A descentralização de competências para as autarquias entrou numa fase decisiva com todos os agentes institucionais e políticos a declararem consensos sobre as linhas mestras deste processo fundamental para a definição e capacidade do Estado português nos servir.
O governo já apresentou aos partidos e associações de autarcas as propostas dos 21 decretos-leis setoriais da descentralização que abrangem áreas estruturantes para a qualidade de vida dos cidadãos. Estamos a falar de passar, para os municípios e freguesias, novas e grandes competências em matérias tão importantes como: saúde, educação, ação social, habitação, ambiente, justiça, equipamentos, infraestruturas, cultura, mar e transportes. É assinalável a capacidade reformista e vontade de inovar do governo do PS, que quer concluir este processo até ao Verão, ainda para mais numa matéria tão difícil e em que sucessivos governos nada fizeram. Não obstante, eu tenho uma particular visão muito critica do teor e espirito da discussão pública em torno da descentralização de competências para as autarquias, na medida em que excessivamente se deixa inebriar pelo politicamente correto e pelo receio de aprofundar os problemas.
Tenho já alguma experiência autárquica. Conheço bem a realidade das juntas de freguesia e os meus mandatos como deputado municipal e, mais recentemente, como vereador na Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, permitem-me falar com conhecimento de causa. A esta vivência autárquica, soma-se a visão decorrente do meu trabalho na Comissão do Poder Local da Assembleia da República que só acentua a minha preocupação e me anima a fazer várias questões. Nas jornadas parlamentares do PS, realizadas em Coimbra, no final de janeiro deste ano, com a presença de Eduardo Cabrita (Ministro da Administração Interna que tutela a descentralização), realizou-se um painel sobre a descentralização e aproveitei esta oportunidade para lançar o desafio: a descentralização é modelo ou moda? Ou seja, vamos discutir e definir um modelo de descentralização competente e eficaz que sirva o interesse público e bem comum ou vamos embarcar em declarações acríticas e meramente satisfatórias dos lobbies e corporações? Se vamos pelo caminho de descentralizar para melhor servir as pessoas então temos de assumir quatro pontos fundamentais: 1) as autarquias só podem assumir e cumprir com mais competências se lhes forem transferidos mais meios; 2) não é um dogma que as autarquias façam sempre tudo melhor e mais barato que a administração central; 3) a transferência de mais competências para as autarquias tem de vir acompanhada do reforço da transparência, da reforma do modelo de governação local e da redefinição dos instrumentos e processos de controlo democrático; 4) é necessário conjugar a descentralização com o ordenamento do território e com a reforma do mapa autárquico.
O envelope financeiro é uma peça essencial, já que para receberem novas competências – até agora assumidas pelo Estado Central – as autarquias precisam de uma mochila financeira associada que pague novos gastos. Sei que a proposta do governo permite perceber quanto o Estado se propõe a entregar para cada competência nova atribuída. Assim, as autarquias têm de fazer o trabalho de casa, que consiste em passar a pente fino aqueles números e verificar se os valores propostos chegam para financiar as novas despesas. Esta avaliação é particularmente relevante numa altura em que o governo aceitou fazer a municipalização das competências através de uma negociação município a município. Ou seja, na lei deverá ficar previsto o princípio geral de universalização da transferência de competências, mas depois cada um dos 308 municípios terá uma palavra a dizer na hora de aceitar novas responsabilidades. Além disso, o governo propõe um prazo de até quatro anos para que os municípios possam assumir as novas competências faseadamente, sendo que esta temporalização permite não bloquear o processo. Parece-me assim que da parte do governo está dada boa resposta à questão financeira, mas é preciso ver que o comboio em marcha da descentralização trará mais poder às autarquias. É aí que tem de haver a coragem de assumir que isso implica mais riscos de arbitrariedade e discriminação partidária ou pessoal pelo conhecimento que advém da proximidade a cada um dos cidadãos, sendo necessário acautelar quais as funções a descentralizar e o controlo legal e democrático do seu exercício. Vamos falar deste modelo ou vamos ficar pela moda?
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