo meio, lá somos também arrastados, enquanto espectadores, para lugar nenhum, para uma circunstância inusitada. Pois o que dizer, a título de exemplo, 25 anos depois, da famosa cena de twist protagonizada por John Travolta e Uma Thurman no seminal Pulp Fiction? A linguagem de Tarantino afia a língua nestes súbitos momentos de gaguez: uma gaguez, portanto, instituinte, porque os filmes do realizador se presentificam a partir da segregação de ocasiões inesperadas, de disparidades derivativas, de pregas secundárias subitamente desfraldadas, que parecem manter o enredo entre parêntesis, a flutuar algures por cima do nosso entendimento em relação àquilo que vemos. Que vemos e, sem com isso abrir fissuras insanáveis, que imaginamos no plano coincidente com o que se abre na e pela visão.

Dito isto, eis que chegamos ao seu nono filme: Once Upon a Time… in Hollywood. O título abre-se, desde logo, como uma redundância curiosa: o regime da fábula (o “era uma vez” dos contos populares) e a máquina de sonhos que é (ou que foi?) Hollywood dispostos lado a lado, como duas portadas de uma mesma janela que se coloca entre nós e o mundo. Não é em Hollywood que a vida devém ficção e a ficção, vida? Não é nos seus estúdios, nos seus cenários, nos camarins, nos planos lustrosos das vedetas, que o século XX lavou os olhos para erguer uma nova teofania, depois da morte de Deus diagnosticada à exaustão desde Nietzsche? Uma nova mitologia feita pela constelação de deuses e deusas que mantêm aceso o lume das histórias clássicas, o poder da imaginação, as imagens que se põem em movimento para mostrar que o impossível se faz possível com meia dúzia de truques, montagens e pirotecnia?

É esta a carta de amor que Tarantino decide escrever com luz, endereçando-a ao cinema. Contrariando algumas expectativas formais, Once Upon a Time… in Hollywood apresenta-se como um filme bastante sequencial, despojado dos familiares redemoinhos e desvarios secundários que Tarantino costuma abrir em cada um dos seus filmes, obrigando o espectador a aguardar pelo fim para poder montar todo o puzzle, amenizar o fôlego da perplexidade, fazer as pazes com tudo o que lhe escapou durante a primeira experiência. Desta vez, porém, a coisa desfila diante si com menos atrito e uma notável economia narrativa: estamos no ano de 1969, com um ator (Rick Dalton/Leonardo DiCaprio) a atravessar uma crise de meia-idade precoce, desiludido com o rumo que a sua carreira parece ter tomado, tendo como melhor amigo o seu duplo das cenas mais arriscadas (Cliff Booth/Brad Pitt), aquele a quem vai confidenciando as suas angústias, lado a lado, no lugar de passageiro, visto que uma acidente por embriaguez lhe suspendera a carta de condução. Tempo de hippies, festas, alucinogénios e muito cinema.

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E é isto. O núcleo duro do filme prende-se com esta dupla, os diálogos que encetam, os encontros que travam nos bastidores do estúdio, nos ensaios, nas bebedeiras. A par desta narrativa, há uma glamourosa Sharon Tate (Margot Robbie), grávida na altura de Roman Polanski, que torna o brilho de Hollywood deliciosamente irradiante: nos seus trejeitos naïves, com o vento a levitar-lhe os louros cabelos, a atriz afigura-se como o ponto de fuga por onde se torna mais evidente como este filme constituiu, por excelência, a tal carta de amor que Tarantino nos escreve. Basta, para isso, ver Sharon Tate a desempenhar o nosso papel: sentada numa sala de cinema, vendo-se a si mesma no ecrã, deliciada com o prazer que se levanta na plateia em seu redor de cada vez que a personagem na tela os convida a rir. É por intermédio de Sharon Tate que o cinema devém cinema, isto é, a arte popular por excelência, a arte da prestidigitação coletiva, no qual todos fazem fila para se deixarem enfeitiçar pelo prazer das imagens, pela evasão sem porquê, manipulando-nos os sonhos, enxertando memórias do que nunca vivemos realmente – porque a realidade do filme ou acrescenta realidades ao nosso real, ou destitui de qualquer inabalável fundamento aquilo que separa o real do imaginário, a vida versus a ficção. Não há versus, parece-nos dizer o sorriso de Tate: há esta alegria em comum e a memória, mais tarde, de o corpo a ter sentido, o que a determina, assim, como real e verdadeira.

E só não a sente quem não for boa gente, parece-nos, por último, dizer Tarantino. Os bons contra os maus, essa arena tão facilmente instituída nos seus filmes entre forças de vida, ao serviço da alegria e da imaginação, e forças de morte, esses canalhas cuja única missão existencial parece ser a inveja gratuita contra tudo o que é livre e espontaneamente imenso.

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Tal como em Inglourious Basterds (2009) e Django Unchained (2012), Tarantino volta a pegar na História e a fazer dela o lhe dá na telha, como se vincasse a ideia de que o passado nunca está irremediavelmente morto, mas, pelo contrário, está sempre logo ali à mão de semear, como um brinquedo de infância pousado na estante ao qual se regressa para infligir fantasias tortuosas e palmilhar um recreio onde os desafortunados passam a perna aos injustamente vitoriosos. Neste sentido, o título de Once Upon a Time… in Hollywood parece denotar que a respiração do passado ainda se faz sentir no presente e, portanto, permanece viva, logo reimaginável (note-se inclusive o uso das reticências intercalares no título, como um sinal ostensivo, e por isso irónico, da encenação a acontecer: o filme como um duplo dos factos históricos, tal como Pitt é o duplo de DiCaprio). Assim, o que houver a vingar pode ser ainda redimido. Lembrar equivale, por isso, a reescrever – e, deste modo, em Inglourious Basterds os judeus exterminam Hitler e a sua corja nazi num massacre explosivo em pleno cinema, assim como o protagonista de Django Unchained, um escravo na América oitocentista, mata todos os seus carrascos numa esplendorosa carnificina, como se vingasse por antecipação todos os futuros negros que o racismo americano se encarregaria de assassinar ou, se a tanto a lei não deixou mais chegar, de condescender em brandos costumes, em modos de tornar o negro menos negro, isto é, invisível (veja-se, a este nível, a força do documentário I Am Not Your Negro, de Raoul Peck, a originalidade do filme Get Out, de Jordan Peele, e a polémica gerada por Green Book, de Peter Farrelly, vencedor do Óscar para Melhor Filme na cerimónia deste ano).

(Apetece, assim de repente, tarantinizar este texto, sulcando um inesperado desvio, onde nos embrenhamos na escrita, por exemplo, de um Saramago, o mesmo que nunca viu a História nos seus romances como um cemitério reverencial, mas o palco vivo a auspiciar vinganças necessárias, um prestar contas da parte de todos os anónimos injustiçados por aqueles que se serviram do poder para consolidar o seu discurso como a versão da História que haveria de ser contada e tomada como definitiva – e daí termos um Jesus humano que renuncia à sua condição divina, insurgindo-se contra Deus e toda a Sua monstruosa história de violências e holocaustos; daí uma Blimunda e um Baltasar a provarem, sem esforço, serem humanamente esplendorosos em face de um D. João V que a História nos pintou como magnânimo e que o romancista nos retrata como uma anedota opressiva manietada pela Igreja; daí, também, um Ricardo Reis espicaçado pelo seu próprio criador a quebrar o cristal estoico da sua indiferença diante o mundo, em face da nuvem negra do fascismo a ensombrar Portugal e a Europa no início do século XX, num pingue-pongue entre Reis e Pessoa que, em boa medida, parece enluvar na perfeição a mão polirrítmica de Tarantino: “Acima dos deuses está o destino, O destino é a ordem suprema, a que os próprios deuses aspiram, E os homens, que papel vem a ser o dos homens, Perturbar a ordem, corrigir o destino, Para melhor, Para melhor ou para pior, tanto faz, o que é preciso é impedir que o destino seja destino”, in O Ano da Morte de Ricardo Reis).

 Once Upon a Time… in Hollywood concorre nestes enredos de vingança a partir de uma premissa que, aqui, procuraremos não desvendar integralmente, de modo a não estragar a experiência do filme a ninguém. Fiquemo-nos, por isso, no levantamento desta ponta de um véu de nítidos contrastes (mas que a cultura norte-americana, daí em diante, tornará inseparáveis): a história macabra de Charles Manson, líder de um seita assassina, e a puerilidade espirituosa de Sharon Tate, que Tarantino eleva à condição mesma do seu cinema. Aliás, não apenas do seu, mas como se no fulgor diante a imagem em movimento (o tal rosto sorridente de Tate no escuro da sala, olhando para si mesma na tela) Tarantino se destituísse de si, se libertasse do que a sua assinatura representa, do peso histórico do seu nome, e o próprio Cinema se libertasse enquanto força, agenciamento, puro riso a-pessoal (como uma gargalhada vitoriosa do próprio cinema na face sisuda da História). O cinema, enfim, enquanto espaço-tempo onde é sempre possível contar “era uma vez”, “era uma vez”, “era uma vez”… a fuga, a alegria, o gozo libertador que provém de imaginar a seu bel-prazer um salto quântico no devir da história – e que, neste caso em particular, faz desta fábula tarantinesca o seu único filme verdadeiramente comovente.

Quanto mais não seja, porque visibiliza o real do cinema como algo que é nada menos que um milagre, nada menos que o final feliz daqueles que o merecem por crerem nele. No final feliz, no cinema, na vida maior do que ela mesma, que é o que cinema faz.

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Era uma vez em… Holywood, de Quentin Tarantino – trailer

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